Por: Caroline | 28 Abril 2014
Eduardo Gudynas, ecólogo social, é mais militante que acadêmico. Seu foco é a busca por alternativas para o desenvolvimento na América Latina. Integrante da equipe do CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevidéu, no qual trabalha junto a diversos movimentos e organizações sociais nos diferentes países do continente. É docente convidado em várias universidades. Nesse artigo Gudynas contextualiza a atual política uruguaia em um contexto mundial, mas questiona “a coalizão de esquerda que governa o Uruguai, expressa substanciais novidades políticas? O presidente Mujica, é um novo tipo de líder?”. O artigo é publicado por Vértice Sur, 22-04-2014. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Como primeiro exercício é difícil fugir da tentação de parar na capital mais austral na América Latina, Montevidéu, e fixar-se em José “Pepe” Mujica, o presidente do Uruguai. É que tanto esse país, como o “Pepe”, estão na moda. A revista britânica elegeu, em 2013, o Uruguai como o país do ano e Mujica é, atualmente, centro da atenção de jornalistas de diferentes lugares do mundo, que elogiam sua austeridade e seu filosofar. O jornal espanhol El País dedicou a ele sua revista de domingo, onde Juan José Millás qualificou-o como um “líder extraordinário” (23-03-2014). Mujica é candidato ao Prêmio Nobel da paz (com um ativo respaldo de parlamentares e acadêmicos europeus) e, como broche de ouro, Barack Obama está “desejoso” em reunir-se com ele e tem destacado sua liderança em “direitos humanos, inclusão social, paz global e segurança”.
Por alguns momentos parecia que uma renovação da esquerda em escala internacional se originaria em Montevidéu, onde Mujica seria seu principal expoente. Contudo se paramos por um momento e olharmos os fenômenos desde baixo, tantas felicitações da Casa Branca ou do The Economist, devem nos levar a precaução.
A coalizão de esquerda que governa o Uruguai, expressa substanciais novidades políticas? O presidente Mujica, é um novo tipo de líder?
Crescimento econômico e reformas
Comecemos relembrando que as circunstâncias globais permitiram que a economia do Uruguai crescesse por mais de uma década, com uma média de 5,5% entre 2006 e 2013. O desemprego é baixo (6% em 2013), já a pobreza situa-se em 11,5% e a indigência em 0,3%. Desde meados de 2013, o Uruguai subiu na lista de países de alta renda, segundo Banco Mundial. Frente as atuais circunstâncias de várias nações europeias, e entre elas a Espanha, esses indicadores econômicos e a demanda de emprego, são invejáveis.
A partir do ponto de vista político deve-se reconhecer que os governos da coalizão de esquerda da Frente Ampla têm gerenciado muito bem as boas condições globais. Porém também avançaram, com destaque, em diversas medidas, tais como: o fortalecimento dos direitos dos trabalhadores; um sistema de ajuste salarial automático semestral; cobriram déficits importantes como o reconhecimento das empregadas domésticas; aumentaram os controles sobre o sistema bancário etc. No país não foram encontrados esquemas organizados de corrupção política-empresarial, e os casos pontuais que se debatem estão muito longe das redes de gerenciamento ilegal de dinheiro e votos, descobertas em outros países. A isto somam-se outras medidas, possivelmente mais conhecidas a nível global, como o matrimônio igualitário, os direitos reprodutivos da mulher (sobre o aborto) ou a estatização da oferta de marijuana.
Este desempenho está à esquerda do que hoje se observa em boa parte da Europa ocidental. Sem dúvida está muito a esquerda das políticas de Mariano Rajoy, presidente da Espanha, e também muito além de governos que, como o de François Hollande, na França, se dizem de esquerda. Por outro lado, é totalmente compreensível que muitos olhem o Uruguai esperando por políticas similares dentro de seus países.
E, a tudo isso, soma-se a personalidade chamativa de Mujica: um passado na guerrilha urbana; preso durante quase uma década sob duríssimas condições; uma entrada tardia na política formal e sua culminação na presidência. Suas falas mesclam linguagens populares, às vezes com palavrões, com reviravoltas inesperadas que apelam à reflexão profunda ou travessuras populares. Seu estilo de vida descansa na austeridade extrema. Então, quando olhamos para Mujica, a partir da Europa, em um contexto de muitas esquerdas estancadas e de lideranças opacas, mas prepotentes, Mujica se destaca mais uma vez.
Um olhar desde baixo
Todavia, a partir o vértice sul, a situação é muito mais complexa. O governo da Frente Ampla e Mujica repetem, quase em sua pureza original, o ideal de desenvolvimento convencional de meados do século XX. O Uruguai aprofundou seu perfil de explorador de matérias-primas, com crescentes problemas para sustentar uma indústria própria. Isto se deve ao crescimento das exportações de soja, pasta de celulose e carnes, beneficiadas pelos altos preços das matérias-primas e a demanda asiática (especialmente a China). O custo ambiental deste fenômeno é obvio, com o aumento substancial de agroquímicos e crescentes problemas com a erosão de solos. O impacto social também é sentido entre os pequenos agricultores, que devem abandonar suas práticas tradicionais e transformar-se em função dos agronegócios, para não desaparecerem.
Mujica tem sido um dos principais promotores desta mudança. Sob sua gestão como ministro da agricultura (no primeiro governo de esquerda da Frente Ampla), foi completada a liberação do uso de transgênicos, debilitaram-se os controles ambientais sobre agroquímicos, e ocorreu a transnacionalização de alguns setores agrícolas e pecuários (a corporações da Argentina, Brasil e Nova Zelândia).
Ao chegar à presidência, Mujica aprofundou esta tendência. Repetidas vezes explicou suas ideias com total sinceridade: atrair investidores, fazer crescer as exportações e, com isso, a economia, “juntar mais dinheiro” do Estado e logo reparti-lo da melhor maneira. Ele disse que, hoje, o capitalismo só é possível abafando seus impactos mais severos, e o socialismo ficará para um futuro mais distante.
Sua obsessão em atrair investimentos chegou ao extremo de assinar um acordo secreto de investimento para uma nova planta celulosa (algo que aconteceu pela primeira vez no Uruguai, surpreendentemente sob um governo progressista). Seu principal plano de desenvolvimento é iniciar a mega mineradora de ferro a céu aberto, oferecendo todo tipo de vantagens a uma corporação estrangeira, pressionando para recortar os controles ambientais e ignorando a resistência dos cidadãos.
A política macroeconômica é muito convencional (similar à praticada, por exemplo, no Brasil pelo governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores). A grande capital desfruta de uma baixa carga tributária, enquanto os tributos afetam, principalmente, a classe média. Por sua vez, o governo e o presidente aparecem envolvidos em amizades estreitas com alguns poucos grupos empresariais (por exemplo, uma corporação pesqueira, um holding do transporte de navios, uma empresa mineira “junior”, um empresário de futebol etc.).
Mujica um dia critica o consumismo, mas em outros o promove. O consumismo das classes médias e populares, junto aos programas de assistências monetárias aos setores mais pobres são ingredientes chaves para os respaldos políticos.
A política internacional é mais independente, defende a integração sul-americana, e se diz próximo às posturas brasileiras. Contudo ninguém dúvida de que esse raro interesse de Barack Obama por Mujica deve-se ao fato de que o Uruguai finalmente aceitou o pedido de Washington em receber os presos libertados de Guantánamo.
Mantém-se um republicanismo que é raro na América Latina, onde o governo, por exemplo, não busca controlar a justiça, nem coloca fotos de Mujica em quantas obras públicas forem possíveis. Entretanto, por outro lado, o presidente burla-se uma ou outra vez das minorias como, por exemplo, os ambientalistas, as feministas, etc. As iniciativas populares que buscam realizar consultas cidadãs sobre empreendimentos como a mega mineradora encontram, cada vez mais, obstáculos, do próprio governo e de sua base partidária.
Mujica se aproxima das posturas de outros progressistas sul-americanos que sustentam que uma vez que sai vitorioso da eleição, o presidente fica revestido da legitimidade dos votos para levar adiante qualquer plano de desenvolvimento que queira. As demandas de diferentes grupos sociais seriam, sob esta postura, tentativas das “minorias” se imporem às “maiorias”, e seriam funcionais a direita política. Por exemplo, no último dia 17 de abril, Mujica questionou as “minorias” que “buscam a desobediência civil, as paralisações e a ineficácia”, as que se comunicam por meio das “redes”, assinalando como exemplo os “movimentos de indignados e as resistências civis”.
É certo que o governo Mujica não chega aos extremos das administrações de Rafael Correa, no Equador, ou Evo Morales na Bolívia para fechar ou expulsar ONGs. Contudo seus argumentos são semelhantes. Contudo compartilha com eles as críticas as mobilizações populares, as que entende como cópias dos “indignados” espanhóis ou os ocupantes de Wall Street, e realmente não entende as reivindicações dos novos movimentos sociais.
Voltando ao início deste artigo, são essas posições as que explicam os elogios do The Economist ou os “parabéns” vindos de Obama. Mujica, além de suas contradições, de seus aspectos positivos ou negativos, é um exemplo da deriva da esquerda clássica frente aos progressistas. Estes não são nem conservadores nem liberais, contudo definem uma inserção no capitalismo desde a provisão de matérias-primas. O progressismo legitima-se a partir de seus programas de assistência social, e uma forte defesa de um centralismo estadista que desconfia das iniciativas e autonomias populares. Observado de muitos lugares europeus, tudo isso é positivo, e avalia a situação de muita gente. Entretanto deve-se reconhecer que, no momento, essa transformação visando o progressismo não implica uma renovação da esquerda e as alternativas ao desenvolvimento seguem pendentes.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma renovação da esquerda vinda do sul? Uruguai e Mujica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU