05 Junho 2014
"Se a realidade não apresenta mutantes com poderes extraordinários, conforme as histórias dos X-Men, muitos são os diferentes que reivindicam seu lugar e seus direitos na sociedade e que são vistos como ameaças a partir do discurso de normalidade que adotamos em nossa cultura." A afirmação é de Renato Ferreira Machado, doutor em Teologia, ao comentar o filme X-Men: Dias de um Futuro Esquecido.
Eis o artigo.
Na década de 1960, a Editora Marvel inovou o mundo das histórias em quadrinhos ao lançar super-heróis humanizados, que viviam suas aventuras em uma sequência lógica, respeitando acontecimentos passados em histórias anteriores. A editora criava, assim, o conceito de cronologia para o universo dos super-heróis e inscrevia suas aventuras não mais em uma simples série de “histórias”, mas em uma grande e única “história”. Junto a isso, a personalidade destes super seres ficava longe das idealizações encontradas neste meio literário: a Marvel procurava retratar da forma mais realista possível os desdobramentos da possível existência de pessoas com super poderes no contexto social, cultural e político. Nesta aproximação, além da elaboração de personagens que portavam as angústias de um ser humano comum frente a grandes responsabilidades, buscava-se também retratar as grandes questões que permeavam a sociedade estadunidense da época. Assim, em 1963, Stan Lee e Jack Kirby criaram aqueles que talvez fossem seus personagens de maior apelo político: o grupo de super-heróis chamado de X-Men.
Equipes formadas por super seres não eram novidade no mercado de quadrinhos da época, uma vez que a própria Marvel já havia lançado grupos como o Quarteto Fantástico e reunido seus personagens mais famosos nos Vingadores. A questão com os X-Men, porém, era o horizonte no qual estes caracteres se inscreviam: ao contrário de outros heróis, que haviam adquirido seus poderes, os integrantes dos X-Men já haviam nascido com eles. Criava-se, assim, no universo Marvel, o conceito de mutante, ou seja, uma pessoa nascida com genética diferenciada e que, na puberdade, manifestaria algum “dom” sobre-humano. Se, no senso comum da literatura super-heróica, superpoderes eram algo maravilhoso, que conferia outro status a seu portador, para os mutantes da Marvel, estes atributos eram verdadeiras maldições, pois além de não estarem sob o controle de seus portadores, os excluíam da sociedade.
A Marvel elaborava, assim, uma clara analogia com a questão das minorias sociais, excluídas por serem portadoras de traços específicos que marcavam suas identidades: afrodescendentes, hispânicos, homossexuais, além de um claro paralelo com o antissemitismo da Segunda Guerra e com a paranoia comunista da Guerra Fria. Sendo este o contexto da história dos mutantes, o enredo desta narrativa retratava duas atitudes possíveis para a problemática do preconceito: a inserção destes grupos na sociedade de forma pacífica, pela via da educação, com os mutantes colocando seus poderes a serviço da sociedade, ou a revolta dos mutantes contra seus opressores, através de uma revolução na qual os oprimidos tomassem o poder à força.
Personificando estes dois vértices, Stan Lee e Jack Kirby deram à luz dois personagens antagônicos, que no fundo, lutavam pela mesma causa: o Professor Charles Xavier, um mutante telepata que abre uma “escola para jovens superdotados” e se dedica à educação dos mutantes, com vistas à sua aceitação pública pela inclusão social; e Magneto, mutante que consegue controlar qualquer tipo de metal, que forma um grupo de guerrilha, a Irmandade dos Mutantes, com o objetivo de tomar o poder à força para que os mutantes tenham seu lugar assegurado. Há certa concordância em comparar Charles Xavier a Martin Luther King e Magneto a Malcom X, no contexto da inclusão étnica estadunidense da década de 1960. Considero, porém, que as histórias de King e Malcom X sejam bem mais complexas e multifacetadas que as aventuras dos mutantes. Interessa dizer aqui que estes personagens continuam sendo publicados desde 1963, tendo tido apenas uma interrupção editorial, no início da década de 1970. É uma longa história, que não cabe neste texto.
Nosso ponto é a encarnação destes personagens no cinema, que se deu no ano 2000, quando o diretor Bryan Singer assumiu o comando do primeiro filme dos X-Men. Aguardado há muito tempo pelos leitores de quadrinhos, a história contada no filme apresentava as questões básicas das HQs: a escola de Xavier, a ameaça de Magneto e, sobretudo, delineava a premissa básica dos personagens – a temática do preconceito. O personagem-chave da trama era o mutante canadense Wolverine, introduzido nas histórias dos X-Men em 1976. O filme ganhou duas sequências, em 2003 e 2006 e mais três spinoffs, com X-Men Origens: Wolverine (2009), X-Men: Primeira Classe (2011, contando as origens do grupo) e Wolverine Imortal (2013). Neste ano, ainda em cartaz nos cinemas, estreou X-Men: Dias de um Futuro Esquecido, novamente com Bryan Singer na direção. A produção se baseia em um arco de histórias dos mutantes publicado em meados da década de 1980 e trabalha com uma questão bastante complexa: se pudéssemos mudar o passado, a nova história que surgiria não seria apenas uma releitura da história original?
Ecologia da ação
A trama do filme começa em 2023, mostrando um futuro distópico no qual a obsessão por proteção contra os mutantes levou a humanidade a entrar em colapso. Neste cenário pós-apocalíptico, no qual mutantes e humanos que poderiam gerar mutantes são perseguidos, mortos ou segregados em campos de prisioneiros, uma pequena frente de resistência se organiza para tentar reverter esta situação. O grupo é formado pelos X-Men que sobreviveram ao massacre de sua espécie, liderados por dois inimigos que se tornaram aliados: Charles Xavier e Magneto. A grande ameaça que os assombra são os Sentinelas: robôs capazes de detectar mutantes, adaptar-se aos poderes destes e captura-los ou exterminá-los. A sobrevivência do grupo tem sido possível graças ao poder de um de seus mebros, Kitty Pride, que pode fazer a mente de outra pessoa regressar no tempo e despertar em seu próprio corpo no passado. Assim, sempre que os mutantes são encontrados pelos Sentinelas, um dos membros regressa mentalmente alguns dias no passado e avisa o grupo do que acontecerá. O grupo, assim muda seus planos e evita o ataque futuro, sobrevivendo destas brechas temporais.
A tática, no entanto, já dá sinais de esgotamento, pois os X-Men vem sendo atacados cada vez mais rapidamente. Buscando uma solução definitiva, Xavier sugere que alguém tenha sua mente enviada para o ano de criação dos Sentinelas, 1973 e tente mudar o que ocorreu naquele ano. Como Wolverine tem a capacidade de regenerar seu corpo rapidamente, ele é o único que poderia ter sua mente enviada tanto tempo no passado sem ficar demente. Assim, enquanto seu corpo repousa no futuro, ele desperta na década de 1970 com a missão de impedir o assassinato de Bolivar Trask, criador dos Sentinelas.
Quando vai realizar a transferência mental de Wolverine, Kitty lhe orienta dizendo: “Você vai adormecer e, quando despertar, estará em seu corpo, em 1973. A partir do momento em que você despertar, tudo o que fizer será história”. Despertar para inscrever historicamente a existência é uma ideia que parece ir ao encontro do conceito de ecologia da ação, defendido por Edgar Morin: para o filósofo sefardita, nenhuma ação ocorre de maneira isolada ou individual, mas se inscreve em um contexto, podendo provocar efeitos contrários aos de sua intenção inicial. Desta forma, o envio de Wolverine ao passado, para alterar o curso da história, trará outras consequências, que vão muito além da intenção inicial. Se a vida do criador dos Sentinelas é poupada, a ação desempenhada para que isso aconteça acaba desencadeando uma verdadeira onda de pânico quanto à presença dos mutantes entre os seres humanos. Graças a isso, Trask tem seu programa bélico aprovado pelo governo Nixon e desenvolve seus androides com mais rapidez, tendo o aval da opinião pública para combater a “ameaça mutante”. No fundo, mostra-se que a história, em si, é mutante devido à complexidade das ações humanas: se não é possível voltar no tempo, é possível revisar os fatos a ponto de, dando-lhes novas interpretações, reescrever aquilo que havia sido historicamente estabelecido.
A mutante condição humana
Bolívar Trask tenta convencer as Nações Unidas a apoiarem seu projeto durante a assinatura do Acordo de Paris para o Fim da Guerra e Restauração da Paz no Vietnã, em 27 de janeiro de 1973: junto aos líderes militares e políticos signatários do tratado, Trask se apresenta como alguém que pode proteger a humanidade de um inimigo mais poderoso do que aqueles que foram enfrentados na guerra. E o perigo vem exatamente do fato destes inimigos se parecerem com “pessoas normais”, mas serem mutantes. Trask criou meios para detectá-los e,assim, agir preventivamente, antes que os mutantes ameacem a paz mundial. O cientista é interpretado por Peter Dinklage, ator estadunidense que é anão. Seu personagem não guarda semelhanças físicas com o original dos quadrinhos, mas a condição de nanismo traz um subtexto interessante para a trama. Ora, se um mutante é alguém que tem seu DNA diverso da maioria dos de sua espécie, o nanismo também é uma mutação. Portanto, Bolívar Trask combate aqueles que apresentam uma condição humana semelhante à sua, pois ele também é um mutante. Talvez sua motivação seja a de se mostrar um humano valoroso, apesar de uma condição física diferenciada e, para fazer isso, ele adota a estratégia de apontar aqueles que são ainda mais diferentes.
A mentalidade do personagem parece remeter a uma deontologia, na qual todos precisam se adaptar aos padrões estabelecidos pelo meio, sob pena de, apresentando padrões diferenciados, ameaçarem a existência do todo. Se a realidade não apresenta mutantes com poderes extraordinários, conforme as histórias dos X-Men, muitos são os diferentes que reivindicam seu lugar e seus direitos na sociedade e que são vistos como ameaças a partir do discurso de normalidade que adotamos em nossa cultura. Facilmente podemos lembrar aqui movimentos sociais que são apresentados como ameaças à população e associados com a criminalidade ou com a imoralidade. Ao lado deles, a própria condição de alguns atores sociais, como pertencerem a determinadas etnias ou classes sociais, os coloca como ameaçadores mutantes que ameaçam a todos com seu jeito de ser e cultura próprios. Diante destes mutantes, cria-se a paranoia do roubo, dos maus-modos, da falta de educação e, no caso específico do Brasil, nosso próprio complexo de vira-latas: o brasileiro típico, afinal, é apenas uma mutação das pessoas de verdade, que habitam os Estados Unidos e os países ricos da Europa. Por isso, a solução é segrega-los, encarcera-los e colocar rigorosos sentinelas para vigiá-los. Assim, talvez, cheguemos ao futuro mostrado em X-Men – Dias de um futuro esquecido.
Até que ponto da história precisaríamos regressar para que esta realidade fosse diferente? Ou será que ainda não despertamos e, portanto, nossas ações ainda não são “história”? Por isso, o caminho para esta transformação se encontra em uma promessa que Xavier faz para Woverine em 1973: que ele não desistirá de reunir os mutantes que encontrar para concretizar seu projeto educativo e inserir seus alunos no contexto social de forma propositiva. O que norteia Xavier é a crença de que há lugar para todos na sociedade e que esta pode ser o lugar de convívio entre diferentes. Mesmo com este propósito reafirmado, a cena final do filme alerta para uma ameaça que vem de um passado ainda mais distante. No Egito antigo, um jovem constrói as pirâmides utilizando poderes extraordinários, enquanto é adorado como uma divindade por uma multidão que canta seu nome: Em Sabah Nur. Trata-se de Apocalipse, o primeiro mutante que existiu. Tal como o fascismo, a extrema direita e o neonazismo que retornam ao poder na Europa, esta tirânica força ancestral está pronta para voltar a agir.
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X-Men: a História é mutante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU