05 Setembro 2013
É necessário conhecer as razões da pobreza em nível social, econômico e cultural. Isso exige instrumentos de análise que nos são fornecidos pelas ciências humanas, mas, como todo pensamento científico, elas trabalham com hipóteses que permitem compreender a realidade que buscam explicar. Isso equivale a dizer que elas são chamadas a mudar diante de fenômenos novos.
A opinião é do teólogo dominicano peruano Gustavo Gutiérrez, um dos "pais fundadores" da Teologia da Libertação, autor de Teologia da Libertação: Perspectivas (Ed. Loyola). O artigo foi publicado no jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 04-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não estamos com os pobres se não somos contra a pobreza, dizia Paul Ricoeur há muitos anos. Ou seja, se não rejeitamos a condição que oprime uma parte tão importante da humanidade. Não se trata de uma rejeição meramente emotiva. É necessário conhecer as razões da pobreza em nível social, econômico e cultural. Isso exige instrumentos de análise que nos são fornecidos pelas ciências humanas, mas, como todo pensamento científico, elas trabalham com hipóteses que permitem compreender a realidade que buscam explicar. Isso equivale a dizer que elas são chamadas a mudar diante de fenômenos novos.
É o que acontece hoje diante da presença dominante do neoliberalismo que vem sobre as costas de uma economia cada mais autônoma da política (e, antes ainda, da ética), graças ao fenômeno conhecido pelo termo, um pouco bárbaro, "globalização".
A situação assim designada, como sabemos, vem do mundo da informação, mas tem poderosas repercussões sobre o campo econômico e social, e em outros âmbitos da atividade humana. No entanto, a palavra é enganosa, porque faz acreditar que nos orientamos rumo a um mundo único, quando, na realidade, e no momento atual, comporta inevitavelmente uma contrapartida: a exclusão de uma parte da humanidade do circuito econômico e dos chamados benefícios da civilização contemporânea.
Uma assimetria que se torna cada vez mais pronunciada. Milhões de pessoas são, assim, transformadas em objetos inúteis, ou descartáveis após o uso. Trata-se daqueles que ficaram fora do âmbito do conhecimento, elemento decisivo da economia dos nossos dias e o eixo mais importante de acumulação de capital.
Deve-se notar que essa polarização é consequência da forma em que estamos vivendo hoje a globalização, que constitui um fato que necessariamente não deve assumir os contornos atuais de uma crescente desigualdade. E, como sabemos, sem igualdade, não há justiça. Sabemos disso, mas o problema assume hoje uma urgência cada vez maior.
O neoliberalismo econômico postula um mercado sem limites, chamado a se regular sozinho e submete qualquer solidariedade social nesse campo a uma dura crítica, acusando-a não só de ser ineficaz com relação à pobreza, mas até de ser uma das suas causas. Que houve abusos nesse campo é claro e reconhecido, mas aqui estamos diante de uma recusa de princípio que deixa sem proteção os mais frágeis da sociedade.
Um dos corolários desse pensamento, e um dos mais dolorosos e agudos, é o da dívida externa, que oprime e mantém as mãos amarradas das nações pobres. Dívida que cresceu de maneira espetacular, dentre outros motivos, por causa das taxas de juros manipuladas pelos próprios credores. O pedido do seu cancelamento foi um dos pontos mais concretos e interessantes da decisão de João Paulo II de celebrar um jubileu, no sentido bíblico do termo, para o ano de 2000.
Essa desumanização da economia, em vigor há algum tempo, que tende a transformar tudo em mercadoria, inclusive as pessoas, foi denunciada por uma reflexão teológica que mostra o caráter idólatra, no sentido bíblico do termo, desse fato. As circunstâncias atuais não só tornaram mais urgente esse chamado, mas também forneceram novos elementos de aprofundamento.
Por outro lado, assistimos hoje a uma curiosa tentativa de justificação teológica do neoliberalismo econômico que, por exemplo, compara as multinacionais ao Servo de YHWH, atacado e vilipendiado por todos, enquanto delas viriam a justiça e a salvação. Sem falar da chamada teologia da prosperidade, que tem vínculos muito estreitos com a posição recém-lembrada. Isso levou, às vezes, a postular um certo paralelismo entre cristianismo e doutrina neoliberal.
Sem negar as suas intuições, é preciso se interrogar sobre o porte de uma operação que nos lembra aquela que, no extremo oposto, foi feita, há anos, para refutar o marxismo, considerado também como uma espécie de "religião", que, além disso, teria seguido, passo a passo, a mensagem cristã (pecado original e propriedade privada, necessidade de um redentor e proletariado etc.). Mas essa observação, é claro, não tira nada da necessidade de uma crítica radical das ideias dominantes hoje no âmbito da economia. Ao contrário.
Uma reflexão teológica a partir dos pobres, preferidos por Deus, se impõe. Ela deve levar em consideração a autonomia da disciplina econômica e, ao mesmo tempo, ter em mente a sua relação com o conjunto da vida dos seres humanos, o que comporta, acima de tudo, levar em consideração uma exigência ética.
Da mesma forma, evitando entrar no jogo das posições que acabamos de mencionar, não devemos perder de vista que a rejeição mais firme às posições neoliberais ocorre a partir das contradições de uma economia que se esquece cinicamente e, a longo prazo, de maneira suicida dos seres humanos, particularmente daqueles que não têm defesas nesse campo, isto é, hoje, a maior parte da humanidade.
Trata-se de uma questão ética no sentido mais amplo do termo, que impõe que entremos nos perversos mecanismos que distorcem a partir de dentro a atividade humana chamada economia. Esforços corajosos de reflexão teológica são feitos nesse sentido entre nós.
Nessa linha, a da globalização e da pobreza, também devemos colocar as perspectivas abertas pelas correntes ecologistas diante da destruição, igualmente suicida, da natureza. Elas nos tornaram mais sensíveis a todas as dimensões do dom da vida e nos ajudaram a ampliar o horizonte da solidariedade social que deve compreender um respeitoso vínculo com a natureza.
O problema não diz respeito apenas aos países desenvolvidos, cujas indústrias causam tantos danos ao habitat natural da humanidade. Envolve a todos, também os países mais pobres.
É impossível hoje refletir teologicamente sobre o problema da pobreza sem levar em conta essas realidades.
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Os preferidos de Deus. Artigo de Gustavo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU