Por: Cesar Sanson | 09 Outubro 2013
Somente quando decidirem discutir os rumos de sua política diante dos refugiados os europeus demonstrarão respeito aos corpos de imigrantes hoje perdidos no Mediterrâneo. O comentário é de Hans Lucht, antropólogo da Universidade de Copenhague, em artigo publicado no New York Times e reproduzido pelo jornal O Estado de S.Paulo, 09-10-2013.
Eis o artigo.
Alguns anos atrás, uma jovem que conheci numa pequena aldeia de pescadores na região central de Gana me relatou que, depois que seu marido partiu para tentar a vida na Itália, ela foi para o quintal de sua casa e viu o fantasma dele no portão. "Eu quase desmaiei", afirmou. "Meus pelos se arrepiaram no corpo todo."
No dia seguinte da visão espectral, ela recebeu uma confirmação da Líbia de que ele havia morrido no Mar Mediterrâneo. "A coisa toda realmente me arrasou", disse-me a mulher, quando eu fazia pesquisas para um livro sobre emigração africana não documentada para a Europa. "Estávamos só no começo de nossas vidas."
Na semana passada, a história se repetiu, nas águas da Sicília. Acredita-se que quase 400 refugiados da África Oriental, principalmente da Eritreia e da Somália, possam ter morrido afogados na costa da ilha italiana de Lampedusa. A diferença dessa última catástrofe não foi só na magnitude das perdas humanas, mas na visibilidade e na proximidade da morte.
Desta vez, uma grande quantidade de corpos foi resgatada do Mediterrâneo. Em geral, porém, os restos de imigrantes que se afogam no mar desaparecem. Seus gritos não chegam aos europeus, assim como não chegam às autoridades europeias os gritos que vêm dos centros de detenção que os governos do continente pagaram para países norte-africanos construírem na tentativa de conter a maré humana proveniente do sul do Saara.
Cemitério
Os europeus só poderão honrar os mortos quando se engajarem em uma nova discussão sobre que rumo o continente deve tomar sobre os refugiados. Os governos da Europa vacilaram, contudo, e foram incapazes de chegar a uma política comum para imigração e refugiados.
Países como Itália e Espanha se queixam - com alguma razão - de que não podem ser um portão de entrada para o continente sem contar com a cooperação e o apoio de seus vizinhos. No entanto, com os problemas econômicos que afligem o continente, da França à Grécia, os imigrantes se tornaram bodes expiatórios indesejados. O preço dessas disputas e egoísmos transnacionais tem sido um massacre por negligência bem às portas da Europa.
Eritreia e Somália vêm sendo devastadas por conflitos e pela fome. Países como a Itália rotineiramente enviam embarcações de resgate ao Mar Mediterrâneo para recolher imigrantes ao largo da costa, mas isso é um mero paliativo. O professado compromisso da Europa com os direitos humanos, incluindo, em princípio, o dever de dar refúgio aos que escapam de perseguição e miséria, não tem sido contemplado por políticas de significância.
Depois do último desastre, as autoridades políticas prometeram, como era previsível, reprimir os traficantes de pessoas que atraem imigrantes africanos para suas "banheiras". No entanto, por mais estarrecedor que seja o tráfico humano, as mortes não podem ser explicadas com tanta facilidade.
Os africanos, como imigrantes desesperados de toda parte, veem televisão e leem jornais. Eles conhecem os riscos. A tragédia é que eles arriscam suas vidas porque sentem que não têm nenhuma outra chance real de viver dignamente.
Isso porque, a despeito dos problemas econômicos da Europa, está perfeitamente dentro da capacidade da União Europeia reassentar esses imigrantes. A verdadeira barreira é a desvalorização das vidas africanas.
Para isso não há um conserto rápido. Uma política humana, unificada, sobre refugiados e pessoas que buscam asilo é necessária. O mesmo vale para um compromisso de longo prazo com a transformação social e econômica da África Subsaariana, com a qual os europeus têm uma dívida moral.
No fim deste ano, autoridades em Bruxelas deverão anunciar um novo sistema de vigilância de fronteiras para a União Europeia. Do mesmo modo que o muro entre os EUA e o México, esse sistema de controle, conhecido como Eurosul, é um sonho dos linhas-duras em segurança e da indústria bélica global.
O resultado seria a "Fortaleza Europa"? Uma zona fronteiriça de ficção científica patrulhada por drones? Gastar bilhões de dólares para erguer barreiras em mar e em terra não conterá a migração humana. Pessoas desesperadas sempre recorrerão a medidas desesperadas.
O que é necessário - e deve ser cobrado dos líderes políticos na Europa - é um novo comprometimento com os valores humanitários pelos quais a Europa livre foi admirada em todo o mundo nas décadas após a 2.ª Guerra.
Tragédia
No entanto, à medida que os cadáveres desaparecem dos olhares públicos, o horizonte moral vai se desfazendo e há uma aceitação crescente de que um cemitério submerso é um mal necessário para a manutenção de uma Europa livre e próspera.
Isso é uma desgraça: o sofrimento nas águas geladas da Sicília põe em dúvida a integridade moral de todo o sistema de fronteiras (até onde ele pode ser chamado assim).
A jovem viúva em Gana foi deixada para trás para criar um filho. Quando a conheci, ela estava vendendo caramelos e laranjas em uma mesa à beira de uma estrada. Ela me disse que ia à igreja todas as noites e ainda pensava no marido e rezava por ele. "Ele era uma pessoa humilde e trabalhadora, um tipo calmo", afirmou. "As coisas não iam tão mal para ele. Na Líbia, ele conquistou o respeito de seus colegas com a sua humildade e mansidão. Eu, realmente, perdi uma boa pessoa em minha vida."
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O cemitério submerso que a Europa tolera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU