18 Junho 2014
Se principalmente no passado era a religião que desembainhava a espada e atingia sem hesitação o pensamento científico como blasfemo ou sacrílego – uma prática hoje exercida somente por certos fundamentalismos sacrais –, nos nossos tempos, é a ciência que se arma para liquidar como falsa, primitiva e até perigosa toda forma religiosa
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 15-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Anos atrás, mostraram-me a gravação do primeiro episódio de uma feliz série de televisão norte-americana intitulada Cosmos, dirigida por um astrônomo renomado astrônomo "naturalista" e, portanto, ateu declarado, Carl Sagan, série que continua até hoje com outros diretores.
O que me surpreendeu foi justamente as palavras de abertura que ele proclamava de forma lapidar: "O cosmos é tudo o que é, ou foi, ou sempre será". O cientista, como bom anglo-saxão, deveria ter se dado conta (ou talvez o fez intencionalmente) que manejava uma frase teológica do Apocalipse: "Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, Aquele-que-é, que-era e que-vem, o Deus Todo-poderoso" (1, 8).
No entanto, ele cometia um erro científico, porque atribuía ao cosmos uma qualidade teológica e formulava uma afirmação metafísica e não baseado na evidência empírica. Esse é o risco da invasão, praticada em paralelo antitético também por alguns teólogos.
Subentendido a ele está um modelo muito praticado da relação entre ciência e fé, o do conflito. Se principalmente no passado era a religião que desembainhava a espada e atingia sem hesitação o pensamento científico como blasfemo ou sacrílego – uma prática hoje exercida somente por certos fundamentalismos sacrais –, nos nossos tempos, é a ciência que se arma para liquidar como falsa, primitiva e até perigosa toda forma religiosa (pensamos em Dawkins e no seu conhecido Deus, um delírio, em Crick, em Searle, em Weinberg, em Dennett e assim por diante).
Porém, um cientista ateu célebre como Stephen Gould já tinha introduzido outro modelo de comparação muito menos combativo: ciência e religião são dois "magistérios não sobreponíveis que devem permanecer independentes". Famosa é a distinção que Langdon Gilkey propôs: a religião faz as questões do "porquê"; a ciência, as do "como"; a primeira escava o "fundamento" do ser; a segunda, se detém sobre a "cena".
Mas não paramos por aqui, e floresceu um terceiro modelo relacional, chamado de integração ou de diálogo: ciência e religião, embora conservando os seus estatutos epistemológicos específicos, "precisam uma da outra para se completarem na mente de um homem que pensa seriamente", como já escrevia em 1906 um grande físico do nível de Max Planck.
Hoje quem propugna esse encontro reciprocamente respeitoso são muitos cientistas e filósofos (McGrath, Ward, Craig, Swinburne, Flew e outros) e, entre eles, brilha o astro de Francis Collins, o artífice – com James Watson – do "Projeto Genoma Humano", destinado a mapear os 20 mil, ou 25 mil genes do nosso DNA, determinando, assim, as sequências dos três bilhões de pares químicos básicos.
Nesse percurso dialógico, prossegue um importante filósofo da religião, professor da Rockhurst University, de Kansas City, Brendan Sweetman. É significativo que seja um filósofo, e não um teólogo ou um cientista, porque, assim, ele está mais protegido contra tentações apologéticas, embora revelando um ótimo pano de fundo científico e teológico.
O resultado é um excelente equilíbrio de todas as questões em aberto, mesmo as mais sangrentas ou febris. Sim, porque não há quem não veja que muitos capítulos inaugurados pela ciência – como as neurociências, a engenharia genética, as células-tronco embrionárias, a clonagem, a nanotecnologia – geram cachos de problemas éticos, filosóficos e teológicos não pode nem ser varridos com autossuficiência, nem explorados pelo cientista unicamente com a sua instrumentação epistemológica.
A leitura do texto de Sweetman é fascinante por duas razões (devo confessar que, examinando-o, ocorreu-me de deslizar a uma sensação rara: é o livro que eu gostaria de ter escrito sobre o assunto, se eu tivesse a capacidade e competência necessárias, que, infelizmente, não possuo).
A primeira qualidade é logo dita e é exterior: o texto é didático sem ser didascálico, é atraente sem ser banal, é rigoroso sem ser severo. Não por acaso, ele prossegue por "pontos" consequenciais e incrusta a página com exemplificações e também referências culturais gerais.
A segunda característica é, naturalmente, a mais decisiva e se concentra sobre o mérito. Depois de uma premissa de índole histórica, em que se vai de Aristóteles a Darwin e Freud, Sweetman entra no emaranhado dos entrecruzamentos entre fé e ciência, sem nenhum pudor, ou reserva, ou timidez.
Assim, logo se chega ao debate com o naturalismo, "o rosto moderno da ciência", nos seus vários corolários. Depois, emboca-se a estrada acidentada da evolução, com o cortejo de perguntas que essa teoria levanta em nível de provas e com as implicações derivantes de natureza filosófico-moral. Encontramo-nos, de tal modo, diante da pessoa humana submetida pela ciência contemporânea a uma surpreendente modificação de conotações, a tal ponto que se fala até de "transumanismo".
Fervem, então muitas perguntas: o que é a consciência? E o livre arbítrio? E a inteligência artificial? E o nexo mente-cérebro? E a alma? E uma hipotética outra humanidade extraterrestre? Justamente esse último desafio, que está na base do discutido projeto Seti (talvez alguns se lembrem do filme Contact, de Robert Zemeckis, de 1997, com Jodie Foster), abre outro horizonte vertiginoso marcado por um imponente pergunta: há um projeto no universo?
A ideia já havia sido formalizada por um obscuro filósofo, William Paley, em 1802, mas foi retomada pela recente, aclamada e contestada teoria do Design Inteligente, devedora de Paley na sua estrutura de fundo, mas com o recurso a mais argumentos, como o das "leis físicas" (Swinburne e Davies) ou o "antrópico" (Barrow, Tipler, Polkinghorne).
Assim, somos conduzidos de modo explícito e sem embaraços ao nexo Deus-universo que também repercute sobre outra conexão, exaltada por Pascal, a entre nós e a imensa grandeza do cosmos. Mas as interrogações aqui são abissais: de um lado, o Big Bang, a relatividade, a mecânica quântica, e assim por diante; de outro, Deus causa primeira e ator no palco do mundo.
Duas ordens diferentes de quesitos, mas que se interpelam, se confrontam, se aplacam. "Quanto mais descobrimos o universo – conclui Sweetman – e quanto mais se faz necessário o diálogo entre ciência e religião, mais as 'questões últimas' se tornam difíceis de evitar, mais elas nos impelem a uma resposta responsável".
E o capítulo final unirá entre si os dois extremos, ciência e religião-ética em uma sequência em que os anéis são distintos, mas não exclusivos; autônomos, mas não repulsivos.
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Diálogo aberto com a ciência. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU