29 Abril 2014
Roncalli (esq.) na Turquia, onde era núncio, em uma foto de 1934 |
A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire, 26-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A assinatura dessa afirmação é daquelas que têm o seu peso: Alexandre Adler, um dos jornalistas e intelectuais franceses atualmente mais conhecidos. Judeu de família, Adler é hoje conselheiro da direção do jornal Le Figaro, além de colunista do mesmo jornal sobre as questões de política internacional, temática sobre a qual ele é particularmente bem versado depois de uma longa carreira que o viu trabalhar no Liberation, dirigir o Courrier International e escrever no Le Monde.
Em suma, o "pedigree" de Adler não é nada clerical nem pró-católico, tendo passado pelo maoísmo juvenil (nascido em 1950, toda a sua família do lado paterno, exceto o pai, morreu nos campos de extermínio nazistas) a posições mais conservadoras nos últimos anos (apoiou a intervenção anglo-americana no Iraque e a eleição de Sarkozy no seu país).
Sabia-se, de algum modo, da atividade de Angelo Roncalli em favor dos judeus, mas, exatamente na véspera da canonização, Adler abriu uma fresta totalmente inédita de memórias familiares sobre o "papa bom", graças ao testemunho da sua avó, Maria Bauer, com a qual – segundo o próprio Adler (foto) – o futuro João XXIII, enquanto era delegado apostólico em Ancara (1934-1944), colaborou de forma muito estreita para resgatar os judeus perseguidos na Europa oriental e para fazê-los chegar à Turquia, neutra à época.
Tanto que Adler chega a afirmar – em um livro publicado na França há poucos dias, intitulado Un affaire de famille. Jean XXIII, les juifs et les chrétiens (Ed. Cerf ) – que "Roncalli fez de Istambul o quartel geral de uma obra de salvamento sem precedentes". Especificando também os detalhes: "A minha avó ia encontrá-lo nos escritórios atrás da Igreja Católica de Pera, a Sentespri Latina Katedrali".
Adler traz um exemplo concreto, graças ao testemunho da avó Bauer, que naquela época era diretora da seção turca da Organização Sionista Feminina Internacional (Wizo, na sigla em inglês): o caso do famoso pianista judeu de origem russa Alexis Weissenberg, definido pelo célebre maestro Herbert von Karajan como "um dos melhores pianistas do nosso tempo".
Pois bem, se Weissenberg "foi o imenso intérprete que conhecemos, ele deve isso a Angelo Roncalli. E não é o único caso, porque centenas de judeus da Bulgária puderam atravessar a fronteira turca graças à tolerância das autoridades de Ancara, que tinha sido adquirida graças à paciência do delegado apostólico", ou seja, do futuro pontífice, santo a partir deste domingo. Ancara era então apenas uma etapa para a Palestina, cobiçada meta do povo judeu: e assim, observou o jornalista, o núncio vaticano "não poupava a distribuição de certificados de imigração".
E mais. Adler confirma um dos indícios dessa atividade pró-judaica de Roncalli: "Em Istambul, ele multiplicava os falsos certificados de batismo, organizava as filas de passagem, coletava alimentos e roupas, mobilizava as seções da Cruz Vermelha, escrevia ardentes súplicas aos poderosos e detalhadas cartas ao Vaticano".
E ainda mais. O texto da Cerf também relata outro testemunho, o do funcionário do Terceiro Reich Franz von Papen, católico, inicialmente muito favorável à ascensão de Hitler ao poder, mas logo em rota de colisão com o Führer, que, de fato, o relegou ao papel marginal de embaixador na Turquia.
Escreve Adler: "No seu testemunho escrito no processo de Nuremberg, Papen especificava que milhares de judeus foram salvos graças às formalidades administrativas as quais o embaixador do Terceiro Reich na Turquia acabara se curvando", ou seja, ele mesmo, graças à pressão de Angelo Roncalli, que "pensava em utilizar a profissão de boa fé de Papen para os seus próprios fins", ou seja, o salvamento do maior número de judeus perseguidos.
Roncalli se movia bem consciente de que o trabalho de "contrabandista de judeus" não era isento de riscos: ele recebia os seus associados Maria Bauer e Chaim Barlas "sozinhos, na nunciatura, sem a presença de um dos seus adjuntos ou de algum secretário. Fazia apontamentos sozinho para preparar os seus relatórios para o Vaticano, ouvia em silêncio, suspirava e pedia aos seus interlocutores que dissessem coisas com precisão".
Mas o drama que estava se desenrolando diante dos seus olhos inquietava a alma cristã do santo de Bérgamo: "Durante um desses encontros – relata Adler –, quando Barlas evocava o destino desastroso das crianças judias na Eslováquia, Roncalli, pálido de repente, se levantou e, colocando-se diante de um ícone de Cristo, começou a recitar os primeiros versículos do livro de Ezequiel sobre os ossos secos e sobre o retorno de Israel à vida. Outra vez, durante um encontro, depois de ter acabado de ler os Protocolos de Auschwitz, um testemunho sobre aquele campo de morte, ele explodiu em lágrimas".
Em 1944, quando Roncalli foi nomeado núncio na França, no momento da despedida, Maria Bauer se expressou assim: "Temos um reconhecimento eterno por tudo o que o senhor fez". Tanto que Adler lembra que, aos 8 anos de idade, no dia da eleição de Angelo Roncalli ao sólio pontifício, ele exclamou com inocência infantil: "É o nosso papa", o papa amigo dos judeus esmagados pela fúria nazista.
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A rede turca de João XXIII e o salvamento dos judeus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU