16 Abril 2014
"Os escritos de Paulo precisam ser compreendidos sob a perspectiva de uma unidade escatológica, revelada em Cristo. Esta unidade suprime divisões hierárquicas sacralizadas culturalmente, levando todos a se reconhecerem como irmãos e irmãs que se encontram e convivem em comunidade. As diferenças que surgem, neste contexto, são dons colocados a serviço das diferentes necessidades desta comunidade e não sinais de distinção ou estigmas de exclusão", escreve Renato Machado, teólogo, ao comentar o artigo “O lugar da mulher nos escritos de Paulo”, de autoria do teólogo argentino Eduardo de la Serna, recentemente publicado pelos Cadernos Teologia Pública, no. 82.
Eis o artigo.
O número 82 dos Cadernos Teologia Pública publicou o artigo de Eduardo de la Serna a respeito do lugar da mulher nos escritos de Paulo. Segundo o autor, a lógica de inclusão pela fraternidade presente nos escritos paulinos não é coerente com o discurso misógino geralmente atribuído a ele.
Leia a resenha completa a seguir.
Não é de hoje que algumas passagens de cartas de Paulo são encaradas como ofensivas ou preconceituosas quanto à condição feminina e ao lugar da mulher nas primeiras comunidades cristãs. Eduardo de la Serna, buscando desmistificar estas afirmações, apresenta no texto “O lugar da mulher nos escritos de Paulo”, publicado nos Cadernos Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, uma significativa chave de leitura para a compreensão desta questão.
Segundo o autor, não se trata de apontar Paulo nem como misógino, nem como feminista, posicionamentos que acabam se fortalecendo na medida em que se canonizam aspectos culturais da época ou que se utilizam estes mesmos aspectos para perdoar alguns discursos. Para la Serna, estas questões precisam ser lidas sob a passagem de Gl 3, 28, na qual Paulo enumera uma série de divisões que, presentes no contexto de sua época, são suprimidas em Cristo. Assim, ao dizer que não há mais diferença entre judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres, a carta toca em uma questão fundamental para a tradição religiosa judaica da época: a superioridade de algumas categorias quanto à proximidade de Deus e, portanto, quanto à sua própria salvação. Em Cristo, portanto, Deus se faz próximo e presente, tornando a salvação uma realidade palpável. Isto, porém, não se dá por um ato mágico, mas pela prática da fraternidade, que supera barreiras sociais e ressignifica as diferenças, mudando o que era sinal de inferioridade e exclusão em fonte de riqueza pela diversidade.
Mulher, homem e comunidade: uma inter-relação de fraternidade
Sem dúvida, um texto polêmico a respeito da mulher na comunidade cristã é o que se lê em 1 Cor 11, 2-16. Nele, Paulo afirma que “a cabeça da mulher é o homem”, assim como a “cabeça do homem é Cristo”. Em seguida, observa-se uma serie de admoestações que parecem dizer respeito à postura de homens e mulheres nas assembleias: homens devem manter seus cabelos curtos e a cabeça descoberta; mulheres devem ter seus cabelos compridos e a cabeça coberta, pois o contrário seria considerado desonroso.
Analisando este quadro, la Serna aponta algumas questões importantes no sentido de interpretação semântica, como por exemplo, discernir o que significa o termo “cabeça”, que parece estar sendo utilizado como símbolo de autoridade do homem sobre a mulher e de Cristo sobre o homem. Sobre isso, o autor destaca que, no mesmo texto, afirma-se que “a cabeça de Cristo é Deus”, ou seja, pode-se pensar esta expressão como sinal de distinção e comunhão. La Serna, porém, alerta, que é necessário manter o termo em uma leitura ampla, não confinando a palavra a uma única possibilidade interpretativa, sob o risco de se matar a metáfora.
Na questão dos hábitos na assembleia, o autor lembra que boa parte da comunidade coríntia não era oriunda do meio judaico e que seus membros, portanto, traziam consigo práticas cultuais relacionadas às divindades romanas. Mais do que isso: muitos membros desta comunidade eram originários da elite social da época e buscavam também distinguir-se na comunidade com esta questão. O que Paulo parece fazer é nortear os hábitos da comunidade pelo estilo de vida das camadas mais empobrecidas da região, em coerência ao próprio Cristo.
Neste ponto, há algo realmente importante: uma comunidade fundada sobre o batismo em Cristo, que assume a fraternidade como prática, acaba tendo a equação entre o individual e o coletivo como espaço de crise. Tendo isso em vista, pode-se compreender que as admoestações de Paulo vão sempre na direção do fortalecimento dos laços fraternos, sob pena de que a comunidade deixe de existir se estes vierem a enfraquecer. As relações entre homens e mulheres são basilares para isso. Mais do que isso, porém, uma comunidade só pode viver a fraternidade quando todos os seus membros tem seu lugar, sua vez e sua voz garantidas, o que, no contexto histórico de Paulo, era quase uma impossibilidade para as mulheres. Por isso, ao insistir em questões como cobrir a cabeça, para as mulheres, Paulo parece estar dando autoridade às mesmas: mulheres eram vistas como objetos sexuais e de barganha financeira e cobrir a cabeça lhes conferia autoridade para manifestar-se na assembleia. Ou seja: ao assumir este símbolo visual, a mulher mudava o olhar alheio sobre ela.
O silêncio das mulheres: uma imposição?
Ao abordar 1Cor 14, 33b-36, la Serna apresenta uma visão panorâmica de duas tendências interpretativas quanto a este texto: a tendência de afirmar que estes versículos seriam acréscimos posteriores que, portanto, não expressariam as orientações de Paulo e a tendência de assumir estes versículos como texto paulino, buscando uma contextualização pormenorizada daquilo que ele diz. Sem dúvida, explicar ou justificar uma passagem onde se lê que as mulheres devem se calar na assembleia, mantendo-se submissas, é algo que exige muita seriedade e consciência crítica. Os que afirmam ser este texto um acréscimo posterior ao escrito paulino, o fazem com base na mudança brusca de tom deste trecho em relação ao restante da carta e algumas contradições que ali aparecem, em relação ao texto e em relação ao próprio pensamento paulino.
La Serna, porém, adverte que sustentar que um texto não pertence a um autor só é possível com argumentos muito sólidos e que, neste caso, esta acaba sendo a saída mais fácil para “desculpar” Paulo por uma postura que não conseguimos compreender ou aceitar. Assim, partindo-se da suposição de que o próprio Paulo tenha escrito este trecho, um dos argumentos que melhor ajudam a compreendê-lo é aquele que afirma as peculiaridades da comunidade de Corinto: havia excessos por parte de seus membros, no sentido de buscarem se diferenciar de outras comunidades. Paulo entende isso como sinal de arrogância e reorienta de forma severa os Coríntios. Nesse contexto, Paulo estaria falando especificamente às mulheres da comunidade, por causa destes excessos e não às mulheres em geral.
Unidade escatológica
O que Eduardo de la Serna procura deixar claro em seu artigo é que os escritos de Paulo precisam ser compreendidos sob a perspectiva de uma unidade escatológica, revelada em Cristo. Esta unidade suprime divisões hierárquicas sacralizadas culturalmente, levando todos a se reconhecerem como irmãos e irmãs que se encontram e convivem em comunidade. As diferenças que surgem, neste contexto, são dons colocados a serviço das diferentes necessidades desta comunidade e não sinais de distinção ou estigmas de exclusão. É esta compreensão originária, perdida em meio a distorções interpretativas que justificaram perseguições e discriminações ao longo de séculos, que precisa ser resgatada e assumida para que homens e mulheres, no âmbito da tradição cristã, deem novo significado aos seus papeis e serviços na comunidade eclesial e na humanidade em geral.
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A mulher nos escritos de Paulo: fraternidade superando exclusão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU