09 Julho 2013
"Muito se tem falado da TRC (Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana) como um modelo para o nosso País. De fato, a Comissão Nacional da Verdade brasileira tem muito a aprender com os métodos de sua congênere: transparência do plano de trabalho, abertura para a participação das vítimas, sensibilização pública, compromisso de equipe e relação próxima com a sociedade", escreve Renan Honório Quinalha, advogado da Comissão da Verdade de São Paulo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 07-07-2013.
Eis o artigo.
Divulgado quinta-feira, um documento judicial datado de 26 de junho afirma que o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela está em um "estado vegetativo permanente" e que sua família pensou na possibilidade de desconectar a máquina que o mantém vivo.
O drama de Nelson Mandela levou o mundo a manifestações de reverência e reconhecimento por esse líder, ícone da luta contra o apartheid sul-africano (1948 a 1994).
Esse regime de segregação racial foi caracterizado pela proibição de casamentos inter-raciais, restrição de trabalho e da liberdade de locomoção aos negros, prisões e perseguições imotivadas e execuções sumárias. Uma profunda crise de legitimidade do regime (dentro e fora do país) abriu um período de negociação de uma Constituição com o objetivo de reconciliar essa fratura histórica e promover uma nova organização política, com os diferentes grupos que compõem esse mosaico étnico.
De partida, uma questão fundamental a ser enfrentada: como lidar com a dura lembrança das violências do apartheid?
Contrariando a pressão pelo esquecimento, prevaleceu um modelo de busca da verdade combinado com um perdão seletivo e condicional, duramente negociado entre o apartheid e a oposição, com Mandela à frente. A conjuntura era delicada para que atos de justiça contra o regime anterior fossem realizados.
No livro No Future without Forgiveness, o agora arcebispo Desmond Tutu, Presidente da Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC), relata que o objetivo dos líderes políticos era evitar o confronto direto, a exclusão e as ações de boicotes ao processo de reconciliação.
O "The Promotion of National Unity and Reconciliation Act" (1995) instituiu a TRC, com 17 membros e composta por três comitês: Violações aos Direitos Humanos, que identificava as vítimas, a violência e suas circunstâncias; Reparação e Reabilitação, com o objetivo de restaurar a dignidade das vítimas e das comunidades atingidas, reparando simbólica e pecuniariamente; Anistia, que era responsável pela análise dos pedidos, considerando as condições para a concessão desse benefício, especialmente se as informações prestadas eram completas e verdadeiras.
Foram fixadas as seguintes condições para a concessão do perdão: a violação tinha de ter ocorrido de 1960 até 1994; o ato tinha de ser politicamente motivado (sob comando ou em nome de organizações políticas); o requerente devia fazer uma descrição minuciosa dos fatos e a proporcionalidade entre objetivo e meios devia ter sido observada.
Assim, o perdão era uma moeda de troca para chegar à verdade. As vítimas poderiam questionar a concessão do benefício, provando que as condições não foram cumpridas pelo perpetrador da violência, mas não tinham poder de veto. A anistia acabou concedida apenas a uma reduzida minoria que atendeu a essas condições.
Segundo Tutu, só foi possível essa "terceira via" do perdão seletivo, que se distanciou tanto do paradigma de Nuremberg quanto da anistia incondicionada, por conta do "ubuntu". O lema dessa visão de mundo seria "sou humano porque eu pertenço à humanidade", só atinjo essa condição por meio do outro. A harmonia social só pode ser atingida se o perdão for exercitado e a reconciliação alcançada.
A grande virtude da TRC foi a ampla participação das vítimas e a total transparência nos trabalhos. Mais de 22 mil pessoas foram ouvidas, muitas em audiências públicas, nos grandes centros e em comunidades afastadas. Depoimentos foram transmitidos por TV e rádio, nos diversos idiomas falados no país africano.
Críticas foram - e ainda são - dirigidas a TRC. Primeiro, nem todos os grupos étnicos compartilhavam dessa visão de mundo. Segundo, reconhecidos os atos de violência, fortaleceu-se o reclamo por justiça e questionou-se a anistia concedida.
Durante a transição, o anseio por estabilidade afastou as formas mais tradicionais da justiça. Hoje, mostra-se necessário responsabilizar os autores das violências, dada a dificuldade de conviver com o peso da indiferença e da impunidade.
Muito se tem falado da TRC como um modelo para o nosso País. De fato, a Comissão Nacional da Verdade brasileira tem muito a aprender com os métodos de sua congênere: transparência do plano de trabalho, abertura para a participação das vítimas, sensibilização pública, compromisso de equipe e relação próxima com a sociedade.
Contudo, a aproximação deve parar por aí. Afinal, trata-se de uma experiência singular da África do Sul, arquitetada para um contexto de fragilidade das instituições e após um regime de segregação único no mundo.
O Brasil viveu um regime de terrorismo de Estado. Sua Comissão surge quase 30 anos depois da transição, com instituições estabilizadas e em regular funcionamento. Que o compromisso com a verdade e a energia para o enfrentamento do passado, princípios da TRC, sirvam de inspiração para nosso trabalho de memória e justiça, em especial para nossa Comissão superar as divergências internas que têm prejudicado sua atuação e levado à paralisia. Mas, para evitarmos comparações indevidas e conclusões equivocadas, as diferenças devem sempre ser lembradas.
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A verdade de cada um. A Comissão de Verdade e Reconciliação Sul-Africana e a Comissão Nacional da Verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU