Por: Cesar Sanson | 04 Abril 2014
A ditadura é um zumbi. Insepulta, mantém praticamente intactos seus instrumentos na estrutura do Estado e ainda habita as relações de poder no Brasil. Foi por acreditar nisso que estudantes da Faculdade de Direito da USP, do Largo de São Francisco, realizaram na noite de 1º de Abril, um ato político de “descomemoração” do golpe de 1964, que completou 50 anos.
‘Desmemoração’ do golpe 64 na Faculdade de Direito da USP: Entre os jovens, Neusa Ferreira, dona do sítio
A reportagem é de Isaías Dalle e publicada pelo portal da CUT, 03-04-2014.
Iniciativa do Centro Acadêmico XI de Agosto, o ato contou com o apoio e a presença da CUT, entre outras entidades dos movimentos sociais. Mais de 400 jovens lotaram a Sala dos Estudantes, ocupando cadeiras e escadarias.
“Recordar as mazelas desse período nos obriga a refletir como a ditadura, ainda hoje, mostra as suas caras”, afirma trecho da carta-manifesto lida no início do ato. E aponta o dedo para práticas e relações típicas do período ditatorial que a democratização não desmontou: polícia que mata em julgamentos sumários e faz desaparecer cidadãos, estrutura viciada dos três poderes da República, ausência de representação de diversos grupos no fazer político, liberdade para quem torturou e matou, trabalho escravo, exploração indígena, penitenciárias que fariam corar Dante Alighieri, altíssima concentração dos meios de comunicação nas mãos dos mesmos poucos grupos empresariais que apoiaram o golpe, e supremacia do poder empresarial e financeiro no sistema eleitoral.
Poder esse, por sinal, denunciado como coparticipante do golpe e de todas as atrocidades que se seguiram pelos 21 anos de repressão e arrocho salarial. “As empresas nacionais e multinacionais e a embaixada estadunidense agiram em conluio com os golpistas. E empresários mais sádicos até assistiam a sessões de tortura”, lembrou Júlio Turra, dirigente executivo da CUT.
Linha direta com o DOPS
Jorge Preto, ou Jorge Luiz Santos Oliveira, integrante da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo surgida no final dos anos 1970, deu testemunho dessa autoria não-fardada do golpe. Preso por três vezes – a última em 1982, depois da promulgação da Lei de Anistia – em virtude de sua militância, ele lembra: “As empresas tinham ligação direta com o regime, a começar pela delegacia do bairro. Enviavam as fichas de todos os trabalhadores ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, depois tornada Operação Bandeirante, em São Paulo) e bastava uma reclamação qualquer dos trabalhadores para a polícia cercar a fábrica”. Os golpistas, no entanto, não contavam com um efeito colateral da repressão: “Ao mesmo tempo em que amedrontava, despertava a consciência da gente”.
Sítio contra o estado de sítio
Consciência que convenceu Neusa Ferreira de Souza, uma das convidadas da noite, a ceder seu sítio em Ibiúna para a realização do 30º Congresso da UNE em 1968, interrompido pelos militares na base da porrada e da prisão de aproximadamente 900 pessoas, entre elas a própria Neusa e seu marido, Domingos Simões. Aplaudida de pé pelos estudantes do Largo de São Francisco, afirmou, visivelmente emocionada: “Se vocês quiserem um mundo melhor, não fiquem parados. O mundo precisa de gente como vocês”.
Ex-estudante do Largo de São Francisco e que lutou contra a ditadura, Aton Fon Filho alertou os estudantes para as armadilhas que se colocarão à frente deles. “Quando vocês pleitearem uma vaga de promotor ou juiz, lembrem-se que vão querer integrar uma estrutura de Estado repressiva, que atua contra os trabalhadores”. E provocou: “Quantos de vocês, até sem saber, não defenderam essa estrutura nas mobilizações de junho do ano passado, quando pediram a queda da PEC 37?”, em referência à bandeira infiltrada pela direita com o objetivo de manter a sanha acusatória de promotores públicos, como definido por Aton.
Aproveitando a deixa, Julio Turra lembrou que a desejada reforma política não deve apenas estabelecer novas regras eleitorais. “O que devemos é mudar toda a estrutura política, incluindo o poder Judiciário”, onde, segundo Aton, perpetuou-se uma forma de sucessão dinástica.
A carta-manifesto dos estudantes exige a Reforma Política ampla, com a realização de uma constituinte exclusiva, a democratização dos meios de comunicação, a revisão da Lei de Anistia e a desmilitarização da polícia. “Que a transição se conclua, e que construamos uma democracia real com efetiva participação popular. Para que não esqueçamos do que ainda acontece”, conclui o texto, escrito pelos mesmos estudantes que, na noite anterior, 31 de março, haviam protestado contra homenagem ao golpe, preparada pelo professor Eduardo Gualazzi.
Coincidência ou não, relato feito por outro convidado da noite, o professor de Direito Celso Campilongo, acabou por ilustrar as semelhanças entre o ontem e o hoje, tema do ato político. “Em 1977, quando eu cursava o segundo ano aqui, uma revista semanal trazia em sua capa a foto de uma jovem sendo espancada na rua por um policial, durante protesto. Uma colega de sala quis a opinião de um dos professores sobre aquele acontecimento. O professor ignorou a pergunta por diversas vezes em que a estudante a fez. Indignada, ela esfregou a revista na cara do professor e se retirou, aos prantos. Foi seguida por todos nós”.
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Dona do sítio de Ibiúna: “Se quiserem um mundo melhor, não fiquem parados” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU