24 Março 2014
É o primeiro acordo entre cristãos e muçulmanos não para dirimir conflitos de fé ou para exaltar genericamente a paz e a justiça, mas sim para combater conjuntamente a grande vergonha escondida da sociedade globalizada: o comércio de seres humanos e a sua redução em novas formas de escravidão. O compromisso, anunciado oficialmente no dia 17 de março, viu unidos o Papa Francisco, o grande imã da mesquita de Al Azhar el-Tayeb e o primaz da Igreja Anglicana, Justin Welby, juntamente com o responsável da Free Walk Foundation, Andrew Forrest.
A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal Il Fatto Quotidiano, 20-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Toda forma de indiferença com relação às vítimas de exploração deve cessar. Convidamos todos os fiéis e os seus líderes, todos os governos e as pessoas de boa vontade a aderirem ao movimento contra a escravidão moderna e o tráfico de seres humanos" está escrito no memorando de entendimento que cria a Global Freedom Network e que, em nome do Vaticano, foi assinado pelo chanceler da Pontifícia Academia das Ciências, Dom Sánchez Sorondo.
As armas serão a oração, o jejum e a caridade, mas também um intenso trabalho de pressão sobre os governos e as multinacionais, para que os circuitos de "aproveitamento e investimento excluam formas de escravidão modernas" e para que o G20 adote iniciativas concretas contra o tráfico e a escravidão.
Ao mesmo tempo, a Igreja Católica, a Comunhão Anglicana e a mesquita de Al Azhar (o chamado Vaticano sunita) se comprometem a sensibilizar sobre a questão os seus próprios movimentos, para que não sejam ignoradas as vítimas desse fenômeno sistematicamente removido da opinião pública.
Para o Papa Francisco, trata-se de um ponto crucial da "questão social" do século XXI. Já era quando ele dirigia a diocese de Buenos Aires e ainda é mais desde que ele se tornou papa, como está bem ilustrado no seu documento programático Evangelii gaudium. Para o papa argentino, não se trata de falar genericamente de "pobres... caridade... assistência... bom coração", mas sim de enfrentar um nó muito concreto da globalização.
Entre 20 e 30 milhões de homens, mulheres e crianças – segundo as diversas estimativas – são objeto de tráfico e de exploração econômica e sexual. Não se trata de resíduos sociais de distantes sociedades primitivas. É no coração da modernidade globalizada que os novos escravos arrastam a sua existência.
O volume de negócios desse comércio transnacional, afirma o jornal Avvenire, é de 30 bilhões de dólares por ano. Metade dos lucros são realizados na AméricaLatina. Para aqueles que fingem não saber, existem os casos concretos da Itália. Os coletores de Rosario, por exemplo, os trabalhadores das fábricas clandestinas chinesas de Prato, os trabalhadores têxteis bengaleses das fazendas fantasmas da Campania.
Fala-se a respeito por 24 horas quando acontece uma desgraça e depois se finge que nada aconteceu. "O Papa Francisco quer que o tráfico de seres humanos e a nova escravidão seja declarada crime contra a humanidade", diz Dom Sánchez Sorondo, que, na Pontifícia Academia das Ciências (que reúne notoriamente cientistas de todas as fés e até mesmo ateus militantes), organizou em novembro um simpósio internacional sobre o problema.
Mas aqui se desencadeia um fenômeno interessante. Aplauso universal na mídia quando Francisco fala de comunhão aos divorciados em segunda união ou da nomeação de mulheres para cargos importantes, e silêncio persistente quando o pontífice toca as chagas do atual mecanismo econômico-financeiro. O papa, no entanto, insiste.
Quem pegou o bastão nesta quaresma foi a Comunidade Giovanni XXIII (fundada pelo padre Benzi) que organiza nesta sexta-feira, em Roma, a partir da Praça Santi Apostoli, uma Via Sacra pelas "mulheres crucificadas": vítimas internacionais do tráfico que as encaminha para a prostituição.
Dois terços dos "novos escravos", de fato, são mulheres, e um em cada cinco é uma criança. Marcharão juntos a Cáritas, neopentecostais da Renovação no Espírito, Santo Egídio, neocatecumenais, as irmãs da União das Superioras Gerais da Itália (USMI, na sigla em italiano) e muitos outros grupos. Um pequeno concílio para não fingir que nada acontece.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cristãos e muçulmanos juntos contra o tráfico de seres humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU