04 Junho 2014
Com Piero Stefani, estudioso e professor de judaísmo, ativo há anos no diálogo cristão-judaico, comentamos a viagem de Francisco à Terra Santa.
A reportagem é de Laura Caffagnini, publicado no jornal Vita Nuova, da diocese italiana de Parma, 01-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Uma viagem que ocorre no 50º aniversário de um histórico encontro...
O gesto entre Paulo VI e Atenágoras é o preâmbulo que levou a um ato bilateral: a revogação recíproca das excomunhões, fruto mais imediato daquela viagem, sem o qual as afirmações da atual declaração comum de Francisco e Bartolomeu nunca teriam existido. Esse aspecto primário da viagem ocorre em um contexto diferente de 50 anos atrás, muito mais plural e forçado, pelos fatos, a se ocupar de outros fatores.
Mesmo com relação à opinião pública, na viagem, a situação no Oriente Médio e o conflito israelense-palestino tiveram uma prevalência. Há 50 anos, não existia o muro entre a Palestina e Israel, não havia os Territórios ocupados, não havia a Autonomia Palestina que aspira a se tornar um Estado. Não havia o reconhecimento do Estado de Israel por parte da Santa Sé. Agora, o quadro é muito mais articulado do que antes, e, portanto, o papa teve que jogar em muitos planos e demonstrou que sabe fazer isso.
A declaração enumera os gestos para se preparar para o dom da comunhão eucarística que ainda não temos.
É um ponto, penso eu, enfatizado talvez mais da parte ortodoxa do que católica. Do lado católico, em relação ao mundo ortodoxo, não há um obstáculo particular para a partilha da Eucaristia. É antes o mundo ortodoxo que não admite por motivos rituais. A Igreja Católica não teria dificuldades particulares do ponto de vista doutrinal.
O senhor olha com esperança para além desse encontro?
Sim, mas também vejo o problema da representatividade intraortodoxa de Bartolomeu. Há 50 anos, por razões históricas evidentes, Atenágoras não sofria, desculpem a expressão, a concorrência do Patriarcado de Moscou, que hoje tem um peso relevante no cenário público mundial.
À luz do anunciado Sínodo pan-ortodoxo, Bartolomeu teria maior representatividade.
O Sínodo pan-ortodoxo seria muito importante. Mas se trata de um projeto anunciado há muito tempo, e ainda não são previsíveis os tempos da sua realização. Também será preciso ver as modalidades do seu desenvolvimento. No entanto, é uma passagem-chave dentro da sinodalidade do mundo ortodoxo. O papa, qualquer que seja, é um indivíduo que representa a totalidade da Igreja Católica. Na Ortodoxia, não é assim. Estamos diante de duas concepções eclesiais diferentes.
Depois, resta a questão ecumênica em geral: o que significa essa aproximação em relação às Igrejas da Reforma? O ano de 2017 – a data em que cairão os 500 anos desde a Reforma – não está tão longe. Será uma ocasião para relançar o diálogo ecumênico?
Voltando para a área onde se realizou a viagem de Francisco não devemos esquecer que há outras Igrejas presentes na região, por exemplo, as Igrejas palestinas, as pequenas Igrejas hebraico-cristãs. O documento expressa a preocupação mais do que compreensível pelo futuro dos cristãos em todo o Oriente Próximo.
E o contexto em que o documento foi escrito?
O lugar do encontro é Jerusalém. No entanto, não foi tematizado de modo particular o fato de que o encontro tenha ocorrido lá, embora, obviamente, haja uma referência nesse sentido, mas não importante. Tudo isso me parece indicativo do fato, sem dúvida estabelecido, de que o mundo da Ortodoxia ainda não reabriu a discussão sobre a relação entre cristianismo e povo judeu. O texto, por exemplo, não faz nenhuma referência à Igreja mãe de Jerusalém, constituída por judeus.
O lugar da assinatura deveria levantar o problema da relação entre o ecumenismo intracristão e as relações específicas com o povo de Israel, mas, em vez disso, fala genericamente de promover as relações com o judaísmo, o Islã e as outras religiões. Entendem-se bem todos os aspectos positivos, assim como é altamente positivo o desenvolvimento de todo diálogo ecumênico. No entanto, previsivelmente, ficou ausente o argumento expresso por Carlo Maria Martini com estas palavras: "É muito importante que os cristãos promovam a compreensão da tradição judaica, a fim de entender mais autenticamente a si mesmos".
Com efeito, a única referência ao mundo judaico, "terra" de Jesus e da Igreja nascente, é a exortação a "promover um autêntico diálogo com o judaísmo, com o Islã e com as outras tradições religiosas".
É evidente que, uma vez inserido no apelo geral ao diálogo inter-religioso, o judaísmo é visto em pé de igualdade com as religiões não cristãs, e não como a raiz da qual nasceu a Igreja. Gostaria de acrescentar que, de forma bastante paradoxal, em toda a viagem, as referências à vida de Jesus não desempenharam um papel particularmente significativo. O ritual secular das entrevistas com os jornalistas na viagem de retorno vale pelo que vale, no entanto, é um sintoma, e, se não me engano, nem por parte dos entrevistadores, nem do entrevistado, apareceu o nome de Jesus nesse âmbito.
Como o senhor vê o gesto inovador no muro que divide Palestina e Israel?
É um gesto muito importante e inventivo, um gesto arriscado, em sentido positivo. Logo se entendeu que estava fora do cerimonial e que era dotado pela força própria das novidades. Como era previsível, a opinião pública israelense não o viu muito favoravelmente. Mas Francisco se concede, por causa do seu extraordinário carisma e da empatia que ele inspira, aquilo que para outros é proibido. Uma imagem forte do que significa ser livre.
E que parece especular à parada no outro muro, o Ocidental, que os antecessores de Francisco também realizaram.
Sim, esse ato, depois de João Paulo II, entrou no ritual. Parece um gesto já quase normal, mas se trata de um ato surpreendente, se pensarmos que esse muro, do lado cristão, foi assumido por muito tempo como símbolo da rejeição do povo judeu por parte de Deus. Nesse sentido, a admissão das culpas da Igreja escrita no bilhete posto entre aquelas pedras por João Paulo II foi uma passagem decisiva. A novidade de Francisco nessa ocasião está sobretudo no fato de ter sido acompanhado por um rabino e por um imã. Uma escolha também orientada a realizar uma espécie de equiparação das relações entre judaísmo e Islã, uma boa escolha do ponto de vista da paz, ao menos do ponto de vista teológico.
Como o senhor vê o convite a Abu Mazen e a Shimon Peres para se encontrarem em Roma?
Certamente positivo, mas também um indicativo da dificuldade de encontrar uma referência na região. O Vaticano – ou Santa Marta –, no entanto, não são Washington, onde, sob o patrocínio de Clinton, ocorreu o histórico encontro entre Rabin e Arafat. Com toda a probabilidade, será um ato de valor puramente simbólico. O ponto crucial é outro, ou seja, saber se depois de quase 50 anos de ocupação israelense e de 20 anos de autonomia nacional palestina ainda há condições históricas, políticas e sociais para a solução "dois povos, dois Estados", que teria sido possível décadas atrás. Se olharmos para a situação concreta dos Territórios, as dúvidas nesse sentido são muito fortes. O prolongamento indefinido da não solução faz surgir a dúvida se a anomalia é a maior normalidade possível por essas partes.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco e Bartolomeu em Jerusalém. Entrevista com Piero Stefani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU