14 Fevereiro 2014
Hélio Nascimento, crítico de cinema, comenta o filme "A Grande Beleza", de Paolo Sorrentino,em cartaz no Brasil, e que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O comentário foi publicado no Jornal do Comércio, 31 de janeiro de 2014.
Eis o artigo.
No ano de 1959, o cinema italiano produziu dois filmes extraordinários: A doce vida, de Federico Fellini, e A noite, de Michelangelo Antonioni. Essas duas obras venceram, respectivamente, os festivais de Cannes e Berlim, o que não foi uma surpresa, pois já naquela época os dois cineastas desfrutavam de enorme prestígio e a cinematografia à qual pertenciam atravessava um período dos mais ricos, pois não eram apenas aqueles realizadores a se destacarem no cinema da Itália. Atualmente, os fotógrafos que perseguem celebridades são chamados pelo nome de um dos personagens do filme de Fellini e não há cineasta, ao falar sobre a crise de um casal, que não pague tributo a Antonioni. Esses dois monumentos se fazem presente neste A grande beleza, de Paolo Sorrentino.
Como nenhum diretor parte do zero - o próprio Griffith tinha para o que olhar antes de criar a linguagem cinematográfica em Nascimento de uma nação - a observação, quando uma obra faz referências diretas a filmes do passado, deve ser concentrada na forma como as variações em torno do tema proposto são tecidas. Sorrentino, na atmosfera e criação de personagens, se aproxima dos gigantes por ele homenageados, mas tal aproximação se limita a aspectos da forma narrativa. Sua proposta é outra.
Os cineastas dos tempos atuais não são os primeiros a falar da crise. Não há filme importante que deixe de falar dela. A insatisfação humana, refletida em ações transformadoras ou em atitudes niilistas, tem acompanhado o cinema, mesmo que esta arte tenha sido usada por sistemas e até por cineastas como instrumento destinado a criar acomodação e desconhecimento. Ao mesclar Fellini e Antonioni, Sorrentino termina se distanciando de ambos pela conclusão e pelo caminho que termina apontando no epílogo de sua obra.
Em A doce vida, um monstro marinho surge como uma figura que parece condenar os personagens ao maior dos castigos. E em A noite, o esquecimento do escritor que não se lembra das palavras escritas com paixão, expõe de forma cruel o final de uma relação. Em Sorrentino acontece o contrário. A instituição que surge representada por uma figura senil e por um elemento ridículo termina sendo a força que dá continuidade ao voo, sendo também a que simboliza o esforço maior, na cena da escada. Mais importante ainda é através dela que surge o tema da raiz, o que salva o protagonista, que recupera o passado e certamente iniciará um novo e definitivo livro.
Sorrentino, porém, não é otimista e ingênuo. Seu protagonista, que foi um romancista de sucesso, é agora um jornalista, o que mescla os personagens vividos por Marcello Mastroianni naqueles dois clássicos. Ele abandonou a literatura de ficção e se dedica, enquanto gasta o tempo em festas que a nada levam, a entrevistas e a olhar de forma irônica para um mundo marcado pela mediocridade e caracterizado pelo vazio. Há dois momentos do filme que merecem ser destacados.
A mulher que, com a foice e o martelo desenhados no corpo, investe contra um muro materializa em cena não apenas um fracasso como também o exibicionismo de um tipo de arte que certamente nem merece esse nome.
Mais adiante, em outro momento claramente felliniano, uma menina, comandada pelos pais, expressa sua dor num abstracionismo gerado pela mais intensa agressividade. Esta última cena é seguida pelo encontro com o amigo que tem a chave de outra arte, aquela voltada para a forma representativa do ser humano.
É uma arte que parece perdida, pertencente a outro tempo. Sorrentino, que utiliza na faixa sonora compositores contemporâneos, nesta cena recorre ao jovem Bizet da Sinfonia em Dó Maior, o que certamente reforça a crítica, através do contraste, a todo um mundo contemporâneo regido pela futilidade.
Enquanto a humanidade ruma para lugar nenhum, o protagonista retorna a um cenário e a um tempo onde talvez possa encontrar o alento para o voo da salvação. Não é um final que Fellini e Antonioni filmariam. Mas é certamente um epílogo que se afasta das fragilidades emocionais, da agressividade autodestruidora e do desespero transformado em alegria falsa e ridícula.
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Doce vida noturna. "A Grande Beleza". Um comentário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU