Por: Caroline | 16 Junho 2014
“Buscou-se justificar a intervenção como necessária para ‘garantir o cumprimento dos direitos humanos’. Contudo a realidade é que a Minustah viola estes direitos do povo haitiano. Por um lado existem as denúncias por atos aterradores de violência, violações e assassinatos por parte de efetivos da Minustah contra a população civil haitiana e, por outro, a ONU que impede a intervenções da Justiça haitiana. A ONU também não toma sua responsabilidade, como ficou demonstrado com a introdução da cólera, e se nega a fazer reparações alegando a imunidade de seus efetivos, sem importar o que estes tenham feito”, afirma Fernando Moyano, pesquisador e militante político, publicado por Rebelión, 13-06-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
O senador haitiano Moíse Jean Charles, um dos principais dirigentes políticos de oposição ao atual governo neo-duvalierista do Haiti, que conta com um grande prestígio entre sua população, veio novamente ao Uruguai.
Esteve em terras uruguaias em outubro do ano passado e, entre outras coisas, reuniu-se com o presidente José Mujica a quem apresentou, em nome do senado haitiano, o pedido para a retirada incondicional e imediata da Minustah (Missão da ONU para a Estabilização no Haiti). Naquele momento Mujica manifestou, em vários ambitos e também nesse encontro, que o Uruguai não seria a “guarda pretoriana” de um governo que não respeite o compromisso democrático e fosse, de fato, uma ditadura. Disse também que “Se fosse por mim, já havia ido embora”.
Nos dias seguinte o ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Luis Almagro, viajou para Nova York e o Haiti para realizar essa interpelação frente às Nações Unidas e o próprio presidente haitiano Michel Martelly. Três condições foram apresentadas por Almagro, com as quais o Uruguai retiraria a totalidade se suas tropas de forma imediata:
-Aprovação da lei eleitoral, em acordo com a oposição haitiana.
-Integração do conselho eleitoral, com o mesmo critério.
-Realização de eleições com plenas garantias.
Logo, o parlamento uruguaio prorrogou, em dezembro, a presença de tropas no Haiti, contudo indicando o começo de uma retirada de tropas e facultando ao Poder Executivo a retirada total e imediata se o governo haitiano não cumprisse as garantias democráticas.
Entendendo que essa é precisamente a situação atual no Haiti, para informar tal situação ao governo, ao povo e ao Parlasul (Parlamento do MERCOSUL) reunido em Montevidéu, e para corroborar se esta continuará sendo a postura do governo uruguaio, isto é, de “não ser a guarda pretoriana de uma ditadura”, Moíse reuniu-se na terça-feira, dia 10, com o vice-minsitro Luis Porto e outros líderes do Ministério das Relações Exteriores.
Estes expuseram a Moíse que:
-O Uruguai rechaça todo tipo de colonialismo.
-O critério norteador definido por Mujica sobre o Haiti continua sendo a postura oficial do governo uruguaio. O que está em questão agora é a avaliação da situação haitiana e em, decorrência disso, haverá uma decisão definitiva de nosso governo neste assunto.
-Para isso o Uruguai já deu um primeiro sinal com a retirada de um terço de seus efetivos dispensados no Haiti.
-Se forem cumpridas as condições apresentadas anteriormente pelo ministro Almagro, o Uruguai continuará com a retirada progressiva, que será finalizada em 2016. No de caso de não serem cumpridas, irá proceder-se com a retirada total e imediata.
-Todavia, em todo momento, os membros do ministério destacaram que o Uruguai participa na intervenção no Haiti no âmbito da uma operação das Nações Unidas. O governo não aponta uma resolução unilateral do Uruguai, mas uma ação coordenada com outros países participantes e com a ONU.
De sua parte, Moíse informou o seguinte sobre a atual situação haitiana.
Não foram realizadas eleições, em vez disso prorrogou-se por um ano o mandato de um terço do senado que estava por expirar e postergou-se para outubro a eleição parcial do senado. A lei eleitoral refere-se apenas a este e outros aspectos parciais. Contudo o povo haitiano segue manifestando-se pela renuncia de Martelly e por eleições presidenciais imediatas.
O conselho eleitoral nomeado pelo governo não tem uma composição plural, é presidido pelo advogado de Baby Doc Duvalier, e composto por outros personagens das ditaduras anteriores e do aparato repressivo.
A repressão não acabou no Haiti. Foram realizadas detenções sem ordem judicial, até mesmo Moíse, que tem impunidade parlamentaria, foi detido, ameaçado e inclusive agredido por agente policiais, e conseguiu evitar males maiores apenas porque é uma pessoa conhecida entre a população.
Não apenas a cólera, introduzida pelas tropas nepalesas da Minustah, retiraram vidas no Haiti, com mais de 8.000 mortos. Surgiram também a lepra, a dengue e outras enfermidades que eram desconhecidas ali.
Em maio, ao fim do prazo para cumprir o pedido do senado de retirada das tropas, uma delegação da Minustah entregou um documento a Moíse anunciando a intenção de retirar-se entre 2015 e 2016. Contudo esse plano de retirada inclui o projeto de passar o bastão para uma “Minustah II”, que continuará a intervenção, para a qual são consideradas as diferentes opções: uma missão civil de “manutenção da paz”; uma missão de uma força policial internacional, uma redução dos efetivos militares atuais, ou sua substituição por outra força militar menor com outros países. Moíse rechaçou todas essas alternativas, e continua solicitando a retirada incondicional, total e imediata.
Além de agradecer a Moíse por esta informação, assegurando-o que será levada em conta na avaliação que está em curso – juntamente com as outras –, o vice-chanceler Porto manifestou que para definir a legitimidade – ou ilegitimidade – democrática de um governo deve-se ter dois critérios: sua origem e seu comportamento. E neste caso a informação fornecida aponta que o atual governo haitiano não cumpriria com a segunda condição.
Assim, Porto apresentou a pergunta chave que sempre preocupou aqueles que defendem a intervenção militar no Haiti “o dia seguinte”.
Ou seja, queria conhecer, com franqueza, a opinião de Moíse frente a este problema: Eclodiria uma guerra civil entre os haitianos após a retirada da Minustah?
“Não tema pelo Haiti”, contestou Moíse, explicando que a Minustah não cobre a totalidade do território haitiano, apenas as grandes cidades. Também não trata, nos locais onde está, dos problemas da população que demandam de atenção policial, e respondem que “nós não estamos aqui para isso”. Ela está apenas para tratar dos problemas políticos, como reprimir os protestos políticos. A Minustah pressiona resultados eleitorais, não é uma garantia para a realização de eleições democráticas, mas um bloqueio.
Embora tenha anunciado durante dez anos a iminência de uma guerra civil no Haiti, para assim justificar a presença da Minustah, não apenas isso não ocorreu, como não há nenhum indício de que irá ocorrer, os haitianos convivem em paz, salvo os problemas de ordem policial que são correntes em outros países e dos quais a Minustah não se ocupa. Em dez anos não houve nenhum esforço para fortalecer a policia haitiana, ou para conseguir-se uma estabilidade política democrática, nem pelo bem-estar da população que sofreu com as catástrofes e graves penúrias. O Haiti não é um cenário de guerra e, portanto, o cenário de tropas de intervenção não se ajusta a própria Carta da ONU. O Haiti também não é uma ameaça para o Brasil, Argentina ou Uruguai, nem está em condições de sê-lo para nenhum país, em especial os países irmãos.
Para retificar esta situação o povo haitiano espera que o Uruguai, que também é um país pequeno, possa dar um pequeno grande primeiro passo.
Até aqui está o que foi apresentado por Moíse.
As organizações sociais uruguaias, que temos acompanhado de maneira mais próxima em relação a este problema e que tem feito repetidas propostas as autoridades, que tem organizado esta visita de Moíse e assim como a anterior, e de outros porta-vozes do povo haitiano, sempre foram defensoras do pedido de RETIRADA TOTAL, IMEDIATA E INCONDICIONAL, e continuam sendo.
Desse modo, e em consonância com o princípio de não intervenção e de autodeterminação dos povos, não podem estar de acordo com o critério do governo de tutelar, por meio de uma intervenção militar em um país estrangeiro, a instalação de uma suposta democracia.
Por mais que se levante a bandeira do anticolonialismo, a intervenção no Haiti é colonialista por sua forma e por seu conteúdo.
Primeiro por sua forma, porque viola já de início o princípio de autodeterminação dos povos, e porque não corresponde aos uruguaios nem a ONU nem a terceiros países em determinar, nem condicionar o regime político que se dará com os próprios haitianos. O governo haitiano do povo, pelo povo e para o povo será do povo haitiano, o que não o for será um contrassenso.
E por seu conteúdo, porque de fato a intervenção no Haiti sempre foi colonialista em seu sentido estrito. A Minustah nasceu a partir de uma intervenção armada francesa para sequestrar e derrubar o presidente haitiano legítimo e democraticamente eleito, Jean Baptiste Aristide, em 2004.
Sob o amparo dessa intervenção promoveu-se, através de eleições ilegítimas e escandalosamente coagidas, a instalação do atual governo neo- duvalierista de Martelly.
Por seu conteúdo, o governo de Martelly tem sido nitidamente neocolonialista, porque abriu as portas para o saque dos recursos naturais do Haiti e a superexploração dos trabalhadores por parte das transnacionais imperialistas. Os protestos populares são respondidos com repressão direta da Minustah ou da polícia haitiana respaldada pela Minustah.
Buscou-se justificar a intervenção como necessária para “garantir o cumprimento dos direitos humanos”. Contudo a realidade é que a Minustah viola estes direitos do povo haitiano. Por um lado existem as denúncias por atos aterradores de violência, violações e assassinatos por parte de efetivos da Minustah contra a população civil haitiana e, por outro, a ONU que impede a intervenções da Justiça haitiana. A ONU também não toma sua responsabilidade, como ficou demonstrado com a introdução da cólera, e se nega a fazer reparações alegando a imunidade de seus efetivos, sem importar o que estes tenham feito.
Lamentavelmente, nosso país, o Uruguai, tem se envolvido em atos vergonhosos desse tipo. A violência soexual sofrida pelo jovem haitiano Johnny Jean por efetivo militares uruguaios não foram um caso isolado, apenas o mais notório. Outras situações já foram denunciadas. E elas também se resumem ao Haiti, anteriormente já houve numerosos casos de violações no Congo. São práticas cotidianas, como fica demonstrado inclusive pelo caso de um efetivo militar uruguaio levado ao suicídio por agressões similares as sofridas por Jhonny, na mesma base naval uruguaia do Haiti, que teriam ocorrido por a uma suposta vontade anticolonialista, ou a resposta à insustentabilidade da situação descrita, que também inclui atos já bem conhecidos de corrupção.
Por agora a própria realidade já havia forçado, antes inclusive das intenções de retirada progressiva e coordenada apresentadas na UNASUL, a retirada total e unilateral dos efetivos da Força Aérea Uruguaia, como consequência de um acidente aéreo com numerosas vítimas mortais, uruguaias e estrangeiras, visto que já é sabido que a Força Aérea enviou pilotos que não atendem aos padrões da ONU, que falsificam o cálculo de horas de voo para fazer como que se estivessem sendo cumpridas.
Todas essas corrupções e abusos não ocorrem por causalidades. São típicas das forças armadas colonialistas. E que são mesmo motivo pelo qual ocorrem as expressões racistas de oficiais uruguaios no Congo.
Além disso, e antes de qualquer coisa, a Minustah é uma força de intervenção colonialista porque está sustentando um governo títere pró-imperialista, que está ali para abrir as portas para a recolonização do Haiti para as mesmas transnacionais e as mesmas potências imperialistas que o saquearam, espoliaram e submeteram vilmente o país, durante quase dois séculos, com castigos por ter protagonizado a primeira revolução triunfante contra o colonialismo e a escravidão.
Não se pode ser anticolonialista e participar na Minustah. A Minustah é o colonialismo.
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Pode haver um anticolonialismo colonialista? O caso do Haiti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU