30 Abril 2014
Na semana passada assisti a algo bastante peculiar se desdobrar num auditório da Universidade Municipal de Nova York. Uma coleção de zelosos economistas americanos se encontraram para refletir sobre uma brochura de 577 páginas a respeito de desigualdade e políticas de impostos escrito por Thomas Piketty, 42 anos, professor de economia em Paris.
A reportagem é de Gillian Tett, publicada pelo jornal Financial Times, 25-04-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Longe de ter sido apenas mais um encontro acadêmico, o evento foi tão procurado que as entradas se esgotaram e o debate precisou ser reproduzido num telão num outro auditório. Mas as emoções não param por aqui. Nos últimos dias, o novo livro de Piketty – “Capital in the Twenty-First Century” [O capital no século XXI] – subiu nas listas dos livros mais vendidos e suscitou intermináveis posts em blogs, debates e comentários.
A Casa Branca e o Departamento de Tesouro americano têm mantido conversas com o autor francês. Um segmento inteiro do programa televisivo chamado Morning Joe – apresentado em horário nobre – refletiu sobre sua ideia de reforma fiscal (com um dos apresentadores declarando: “Eu simplesmente não acho que um bilionário deve pagar 14% de imposto!”). O interesse está tão alto que a revista Nova York chamou o autor francês de o “Economista Rock-Star”. Nada mal para um intelectual de esquerda que (quase) ninguém nos EUA tinha ouvido falar até um mês atrás, e especialmente porque seu livro sustenta, em essência, que a riqueza herdada e a desigualdade aumentaram demasiadamente e que esta só pode ser contida aplicando-se impostos muitos mais altos do que há hoje.
O que explica esta animação toda? Alguns analistas podem responder a esta pergunta baseando-se nos fatos: o tomo de Piketty está extremamente baseado em pesquisas e contém inúmeras estatísticas mostrando que o economista americano Simon Kuznets estava errado ao sustentar, na década de 1950, que as economias se tornariam mais igualitárias na medida em que amadurecessem. Pelo contrário, Piketty argumenta que a desigualdade cresceu nos EUA e na Europa na última década porque um novo quadro de “superadministradores” [ou supergerentes, altos funcionários das corporações] capturou mais rendimentos e os rendimentos da riqueza acumulada já ultrapassaram o ritmo (modesto) do crescimento econômico. Isso significa que as pessoas que já são ricas estão se tornando mais ainda prósperas, e muitas delas herdam suas riquezas.
Mas eu suspeito que a verdadeira razão para se recepcionar Piketty como uma estrela de rock não é a qualidade de seus números, mas o fato de que ele forçou os americanos a se confrontarem com a sensação crescente de dissonância cognitiva. Há quase dois séculos e meio, quando os pais fundadores criaram a nação americana, eles orgulhosamente acreditavam ter rejeitado a tradição europeia de uma aristocracia hereditária e de riqueza rentista. Pelo contrário, presumia-se que as pessoas deviam se tornar ricas através do trabalho duro, do mérito e pela competição.
Portanto, as desigualdades de riqueza eram frequentemente toleradas porque todos tinham a esperança de enriquecerem. Este era o sonho americano que nutriu ondas admiráveis de energia empreendedora e – de modo decisivo – forneceu uma coesão social.
O livro de Piketty mostra que este sonho é um mito. Nas décadas passadas, observa o autor, os Estados Unidos eram de fato mais igualitário do que a Europa. Mas hoje a riqueza no país é distribuída de forma mais desigual do que praticamente em qualquer outro lugar, e os rendimentos da riqueza acumulada são tão altos que as fortunas estão, cada vez mais, sendo herdadas – e não feitas.
A maioria dos americanos sabe ou tem a sensação disso. E antes mesmo que Piketty chegasse, esta questão já estava provocando um mal-estar. Investigações recentes feitas pelo Centro de Pesquisa Pew, por exemplo, sugerem que dois terços dos americanos pensam que sua sociedade está se tornando mais desigual, enquanto que 90% dos liberais, e 60% dos conservadores moderados, querem que o governo resolva esta questão. Enquanto isso, referências na mídia à “desigualdade” e “Estados Unidos” estiveram cinco vezes mais presentes no ano passado do que em 2010 ou 2005, segundo o banco de dados do Factiva; neste mês referências a estes termos subiram para seis vezes mais.
O que o livro de Piketty fez é abordar este assunto com uma nova clareza; como um Alexis de Tocqueville moderno, ele forçou os americanos a se confrontarem com algumas de suas contradições (embora a mensagem de Tocqueville datada do século XIX seja completamente diferente desta de hoje). Isso não significa que a elite aceitará suas análises; pelo contrário, analistas da direita vêm atacando-o. Tampouco implica que Congresso acolherá o seu chamado por taxas de impostos drasticamente mais altos; isso parece completamente impossível.
Seja como for, a obra de Piketty põe o dedo na ferida presente no sonho americano atual. Claro que um sonho, como um cínico – ou um antropólogo – poderia dizer, não precisa, necessariamente, ser “real” para funcionar como um elemento de coesão social; o que se precisa é ter as pessoas acreditando na ilusão. Mas poderá o “American dream”, agora, sobreviver a uma mudança em direção à oligarquia? Poderá o mito igualitário, entretanto, agir como um fator de coesão social? Estas são as grandes perguntas implícitas no livro; e se a análise de Piketty estiver correta, elas só poderão se tornar mais agudas nos próximos anos na medida em que a desigualdade alimentar não apenas mais desigualdade, mas também uma maior dissonância cognitiva.
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Lições de um economista rock-star - Instituto Humanitas Unisinos - IHU