15 Mai 2014
Em vista dos dois Sínodos sobre a família, publicamos aqui um comentário do teólogo italiano Gianni Gennari, ex-professor das universidades Lateranense, Marianum e Ecclesia Mater.
O artigo foi publicado no sítio Vatican Insider, 11-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Páginas e páginas nos jornais a propósito de justiça, de um lado, e de misericórdia, de outro. Assim ao menos aparentemente. Parece que quem pede respeito pela verdade é contra a misericórdia, e que quem pede misericórdia é contra a justiça e verdade...
Cardeais daqui, cardeais de lá. Os jornais competem para colocá-los em conflito: particularmente, ei-los Kasper contra Müller, agitados e prontos para o uso, nos vários "Foglios", e talvez mais ou menos mal-entendidos em um sentido ou no outro... Tudo à espera dos dois Sínodos, ainda distantes...
Um "banco" no qual será preciso preciso esperar muito, para muitos que veem o ringue mesmo onde simplesmente há troca de ideias diferentes, até mesmo encorajada por Francisco, que quis uma abertura plena, inédita no passado e até mesmo proibida, às perguntas de todos, para preparar uma resposta que valha para todos e que respeite tanto a justiça quanto a misericórdia, ambas essência da revelação de Deus em Jesus Cristo.
Comunhão para os divorciados em segunda união
Tomo como exemplo o tema, que parece candente, do tratamento aos divorciados em segunda união. É preciso dizer com clareza que a indissolubilidade do verdadeiro matrimônio é doutrina da Igreja, porque é palavra inequívoca de Jesus. Sobre esse ponto de doutrina, nenhuma mediação é ou será possível.
O "grande mistério" do amor homem-mulher, o que revela na sua dualidade a imagem muito semelhante do Criador (Gn 1, 26) confirmada e exaltada pela Palavra do Senhor, está ali: o ponto de partida de qualquer diálogo dentro da comunidade eclesial.
É um fato. Mas segue a pergunta: isso também inclui, inexoravelmente, que, quando um casamento se rompe, por infidelidade de um ou de ambos os cônjuges, também está definitivamente resolvido de forma negativa o problema da pertença viva dos dois à Igreja, porque eles permanecem inexoravelmente marcados por aquele "sim" pronunciado uma vez e depois negado, a tal ponto que, embora fazendo parte da Igreja, absolutamente não podem fazer a Comunhão, salvo se confessarem os pecados, e particularmente aquele "pecado" capital, e salvo se se arrependerem verdadeiramente, o que não pode se manifestar senão com a interrupção de toda relação subsequente que se assemelhe ao matrimônio? É concebível uma disciplina eclesial que tenha também alguma nuance em sentido positivo?
Certamente, na vida da Igreja, em 2.000 anos, sempre houve algo do gênero: uma saída, por exemplo, com o pedido de anulação ou declaração de nulidade por um tribunal eclesiástico é de uso comum, o que restitui também a possibilidade da comunhão eucarística sem contradizer explicitamente a palavra de verdade absoluta.
Do ponto de vista histórico, uma disciplina diferente, oficialmente, existiu e existe nas Igrejas-irmãs orientais não católicas, com condições e realizações múltiplas. Não é um detalhe para não se pensar, por sentido de responsabilidade para com Deus e para com os homens irmãos, também em termos de ecumenismo vivo.
Do ponto de vista estritamente pastoral, depois, também é conhecido que muitas vezes autores católicos até – penso em um parecer de Bento XVI nas suas conversas publicadas e conhecidas – pensaram em uma possibilidade de um resultado diferente no contexto de um conhecimento específico de casos particulares com conhecimento da realidade por parte do "pastor", que não fazem uma norma, mas podem intuir que o problema não é automaticamente resolvido para todos e para sempre...
Eu acredito que uma perspectiva desse tipo também está presente no "relatório Kasper", realizado por encargo do Papa Francisco e surpreendentemente elogiado por ele publicamente, embora também saibamos que de outras partes ilustres ela foi e é não apenas discutida, mas também duramente contestada...
Algumas reflexões problemáticas
É difícil chegar aqui a outras conclusões, mas acredito que algumas reflexões problemáticas podem ser possíveis.
A lição de Emaús e a da Última Ceia
No domingo passado, dia 4, a liturgia propôs aos católicos de rito latino a belíssima aventura dos "discípulos de Emaús", que na estrada da renúncia à esperança em Cristo o encontram semelhante a um viandante misterioso, que coloca o coração deles em tumulto, aquecendo-o com uma nova esperança, e ele é reconhecido no seu "partir o pão".
Essa é – escreveram os exegetas há séculos – uma espécie de segunda "Última Ceia", a segunda Eucaristia terrestre celebrada pelo próprio Jesus, agora ressuscitado...
Mas se eles o reconheceram ao partir aquele pão, então é sinal de que na "primeira" Eucaristia, a da Quinta-Feira Santa, eles também estavam. Eles também, e sabe-se lá quantos estavam com Jesus e os Doze naquela noite. É pensável que também estivessem Maria e as irmãs de Lázaro? Pensável, certamente... E então Jesus deu o "seu" Pão a todos? Mesmo a eles? Pensável, realmente!
Mas não basta: certamente, Jesus deu o seu Pão também a Judas! João diz isso explicitamente no seu Evangelho. E Jesus sabia quem era Judas e o que estava prestes a fazer... Além disso, Jesus deu aquele Pão também a Pedro, mesmo sabendo e dizendo-lhe o que ele faria, por três vezes, naquela mesma noite...
Não só: é pensável que todos os outros presentes naquela Ceia eram todos sem pecado? Pensável, mas o contrário também é pensável.
Jesus não rejeitou o seu Pão e o seu sangue a ninguém naquela noite! Certamente, aquela era a noite daquele Pão, e para Judas – ainda é João que parece descrever isso com misteriosa alusão (Jo 13, 27) – foi como se estivesse cedendo a si mesmo por inteiro ao demônio.
E também é exatamente isto: a Eucaristia é um ato fatal. É o celebrante principal na liturgia latina que diz isso, logo antes de comungar, invocando misericórdia: "Senhor Jesus Cristo, o vosso Corpo e o vosso Sangue, que vou receber, não se torne causa de juízo e condenação; mas, por vossa bondade, sejam sustento e remédio para minha vida".
São Paulo também diz isso: "Todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor (…) e come e bebe a própria condenação" (1Cor 11, 27-29).
É um caso sério o da comunhão dos pecadores não arrependidos. Mas quem pode realmente julgar este ou aquele pedido de acesso à comunhão? Se um cristão, pecador e consciente de sê-lo, em uma situação em que não tem uma possibilidade concreta de reparar uma situação negativa que o atingiu, sobretudo se na sua origem ele é a parte inocente, deseja se aproximar e e pedir a comunhão, quem – homem como ele, pecador como ele – tem o poder absoluto de decidir pelo "sim" ou pelo "não"?
Jesus deu aquele Pão a todos, também aos dois traidores, Judas e Pedro, com resultado que depois foi diferente; antes, ambos eram traidores, e talvez Pedro o fosse ainda mais, não apenas por três vezes, mas pela relação diferente que teve Jesus e pela Sua escolha daquela "pedra" (Mt 16, 18)!
E então? Então, vale a pena dialogar, interrogar-se sem amarguras recíprocas, esperar pelos dois Sínodos vindouros, e não só sobre a comunhão aos divorciados em segunda união, mas sobre toda a realidade em fermentação da problemática da sexualidade, do matrimônio, das implicações entre ciência, psicologia e existência de fé na comunidade eclesial.
Um pensamento particular sobre o tema da sexualidade e do casamento
Não posso concluir esta reflexão sem mencionar uma problemática particular, que diz respeito à atual disciplina vigente na Igreja Católica precisamente sobre a questão da comunhão aos divorciados em segunda união.
Não acho que digo algo infundado quando lembro que, muitas vezes, entre os conselhos dados aos casais de divorciados em segunda união, homens da Igreja dizem que sim, eles também podem voltar a fazer a comunhão, confessando-se com pleno arrependimento e comprometendo-se a viver "como irmão e irmã".
A fórmula diz que, na prática, é legítimo a eles querer-se bem, conviver, compartilhar afeto e delicadeza, dons e alegria para seguir em frente na vida também dentro da comunidade eclesial, mas com aquela condição única: nada de união conjugal!
Talvez não se pense nisso, mas isso equivale a identificar toda a essência da relação de amor ao exercício da sexualidade propriamente conjugal. E, francamente, parece um excesso!
Eu acredito que, do ponto de vista de uma visão equilibrada das relações de amizade homem-mulher, reduzir a substância de tudo às relações sexuais é sinal de um não perfeito equilíbrio entre os bens em questão... Uma concepção da sexualidade reduzida à relação sexual talvez revele graves limites da visão que, pouco a pouco, se impôs, também em ambientes da Igreja, com consequências que oscilam entre sexofobia e sexomania, diversamente distribuídas também em ambientes eclesiásticos e de vida cristã na comunidade.
Dizer a dois divorciados em segunda união que eles podem continuar se querendo bem, convivendo, participando da própria vida cotidiana, dos mesmos interesses religiosos, e culturais, e afetivos, e de trabalho, e de todo o restante da vida cotidiana, mas que lá, naquele âmbito específico e marcado por uma linha de fronteira seca, eles não podem avançar parece no mínimo problemático...
Além disso, é o complexo problema do modo de ver a realidade do matrimônio, dos seus "fins" não mais hierarquizados rigidamente como se deu a partir de Santo Agostinho, em relação ao qual o Concílio Vaticano II deu um passo decisivo.
Desde então, passaram-se 50 anos, cheios de perguntas, as quais o Sínodo terá que ao menos tentar responder: em diálogo fraterno entre os crentes, homens da Igreja, ministros sagrados, esposos cristãos também eles "ministros" do seu matrimônio, e sem ataques ou ringues aos quais pouco a pouco sobem cardeais, bispos, teólogos e jornalistas em busca de "furos"...
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Entre Kasper e Müller, não se bota a colher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU