15 Setembro 2013
O que é a fé, de onde ela provém, como ela é vivida pelos crentes, quais reações ela suscita em quem não é cristão, como ela explica a existência da raça humana e como responde a perguntas que cada um de nós se faz e às quais, na maioria das vezes, não encontra resposta: quem somos, de onde viemos, para onde vamos?
A reflexão é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 07-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nota da IHU On-Line: As perguntas de Eugenio Scalfari ao Papa Francisco, foram feitas em dois artigos. Um, publicado no dia 07-07-2013 e que estamos reproduzindo hoje. O outro artigo foi publicado em 07-08-2013.
Papa Francisco respondeu aos dois artigos escrevendo a carta que pode ser conferida clicando aqui.
No sítio do IHU também podem ser consultados os vários artigos de filósofos, teólogos, cientistas, políticos, que comentam a carta do papa Francisco. Sem dúvida, um debate que marca os seis primeiros meses do atual pontificado.
Eis o texto.
A política e a economia não fornecem novidades neste fim de semana de verão. Só [Matteo] Renzi e os seus contraditórios continuam na sua fofoca, mas, quanto a mim, parece-me inutilmente repetitivo. As verdadeiras novidades referem-se ao que está acontecendo no Egito e, em reflexo, em todo o Oriente Médio. Ocupam-se disso os nossos enviados e comentaristas que conhecem o assunto de cor.
Por isso, levando-se tudo em consideração, o tema que mais me apaixona é a encíclica Lumen fidei, a primeira assinada pelo Papa Francisco. O assunto é importante porque toca o ponto central da doutrina cristã: o que é a fé, de onde ela provém, como ela é vivida pelos crentes, quais reações ela suscita em quem não é cristão, como ela explica a existência da raça humana e como responde a perguntas que cada um de nós se faz e às quais, na maioria das vezes, não encontra resposta: quem somos, de onde viemos, para onde vamos.
Esse é o tema da encíclica, e quase todos os papas o enfrentaram durante o seu pontificado, especialmente a partir do século XIX, isto é, quando a modernidade reavaliou a razão e colocou em discussão o conceito de "absoluto", começando pela verdade. Existe uma única verdade ou tantas quantas os indivíduos e a sua mente racional configurarem?
A Igreja Católica não podia fugir de uma prova de fundamental importância que, dentre outras coisas, põe em causa a liberdade que representa a raiz em que se apoia a própria civilização da Europa moderna. Daí a importância da encíclica.
É singular o fato de que o Concílio Vaticano II não abordou o tema da fé. Ele se propunha explicitamente a abrir o diálogo entre a Igreja e a modernidade. Se tivesse partido da intangibilidade dos "absolutos", partiria com o pé errado.
O Papa Francisco, ao invés, seguiu o caminho tradicional. O fato de que o conteúdo da Lumen fidei tenha sido predisposto pelo Papa Ratzinger tem pouco interesse, exceto para os historiadores que se ocupam das vicissitudes dos papas. Francisco, embora com vários retoques, assumiu o esboço que lhe foi transmitido por Ratzinger e, portanto, é ele que responde por ele na sua alta posição apostólica de Pontífice e de Bispo de Roma. A discussão, portanto, está aberto.
Observo, de passagem, que, simultaneamente à publicação da encíclica, o papa decretou a santificação de João XXIII e de João Paulo II. O primeiro lançou as bases do Vaticano II e atribuiu aos Bispos os temas a serem examinados; o segundo, de algum modo, deu marcha à ré ou ao menos deixou de ir adiante nesse sentido.
Como se coloca Jorge Bergoglio agora? Essa me parece ser a pergunta a ser respondida por um não crente que, no entanto, busca sem preconceitos esclarecer um tema que diz respeito a todos, de perto.
* * *
Os protagonistas religiosos e culturais da encíclica são: o Deus bíblico e a sua relação com Abraão; Moisés e o seu papel de mediador entre Deus e o povo de Israel: o Evangelho do apóstolo João; o pensamento de Paulo e o de Agostinho.
Faço agora uma primeira observação: acho singular que o Papa Francisco baseie grande parte do seu documento no quarto Evangelho atribuído, sem dúvida alguma, ao apóstolo. Os estudiosos dos Evangelhos e dos evangelistas colocaram esses documentos entre os anos 40 e 70 anos depois de Cristo. O de Marcos seria o primeiro; logo depois, entre os 40 e os 50, Mateus e Lucas; João, entre os 60 e 70. Como Jesus morreu aos cerca de 33 anos de idade, se o evangelista do quarto Evangelho fosse o apóstolo, ele o teria escrito entre os seus 80-90 anos, o que parece francamente improvável.
No entanto, condição apostólica ou não, João como Marcos não fornecem nenhuma notícia sobre o nascimento e a infância de Jesus. Não há Belém, não há José e Maria, não há estrela-cometa, pastores adorando e Magos vindos do Oriente, não há fuga para o Egito, nem massacre dos inocentes.
O Evangelho de João começa com versos proféticos e poéticos: "No princípio era o Verbo, / e o Verbo era Deus. / Todas as coisas foram feitas por ele, / e sem ele nada foi feito do que existe. / Nele havia a vida, / e a vida era a luz dos homens. / O Verbo estava no mundo, / e o mundo não o reconheceu. / Veio às suas casas, / mas não o receberam. / Mas a todos aqueles que o receberam, / deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus".
E, enfim, o ponto crucial: "E o Verbo se fez carne / e habitou entre nós, / e nós fomos espectadores da sua glória. / A lei foi dada por Moisés, / mas a graça e a verdade / vieram por Jesus Cristo. / Ninguém jamais viu Deus. / O Unigênito Deus, / que está no seio do Pai, / foi quem o manifestou".
Para o evangelista João, Jesus é, portanto, o Verbo que se fez carne. Esse aspecto é muito delicado do ponto de vista teológico. Ninguém conhece a Deus, se não através do Unigênito que se fez carne e entrou nas nossas casas, nas casas daqueles que o receberam. Mas se ele se fez carne, certamente não assumiu um hábito, vestiu uma túnica e adotou os movimentos de homem permanecendo Deus. Se ele se fez carne, ele também assumiu as dores, as alegrias, os desejos dos homens.
De fato, segundo os outros três evangelistas, pouco depois do batismo nas águas do Jordão, Jesus retirou-se por 40 dias no deserto, para ser tentado pelo demônio e pôr-se à prova desse modo. O fato de ter resistido a essas tentações, portanto, deriva de uma batalha sua contra os desejos humanos. Os homens normalmente perdem esse tipo de batalhas, salvo se depois se arrependem, caem novamente e arrependem-se mais uma vez, confiando na misericórdia de Deus. Os santos geralmente as vencem, e Jesus – dizem os Evangelhos – a venceu e expulsou o demônio. Mas se ele tinha natureza de homem, os desejos permaneceram, e também permaneceu o amor por si mesmo, juntamente com o amor pelos outros.
Ele tentou um milagre: fazer desaparecer o amor por si mesmo concentrando todo o seu fluxo amoroso sobre os outros e até mesmo prescrevendo aos seus discípulos que amassem o próximo como a si mesmos. Atenção: como a si mesmos. O amor pelos outros, portanto, não abolia o amor por si mesmo, mas se elevava como podia ao mesmo nível de sentimento.
Além disso, o fato de que Jesus amasse a si mesmo resulta de uma série de episódios recém-mencionados no Evangelho de Marcos, mas detalhadamente relatados no de Mateus. Um dia, Jesus falava com um grupo de pessoas em uma casa em Cafarnaum, quando o dono daquela casa se aproximou dele e lhe sussurrou que, do lado de fora da porta, estavam a sua mãe e os seus irmãos (pela primeira vez se menciona em um Evangelho a existência de irmãos) que queriam vê-lo. Jesus ouviu e respondeu indicando os presentes com um gesto largo: estes são os meus irmãos, e essa gente é a minha mãe. Diga a quem te manda que volte para casa em paz.
Em outra ocasião, ele se dirige aos discípulos que o seguem dizendo-lhes: "Quem decidiu me seguir deve odiar o seu pai, mãe, irmãos e irmãs. Deve deixar tudo se quiser me seguir e me amar".
Enfim, outro episódio, relatado tanto por Marcos quanto por Mateus: "Um dos discípulos disse-lhe um dia: Senhor, amanhã eu não posso estar contido, devo ir ao funeral do meu irmão, mas voltarei assim que for possível. E Jesus respondeu: não vai e deixa que os mortos enterrem os mortos".
Se falássemos de uma pessoa comum, em vez daquilo que ele era (ou acreditava ser), o Filho de Deus, com base nesses episódios, pensaríamos estar na presença de um Narciso na enésima potência. Portanto, é justificada a dúvida: falamos do filho de Deus ou do filho do homem? E qual é a resposta que a Igreja dá a esses episódios escritos nos Evangelhos reconhecidos pela própria Igreja como documentos válidos e confiáveis?
Eu acrescento, sempre falando dos Evangelhos que são a única documentação sobre a existência histórica do personagem, que, depois de um ano de pregação, Jesus fez aos seus 12 apóstolos que representavam o "círculo mágico dos seus fidelíssimos" a pergunta: "Quem vocês acreditam que eu sou?".
As respostas foram várias. A maioria disse "tu és o Rabi, o mestre". Alguns disseram: tu és o profeta Isaías redivivo. Outros disseram: tu és o Messias, o mensageiro de Deus que o povo de Israel espera. Enfim, um apenas respondeu: tu és o filho de Deus. Quanto a ele, quando fala de si mesmo, se define como filho do homem, mesmo que, falando de Deus, sempre use a palavra "Abbá", isto é, Pai.
Enfim, no Getsêmani e depois sobre a cruz, quando está prestes a lançar o último suspiro, ele invoca o pai e implicitamente o repreende: "Por que me abandonaste?". Nesse ponto, ele morre, o seu corpo se torna um despojo, enquanto o céu explode com raios e trovões, e a terra treme.
Assim relatam os evangelistas. É evidente que uma encíclica séria que se coloca o tema da fé não pode fugir dessas perguntas, senão se torna um documento banal que demonstra e explica a fé descrevendo-a como dom de Deus. O Deus pai ou o seu filho? O seu filho, responde a encíclica, e delineia a sequência habitual: conhece-se o Pai apenas passando pelo Filho, e conhece-se o Filho apenas passando pelos sucessores dos apóstolos, isto é, os Bispos e, em particular, o Bispo de Roma, que é o mais alto representante do magistério apostólico.
E mais: a fé é sinônimo de verdade. A verdade é o conteúdo da fé e do amor.
Não há dúvida de que o amor é o conteúdo pastoral da Igreja Católica e certamente é o traço mais positivo de toda a sua pastoralidade. Nem todas as outras confissões cristãs pregam o amor do mesmo modo. Esse é um sinal de diversidade e de qualidade da Igreja de Roma. Mas agora se põe uma última pergunta.
* * *
A encarnação de Deus, e do Verbo, é um traço distintivo e exclusivo do cristianismo. Nada de semelhante existe nem para judeus, nem para os muçulmanos, os outros dois monoteísmos existentes no mundo. Na realidade, não existe um Deus encarnado e Unigênito em nenhuma religião do mundo. Em algumas, existem deuses encarnados, mas mais de um. Mesmo os "Olímpicos" se encarnavam se e quando queriam, mas não eram verdadeiros homens ou verdadeiras mulheres: assumiam aparência humana (ou animalesca), mas nada mais do que isso. Deste ponto de vista, portanto, o cristianismo (e sobretudo o catolicismo) é uma exceção. Mas qual é o escopo, ou, se quiserem, o resultado?
Poder-se-ia responder: a fé. Mas, infelizmente para aqueles que dizem isso, é uma resposta equivocada. A fé em Alá certamente não é menor do que a no Pai e no Filho. Poder-se-ia até dizer que é ainda mais intensa e, certamente, mais difundida nas populações árabes em particular.
Alá não tem uma figura, não é de forma alguma representável e representado. É uma grande deficiência para a história da arte, mas não o é do ponto de vista religioso. Alá é o senhor do céu e da terra, e os seus devotos terão a felicidade do céu, as obras serão premiadas, as orações deverão ser feitas ao menos duas vezes por dia com o rosto voltado para Meca, onde quer que se encontre a pessoa crente. A secularização do mundo muçulmano começou, mas prossegue com extrema lentidão. Trono e altar conviveram por séculos nas pessoas dos califas, dos sultões, dos emires.
A ausência de um Unigênito encarnado, portanto, não impede a fé. E, então, por quê? Uma resposta – política – existe e se chama limite. Deem a César o que é de César. O cristianismo nasce em concomitância com o Império e continuou ao longo dos séculos lidando com a autoridade imperial e também civil. Ele rejeitou (ou teve que rejeitar) a tentação da teocracia. O Deus encarnado sempre especificou: o meu reino não é deste mundo. Pilatos diante dessa resposta estava para agraciá-lo, mas a plebe de Jerusalém preferiu Barrabás.
Enfim, uma palavra que diz respeito aos judeus e ao seu Deus, que também é o Deus cristão sob outros despojos: esse Deus não havia prometido a Abraão prosperidade e felicidade para o seu povo? Mas durou muito pouco essa prosperidade. Eles foram escravizados pelos egípcios, depois pelos assírios e pelos babilônios, depois, quase sem intervalo, pelos romanos, depois a diáspora, depois as perseguições, por fim o Holocausto. O Deus de Abraão, portanto, não manteve a sua palavra. Qual é a resposta, reverendíssimo Papa Francisco?
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As respostas que os dois papas não dão. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU