29 Novembro -0001
Nelson Mandela passou 27 anos na prisão para então vir a ser um ícone internacional e se tornar o primeiro presidente negro de um governo democraticamente eleito na África do Sul. Ele morreu nesta quinta-feira em sua casa, em Joanesburgo, aos 95 anos de idade.
A reportagem é de Winnie Graham, jornalista aposentado do jornal The Star, de Joanesburgo, África do Sul, e reproduzido por National Catholic Reporter, 06-12-2013. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O papel desempenhado pelo clero na criação de uma “nova” África do Sul – e a fé inata de Mandela em Deus – continua a ser um capítulo inédito, embora crucial, de sua história. Em seus últimos anos, presidentes e reis vieram até ele prestar homenagem. Em vida, buscava aconselhamento de pessoas ligadas à Igreja, ao clero.
Quando Mandela foi solto da prisão, em 11 de fevereiro de 1990, o governo, de maioria branca, estava bem ciente de que a única forma dali para frente seria assegurar direitos igualitários a todos.
Para o povo sul-africano, movidos por gerações de divisão racial e desconfiança, a tarefa por vir era formidável. Porém, quando Mandela se postou do lado de fora da prefeitura da Cidade do Cabo para comunicar aos milhares que vieram vê-lo no dia de sua libertação, sua mensagem não foi de raiva ou vingança, mas de reconciliação e de paz.
“Hoje, a maioria dos sul-africanos, negros e brancos, reconhece que o apartheid não tem futuro. Precisa ser encerrado por nossa decisiva ação em massa a fim de estabelecer a paz e a segurança”, disse à multidão eufórica.
As negociações não estavam destinadas a ser pacíficas. Praticamente desde sempre houve violência entre o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), de Mandela, e o principal partido zulu, o Partido da Liberdade Inkatha, com suspeitas de haver uma terceira força patrocinada pelo então governo de minoria branca.
Em um dos piores casos, na noite de 12 de janeiro de 1991, 39 pessoas foram assassinadas em Sebokeng, nos arredores de Joanesburgo. Haveria desordem em 27 municípios ao longo do país nos anos seguintes, deixando centenas de mortos.
Mas foi o assassinato de Chris Hani, líder do Partido Comunista Sul-Africano, por membros brancos da direita que levou o país à beira da guerra civil. Mandela salvou esta situação.
Em uma entrevista à televisão, disse que estava buscando alcançar a todos os sul-africanos, negros e brancos, diretamente das profundezas de seu ser.
“Nossa dor está nos separando... O que aconteceu foi uma tragédia nacional que comoveu milhares de pessoas ao longo do espectro político e de cor”, disse ele à nação.
Em seguida, tão logo algum progresso vinha ocorrendo, aparece um outro problema, e as negociações novamente são paralisadas. Dessa vez, a pedra de tropeço foi a Comissão da Verdade e Reconciliação, cujo objetivo era lidar com as violações dos direitos humanos da era do apartheid.
O governo do Partido Nacional queria a mesma anistia geral dada ao Congresso Nacional Africano – com a garantia de uma anistia geral escrita dentro da constituição interina. Nem o então presidente F.W. de Klerk nem Mandela estavam prontos a ceder.
Este dia acabou sendo salvo pelo clero.
O arcebispo franciscano de Durban, Dom Wilfrid Napier, que mais tarde seria cardeal, lembra que havia um medo genuíno de que a violência iria irromper novamente.
“Nós estávamos com medo de que, se a questão não se resolvesse logo, as brigas e matanças poderiam começar tudo de novo”, lembra Napier. “Então, nos aproximamos de Klerk e de Mandela, dizendo que sabíamos estar havendo dificuldades entre eles. Poderíamos ter um encontro em particular?”
Eles concordaram. Após uma tarde, chegou-se a um consenso. Klerk e Mandela decidiram ir à televisão dentro de 24 horas para dizer ao país como a questão seria resolvida. A nação poderia respirar novamente.
Embora seja conhecido por manter sua opção religiosa em privado, Mandela sempre esteve ciente do papel que a Igreja poderia desempenhar em sua ideia de uma África do Sul não racial. Foi através de escolas missionárias da Igreja, disse ele, que ele e sua geração foram formados.
Mandela tinha 7 anos de idade quando sua mãe o matriculou na Escola Missionária Clarkebury, na província do Cabo Oriental, na África do Sul. Ele deu continuidade a seus estudos na Faculdade Metodista Healdtown, um internato fundado por missionários em 1845.
Em 1953, antes da Lei de Educação Bantu, 90% das crianças negras estudavam em escolas missionárias auxiliadas pelo Estado. A lei exigiu que todas estas escolas fossem registradas pelo Estado. O controle da educação sul-africana foi tirado das igrejas e autoridades provinciais, passando a ser centralizado no Departamento de Educação Bantu. Quase todas as escolas de missão fecharam as portas.
A Igreja Católica encontrava-se amplamente sozinha em sua tentativa de manter suas escolas funcionando sem o auxílio estatal. A lei de 1953 também pôs à parte o financiamento da educação para os sul-africanos dos gastos gerais do Estado, relacionando-o ao imposto direto pago pelos próprios sul-africanos, tendo como resultado o fato de que muito menos dinheiro foi empregado na educação das crianças negras do que na educação das crianças brancas. Pior ainda, as crianças negras não poderiam se matricular em escolas “brancas”.
As regras valiam igualmente para as escolas católicas, que terminavam por fechar suas portas caso fossem pegas tendo crianças negras matriculadas. Um tanto quanto nervosa, a Igreja aceitou esta situação. Mas no início da década de 1980, decidiu ignorar tais regras. Um crescente número de meninas e meninos negros matricularam-se em escolas privadas católicas. Surpreendentemente, as autoridades fizeram vista grossa.
Mandela completou seu curso de bacharel em Artes na Universidade da África do Sul, e, em seguida, matriculou-se na Universidade Witwatersrand, para estudar Direito. Entretanto, sua vida universitária interrompeu-se devido ao seu envolvimento com o Congresso Nacional Africano.
Mais tarde, ele e seu amigo, Oliver Tambo, deram abertura à primeira prática jurídica negra no país. No entanto, logo se tornou tão envolvido na luta pela libertação que, em 1964, acabou sendo acusado de sabotagem e conspiração para derrubar o governo.
Antes de ser considerado culpado, disse algo que ficou vivo na mente dos sul-africanos: “Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Abriguei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todas as pessoas vivem unidas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para qual espero viver e o que espero alcançar. Mas, se preciso for, será um ideal para o qual estou preparado para morrer.”
Após Mandela ter sido eleito presidente nas primeiras eleições não raciais da África do Sul em 1994, ele manteve contato próximo com a Igreja, mantendo encontros trimestrais.
“Ele tinha uma mente tão clara como uma campainha”, disse Napier. “Era óbvio que sua formação cristã foi a fonte de sua inspiração.”
Em 1993, Mandela participou de uma missa celebrada por Dom Lawrence Henry e pelo pároco capuchinho Pe. Wildrid Aherne, na igreja Sta. Maria dos Anjos, Cidade do Cabo. Durante a celebração, ele destacou os religiosos que visitaram prisioneiros políticos em Robben Island, na prisão de Pollsmoor, na Cidade do Cabo e em Pretória.
Sua amizade com Dom Stephen Naidoo, arcebispo da Cidade do Cabo, reflete-se em uma carta que ele escreveu em novembro de 1984. O conteúdo foi publicado pela primeira vez no periódico semanal católico da África do Sul chamado The Southern Cross, no ano de 2009, para marcar os 90 anos de seu nascimento.
Escrito a mão, na parte de cima possui há sua identificação de prisioneiro: D220/82. Nesta carta ele conta ao arcebispo que havia ficado impressionado pelo trabalho pastoral disponibilizado pela Igreja em Robben Island, onde ele passou 18 de seus 27 nos de prisão.
Naidoo, que sob as leis do apartheid foi classificado como indiano, tornou-se amigo de Mandela antes de sua nomeação para a Cidade do Cabo. Então como bispo auxiliar, Naidoo fazia visitas pastorais regulares à localidade de Robben Island.
Na carta de Mandela para Naidoo, lê-se que esta notícia, a de que seu amigo havia sido nomeado arcebispo da Cidade do Cabo, o deixou “sem palavras”.
“A elevação de personalidades negras a posições de autoridade na Igreja é um desenvolvimento que tem um significado muito maior do que muitas pessoas podem perceber”, escreveu Mandela.
“Por um lado, isso irá remover um problema de sensibilidade que tem repetidamente chocado as igrejas sul-africanas, o qual tem mantido cada congregação dividida contra si mesma e gerado paixões, erros e, até mesmo, violência, não compatíveis com os ensinamentos das Escrituras”.
Em uma carta-resposta, de 5 de dezembro de 1984, Naidoo disse estar animado devido à reação positiva de sua nomeação.
“Isso tem ajudado a muitas pessoas a ver a Igreja (Católica) não como uma importação estrangeira, mas como algo nosso, enraizado em nossas vidas, em nossas necessidades, aspirações, tristezas e esperanças”, disse.
Naidoo não viveu a ponto de ver Mandela sair da prisão. Morreu repentinamente aos 51 anos, em julho de 1989, menos de oito meses antes da libertação do líder político, em fevereiro do ano seguinte.
No primeiro dia de Mandela como presidente, em 1994, quando dignitários de todo o mundo se reuniram para testemunhar seu juramento de posse, ele lembrou ao seu povo que a reconciliação exigia trabalho em conjunto para defender a democracia e a humanidade proclamada pela nova Constituição.
“A construção desta nova casa da paz necessita de minha contribuição. Necessita de sua contribuição”, disse ele.
Reconciliar exige que “nos demos as mãos... para pôr fim na pobreza gerada por um sistema que prosperou na privação da maioria”, continuou. “Reconciliar exige que ponhamos fim à desnutrição, à falta de moradia e à ignorância... exige que eliminemos o crime e a corrupção”.
Reconciliação e perdão constituíram a pedra angular do mandato de cinco anos de Mandela como presidente, tendo o foco sempre na construção da nação. Ciente de que muitos brancos, incertos de seu futuro sob um governo comandado por um negro, planejavam emigrar, ele os exortou a ficar e ajudar na construção de uma África do Sul democrática.
Quando Mandela foi liberto da prisão, uma de suas primeiras viagens ao exterior teve Roma como destino, onde se encontrou com o Papa João Paulo II, em 1990. Os dois estiveram juntos novamente em 1995, quando o pontífice visitou o país africano.
Houve muitos aspectos do líder político que os sul-africanos (de todas as raças) vieram a admirar. Uma história diz de um grupo de sacerdotes sul-africanos que arranjou um encontro com Mandela para um café da manhã após sua libertação. Conversaram brevemente antes de sentarem para a refeição, mas tão logo ergueram a faca e o garfo foram interpelados pelo convidado.
“Senhores”, disse Mandela. “Não deveríamos dar graças antes de começar a comer?”
Foi uma repreensão suave que fez as pessoas darem risadas dos religiosos ali embaraçados. Mas isso de fato ocorreu?
“Sim, ocorreu mesmo”, afirmou Napier. “Mandela foi um defensor da reza antes das refeições”.
Porém, o cardeal tem uma história ainda mais emocionante envolvendo Mandela.
Em 2001, quando Napier estava numa reunião da Conferência dos Bispos Católicos da África do Sul, em Pretória, recebeu um telefonema direto do núncio papal. Era Dom Ambrose de Paoli perguntando-lhe se estava sozinho. Ao informar que, de fato, assim estava, o núncio confidenciou que o Papa João Paulo II iria proclamá-lo um dos seis novos cardeais às 13h00 do domingo seguinte.
“Eu lamento que minha reação não foi educada”, disse Napier. “Eu falei: O quê?”
Ele nada mais disse enquanto esperava pelo anúncio oficial. Um dia depois, perdeu um telefonema de Mandela, que então vivia em Moçambique. Incerto quanto ao que o ex-presidente queria, tentou encontrá-lo, porém, sem sucesso
Mandela conseguiu o número de telefone do arcebispo através do secretário do cardeal, Colleen Mettler, em Durban. Ainda em Moçambique, dessa vez Mandela teve sorte. “Cardeal Wilfrid”, disse ele quando a conexão foi estabelecida. “Ouvi que o senhor foi proclamado um dos Príncipes da Igreja. Estou muito contente. Parabéns!”
Numa reunião especial das Nações Unidas para marcar o 95º ano de nascimento de Nelson Mandela, em julho de 2013, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, contou uma história sobre o velho estadista, que terminou os seus 27 anos na prisão como um “homem mais forte do que aquele que era quando entrou”.
Clinton disse que perguntou a Mandela por que razão havia convidado seu carcereiro para a inauguração de seu mandato, trazendo também partidos de oposição compostos por brancos para dentro de seu governo.
“Diga a verdade: Quando o senhor estava descendo aquela rampa, não os odiava?”, Clinton perguntou.
“Ele disse em poucas palavras: ‘Sim, odiei. Estou velho o suficiente para dizer a verdade.’ Então ele disse: ‘Senti ódio e medo, mas disse para mim mesmo que, se você os odiar quando entrar naquele carro, ainda estará sendo seu prisioneiro. Eu queria estar livre, e assim deixei acontecer’”.
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Mandela sempre esteve ciente do papel da Igreja na luta dos sul-africanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU