Por: Jonas | 10 Abril 2013
Emilia Robles relata o encontro que teve com o então cardeal Bergoglio, em 2005, quando conduzia a Arquidiocese de Buenos Aires. Com uma narração consistente, Robles relativiza a posição comum em alguns círculos eclesiais em denominar Bergoglio como um conservador. A partir da conversa com o cardeal, concluiu que “a renovação da Igreja, em nível global, não tinha mais do que começado, pois se uma pessoa que era qualificada de 'conservadora' tinha essa atitude e esse compromisso, era crível que o processo conciliar 'estava em marcha'”. Seu relato é publicado no sítio Religión Digital, 09-04-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o relato.
Janeiro de 2005. Nós, os dois coordenadores da Proconcil (Fundação para a mediação social, eclesial e inter-religiosa) tínhamos sido convidados para participar como representantes da iniciativa “Para um novo Concílio”, no primeiro Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Aconteceria em Porto Alegre, de 21 a 25 de janeiro, no mesmo marco em que se daria, em continuidade, o Fórum Social Mundial.
Um antecedente importante deste primeiro fórum de Teologia e Libertação foi o encontro, em 2003, de São Paulo: “O cristianismo na América Latina e Caribe”, que também assistimos, animados, entre outros, pelo nosso grande amigo José Oscar Beozzo. Nesse encontro – com maior participação do que o próprio fórum –, reunindo mais de 700 delegados do continente latino-americano e caribenho, foi apresentado, em público, a iniciativa Proconcil.
Em 2005, seguíamos trabalhando no processo de estender pontes entre diversos setores e sensibilidades eclesiais, orientados em poder compartilhar visões e abordar tarefas compartilhadas. Buscávamos conseguir gerar amplos consensos, respeitando o legítimo e enriquecedor pluralismo eclesial, para poder avançar de maneira colaborativa numa Missão evangelizadora. Uma Missão que se expressa, principalmente, através da aposta na Paz, Justiça e Vida com dignidade para todos e todas e, em especial, para os mais pobres. Um processo no qual a Igreja se aggiornara em suas relações e linguagens, para melhor servir esta tarefa, sempre em diálogo com os “outros”.
Em nome, pois, desta tarefa e conscientes da estrutura hierárquica da Igreja, um dos passos que projetávamos era melhorar a comunicação também com bispos e cardeais, na medida em que fosse possível. Alguns bispos, principalmente da América Latina, já haviam consolidado sua adesão a Proconcil em seu lançamento, na primavera de 2002, em sinal de comunhão e de compromisso com este projeto de avançar num caminho conciliar. Entre eles, também algum cardeal. Foi também uma oportunidade para, pessoalmente, conhecer alguns.
Quando soubemos que tínhamos que viajar para Porto Alegre, para o Fórum, pela localização da região dentro do Brasil e a proximidade com a Argentina, enxergamos a oportunidade de conversarmos com o cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio. Poderíamos fazer escala na capital e ficarmos duas ou três noites na casa de uma pessoa amiga e seguir nossa rota, sem muito gasto.
Algumas referências que nós tínhamos sobre a sua época de jesuíta não eram muito atrativas; pesava sobre ele uma marca de conservadorismo. Contudo, peneirávamos a informação, já que nos vinha de alguns jesuítas, grandes amigos por outro lado, que viveram ou escutaram referências de um antigo conflito congregacional e tocou-lhes vivê-lo do lado que se sentiu prejudicado pela posição de seu Provincial de então, que não era outro que Bergoglio. No entanto, isso não nos intimidou no momento de pedir a entrevista, por vários motivos.
Diálogos na fronteira
Desde há alguns anos, por meio de amizades comuns, tínhamos referências de sua simplicidade, sua austeridade, de suas linguagens diretas, de sua proximidade e amizade – em pé de igualdade e fraternidade – com pessoas de pensamento diferente do seu, tanto homens como mulheres. Havia se comprometido com diálogos de fronteira, intraeclesiais e com outras igrejas e confissões. Tinha uma opção clara pelos pobres, pela justiça e pela transparência. E isto nos fazia senti-lo mais próximo.
Relativizávamos a atuação congregacional feita em sua juventude, da qual nos faltavam dados gerais e contextuais e não queríamos fazer um juízo definitivo. Imaginávamos que as razões e as boas intenções estavam repartidas. Como também não pensávamos que a visão unilateral, que nós mais conhecíamos, desse conta de uma totalidade de motivações, buscas, cuidados, no contexto em que foi produzido; e que, talvez, o que foi negativo para algumas coisas, foi positivo para outras também importantes. Sempre pensamos, além disso, que as pessoas podem mudar. Um exemplo que parece evidente é o de Oscar Romero, sem que com isto se pretenda fazer alguma comparação.
Se ele pensava igual ou diferente de nós, a respeito de certos temas, não era o que mais nos preocupava. Sabíamos e sabemos que para percorrer o caminho conciliar na Igreja, não podemos estar divididos entre progressistas e conservadores, nem entre movimentos e comunidades, nem entre libertadores e carismáticos, para considerá-lo de alguma maneira, mas temos que entrar num projeto comum e nos enriquecer mutuamente, distanciando, do entorno e de nós mesmos, corrupções de qualquer índole e fundamentalismos.
E o que tínhamos mais claro – por seus feitos e sua atitude constante nos últimos anos – é que este homem falava de muito longe do fundamentalismo e de qualquer forma de corrupção. Isso nos bastou para insistir timidamente, através de alguém que mediou, uma mulher por certo, um encontro que nos transbordou amplamente.
Não era o primeiro cardeal com quem havíamos conversado pessoalmente. Sempre fomos muito discretos a respeito dessas conversas, da mesma forma com os religiosos de diversas responsabilidades ou com leigos com um papel relevante. Compartilhávamos com a rede Proconcil a vontade de estabelecer pontes com diversos setores da Igreja, mas não gostávamos de utilizar a informação de conversas particulares para incentivar o projeto, deixando em evidência outras pessoas ou usando argumentos de autoridade ou de poder.
De tal maneira que, naquela manhã de meados de janeiro de 2005, na capital portenha, na saída da entrevista, ainda em bom dia, embriagados de certa emoção decidimos que o que havíamos conversado com o cardeal Bergoglio, em detalhe, ficaria em nosso coração e que apenas transmitiríamos, pelo momento, uma visão positiva e restrita ao nosso entorno a respeito desse diálogo.
O impacto do encontro foi tão intenso e nos “deslocou” tanto, que muitas vezes “mordemos a língua” falando com algum membro dos grupos ou com jornalistas, inclusive, com pessoas muito próximas, para não relatar a entrevista. No entanto, há alguns dias, no dia 5 de abril de 2013, pela manhã, sem nenhum motivo que possa identificar, indo no carro, ensimesmada em meus pensamento, de repente senti com muita força a intuição de que agora, sim, era o momento de contar ao menos uma parte da experiência vivida.
Experiência significante
Preciso dizer, em primeiro lugar, que foi uma experiência significante em nossas vidas, da qual saímos transformados (como se sai sempre que existe um autêntico diálogo). Omitirei alguns detalhes da conversa, que se refiram a pessoas ou temas muito concretos, e sua opinião a respeito deles, pois não contribuiriam em nada e poderiam distorcer a compreensão do encontro todo.
Algo que já nos chamou atenção foi as circunstâncias que rodearam a entrevista. Nossa escala na Argentina tinha como único objetivo falar com o cardeal Bergoglio. Embora tivéssemos conhecidos e amigos, em Buenos Aires, não teríamos tido este pequeno gasto de tempo e dinheiro, com a escala, apenas por essa razão. Mesmo assim, estivemos a ponto de não poder nos encontrar. Aconteceu a circunstância – inesperada quando planejamos a viagem, meses atrás – de que, nesses dias, ele precisou viajar para Roma. Chegaria apenas na noite anterior ao dia em que deveríamos partir para Porto Alegre. Portanto, restava apenas uma manhã para podermos nos encontrar.
Junto a isto se somou uma complicação imprevisível: na noite de sua volta, faleceu um sacerdote jesuíta. O óbito alterava sua agenda, posto que, no dia seguinte, iria ao velório presidir uma missa. Havia, pois, razões suficientes para não nos ver. No entanto, ele nos fez chegar uma mensagem de que nos receberia meia hora, caso pudéssemos ir às oito da manhã. É claro, nós aceitamos agradecidos.
Quando chegamos à Cúria, na Rua Rivadavia, alguém nos fez passar para uma sala de espera própria de um palácio arcebispal, com suas cadeiras estofadas, seus quadros de personagens ilustres, que pareciam nos olhar dizendo: O que estes “quaisquer” fazem aqui?... Estávamos bastante inquietos em razão do espaço e protocolos. Surgiu-nos essa risada nervosa e esse incômodo que os pobres sentem quando vão à casa dos ricos. Como também eu não me considerava muito digna de demasiada atenção por parte de pessoas muito ocupadas, que teriam questões muito mais importantes para despachar do que a “revoada” que pretendíamos para a Igreja, como nos disse alguns anos atrás – com simpatia – um jesuíta da Cúria, em Roma.
Sem demorar muito tempo, que pudesse acelerar nossa inquietação, abriu-se uma porta à esquerda. Pensamos que sairia algum secretário ou encarregado, mas ele se apresentou diretamente. Se eu dissesse como estava vestido, mentiria, pois olhei para os seus olhos e não vi mais nada. Acredito que usava um traje escuro e uma cruz. Nada que chamasse muito à atenção. Saudou-nos com dois beijos e nos convidou a passar para um escritório minúsculo, como o de qualquer paróquia da periferia, com três cadeiras básicas, retirando uma detrás da mesa e a colocando junto às outras, sem distâncias diferenciadas.
Perguntamos-lhe como deveríamos nos dirigir a ele e nos disse: “Ah, eu chamo todo mundo de “vós” (de tu)”. Na continuidade, antes que disséssemos qualquer coisa, observou o relógio, olhou-nos e disse “mas é muito cedo, vocês não tomaram café. Venham, vamos preparar um café. Eu mesmo faço, pois é muito cedo e o secretário ainda não terá chegado”. Íamos fazer o café junto com ele, o que sem dúvida teria normalizado ainda mais a situação, e teria gerado mais proximidade. Quando começávamos a procurar o açúcar, as taças e os guardanapos, apareceu o secretário, que não pareceu muito cômodo com a ideia e disse que, de maneira alguma [aceitava isso], que ele se encarregava de nos trazer o café.
A pessoa que mediou para a realização da entrevista – uma mulher – havia nos dito que Bergoglio não apenas falaria, mas nos escutaria de verdade. Ainda bem que não se cumpriu esta expectativa, pois teria sido uma entrevista muito mais curta e menos enriquecedora. Apesar da acolhida fraterna e próxima, a situação não era a mesma que se via com um bispo latino-americano com camisa colorida e tênis, no marco de um curso ou de um encontro no Brasil, como já tínhamos estado outras vezes. Todavia, aconteceu o contrário. Sua fluidez próxima e direta foi relaxando nossos temores e falou direto, com confiança e sem rodeios.
Ninho de bichos
Explicamos-lhe a iniciativa da Proconcil e o instruímos com um documento, a carta ao Papa e as assinaturas de quarenta bispos. Leu o documento, olhou a lista, fez um comentário positivo a respeito de alguns que conhecia de muito perto. Na continuidade, disse-nos: “Sim, eu já estou conversando sobre este assunto com X (outro cardeal)”. E, em seguida, nos citou outros cardeais, com os quais também havia falado, que pareciam estar no oposto do primeiro a ser citado. Contudo, surpreendeu-nos tanto o fato de ter falado nesse contexto sobre o processo conciliar, que não perguntamos o que tinha conversado com pessoas tão díspares. Agora, posso entendê-lo muito bem. Porque todos eles são necessários, assim como todos nós, tão díspares, somos também necessários para desenvolvê-lo.
Continuou como quem fala com amigos próximos, com confiança. Contou-nos que acabava de chegar de Roma e que havia conversado com alguns cardeais. Estavam preocupados e incomodados, pois enxergavam uma tendência, em algum setor da Igreja, em situar o centro das preocupações da Igreja, e a fidelidade à doutrina, quase exclusivamente em certas questões da moral sexual, com um enfoque que para eles parecia inadequado e sempre com tons restritivos e condenatórios.
Eles situavam as prioridades da Igreja num outro enfoque bem diferente. Isto, ele nos relatou com dois exemplos muito concretos, que refletiam seu pensamento e que nos deixaram absolutamente impactados pela liberdade profundamente cristã, a humanidade e a empatia que revelavam, muito distante de outros discursos oficiais. Eu os irei omitir, por cautela, pois a atenção se centraria sobre isso, quando o que ele queria refletir, precisamente, é que isso não era o importante.
Alguns problemas urgentes que a Igreja possui? – disse -: “Vejam, existem centros de espiritualidade que são como “ninhos de bichos”. Levantam-se assim e saem. É com isso que é preciso acabar”. Até alguns meses depois, não entendíamos muito bem do que falava, até que foi eleito Ratzinger e se manifestou, ampla e profusamente, o assunto da pedofilia e dos abusos de menores. Sabíamos de alguns casos de abusos nos Estados Unidos e do escândalo da Áustria, em 1995, mas de nenhuma maneira sabia-se o alcance e as dimensões dramáticas da realidade. Talvez também se referisse, além disto, a outros problemas de corrupção financeira. Não quisemos perguntar-lhe mais.
Continuou com o processo conciliar, com a necessidade de estender pontes e de continuar as conversas; e com a atitude que a Igreja deveria ter. Insistiu que seria necessário buscar novas vias de aprofundamento nos assuntos de interesse geral, sem medo, que fomentem o diálogo e o encontro. Disse-nos que eles tinham convocado uma Assembleia na Diocese e que alguns padres estavam um pouco inquietos a respeito de como poderia ser conduzida. No entanto, ele lhes dava ânimo. Disse-nos que correr certos riscos e sair à rua era importante para a Igreja, porque, apresentou-nos o exemplo: “Se uma pessoa sai à rua, pode sofrer um acidente, mas se sempre fica em casa é porque está doente. Eu prefiro uma Igreja acidentada, que uma Igreja doente”.
A respeito de outros temas, com o da autoridade, sem que fosse perguntado, disse-nos espontaneamente: Olhem “eu prefiro que ‘meus’ padres me peçam perdão, não que me peçam permissão”. E nos explicava que “eles, às vezes, querem me pedir permissão, mas eu não estou lá, não conheço da mesma maneira as situações e cada um tem sua forma de fazer as coisas. Talvez se eu disser o que precisam fazer, não ofereça um bom conselho. Assim, o melhor é que atuem com consciência e se houver algum erro que se desculpem depois”.
A entrevista durou uma hora e transcorreu sem intervalos. Quando estávamos para sair, perguntamos para ele no que sugeriria que colocássemos a ênfase deste processo que animávamos. E disse-nos: “Na misericórdia” “Coloque a ênfase na misericórdia. Porque todos nós necessitamos de misericórdia”.
Em seguida, surpreendeu-nos: “agora acompanho vocês e vou lhes apresentar alguém que está esperando lá embaixo, pois deseja lhes conhecer pessoalmente”. Despedimo-nos, pediu para que rezássemos por ele e nos deixou com uma mulher que havia acompanhado intensamente, desde o início, a iniciativa Proconcil e a quem, de outra forma, não teríamos conhecido pessoalmente. Foi o início de uma bela amizade, que continuamos cultivando. Acompanhamos o seu trabalho para continuar compartilhando durante essa manhã. No entanto, nem sequer para ela, nem para a amiga que nos procurou, comentamos algo do que foi falado, a não ser a boa impressão geral. Somente muitos anos depois, compartilhamos algo a mais.
Nessa viagem, um dia antes deste encontro, aconteceu algo não estava na nossa agenda, que agora me parece também muito significativo. Havia uma família muito amiga no Uruguai, de origem argentina, que nós fomos visitar – após sua carinhosa insistência – numa viagem muito rápida. Fomos de avião pela manhã e retornamos alternando entre o ônibus e o barco (6 horas pela noite). Ele tinha sido sacerdote e ela missionária. Ele trabalhava pelo compromisso cristão com o mundo operário. Em 1976, foram presos na Argentina, acusados injustamente de colaborar com o movimento guerrilheiro e de esconder armas. São pessoas de uma ternura e qualidade humana impressionante. Foram torturados durante dias. Sua filhinha mais velha, com 11 meses, dormia na mesma mesa em que eles eram torturados. Esperavam inutilmente que a hierarquia da Igreja fizesse algo por eles. Vã esperança.
Curando feridas
Até que a ele, sem dúvida, mais angustiado pela sorte de sua família do que pela sua própria, acendeu-se uma luzinha. Disse aos guardas que ia se confessar. As armas – disse-lhes – tinha escondido debaixo do altar. As forças da ordem foram imediatamente escavar na Igreja. Começaram a romper o chão violentamente. Somente assim o bispo do local correu para tomar partido. Reagiu tristemente quando profanaram o “lugar sagrado”, não quando profanaram os templos do Espírito que eram aquelas criaturas. Então, aquele bispo precisou compreender algo, mediou e o libertaram. Foram embora, assim como tantos outros que puderam escapar do inferno, para outros países, deixando família, amigos e pertences.
Conservaram a fé, a esperança e a caridade, mas romperam os laços com a Igreja e serão difíceis de reconstruir. No entanto, na medida em que o tempo passa, são mais capazes de perdão e gozo. Nem todos terminaram a história com a sorte igual, nem podem fazer o mesmo por diferentes razões. É uma lição. Oferece-nos pistas daquilo que a Igreja de Jesus - as Igrejas cristãs, todas elas – deve ou não deve fazer diante de situações de atropelo dos direitos humanos.
Esta experiência, o conhecimento e a acolhida, em 1976, de alguns argentinos em nossas próprias casas e comunidades, permitiram-nos entender certas reticências de alguns setores com esta nomeação papal, embora, com os dados que temos, fidedignos, não as compartilhamos, por serem infundadas. Contudo, para a dúvida que cabe, será necessário continuar curando as feridas e trabalhando o encontro, ajudados por outros testemunhos eclesiais.
Voltando à nossa entrevista com Bergoglio, o certo é que o encontro nos surpreendeu tanto, que rompeu os tantos esquemas pré-concebidos. Dizíamos: é impossível para alguém se fazer passar pelo que não é desta forma. Se alguém quer ficar bem, pode “seguir a corrente” do interlocutor, mas não ter este discurso espontâneo, aberto e livre, arriscado, sem barreiras de status e com o coração na mão.
Além disso, os gestos falam mais do que as palavras. E os gestos não eram apenas aqueles que, pontualmente, tinha conosco, já bastante surpreendentes. Eram os que mencionavam nossas amigas, há anos, sobre sua vida diária. E isso é insustentável se não há um fundo e um espírito que o alimente.
Relações assim, inclusive mais achegadas, pela proximidade que o cotidiano oferece, nós já tínhamos vivido na Espanha da Transição, com bispos espanhóis que eram verdadeiros companheiros de caminhada, cúmplices críveis da renovação da Igreja e amigos entranháveis, como Alberto Iniesta, para citar um nome. Contudo, nesse dia de janeiro de 2005, pudemos acreditar que a renovação da Igreja, em nível global, não tinha mais do que começado, pois se uma pessoa que era qualificada de “conservadora” tinha essa atitude e esse compromisso, era crível que o processo conciliar “estava em marcha”.
Na saída, recordamos, entre risos, uma entrevista de 2003, em Roma, com o cardeal Etchegaray, que nos recebeu inesperadamente em Santa Marta, também com a mediação de duas amigas (... mais mulheres). Aturou nosso “assalto” e nosso pobre francês, piorado pelos nervos. Escutou-nos carinhosamente falar do caminho para um novo concílio em processo conciliar, e nos também nos despediu com um abraço, pedindo-nos oração para ele. Na conversa, nos presenteou com algumas bolachinhas.
Estendendo pontes
Já pude tomar o café de Bergoglio, as bolachas de Etchegaray retirei apertadas nas mãos suadas de puro nervoso. Contudo, entre uma coisa e outra, após uma simpática e próxima acolhida, em 2003, também em Santa Marta, do arcebispo emérito, de Yokohama, Stephen Fumio Hamao (que tinha aprendido perfeitamente o espanhol com as Missionarias mercedárias de Bérriz), e de outros muitos encontros com religiosos e com algumas pessoas que trabalham na própria Cúria, nós nos demos conta de que iam sendo abertos caminhos na Igreja e que pontes iam se estendendo, inclusive, mais do que poderíamos suspeitar. Embora estas impressões e as apostas pessoais, próprias do que é irrenunciável – sopre o vento como soprar –, são difíceis de compartilhar com muita gente, que pensa que você é geneticamente otimista ou uma sonhadora.
Por meu intenso compromisso, há anos na coordenação da Iniciativa Proconcil, já me comuniquei, em diferentes ocasiões, com o cardeal Bergoglio – agora irmão e papa Francisco. Encanta-me, ademais, que não tenha “número” – trocamos cartas, escritos e algum livro. Tinha algumas estampas que ia me mandando, da Virgem Desatadora dos Nós alemã, de São José, de Santa Terezinha. Apesar de não ser muito de imagens, nem de santos, por minha formação, no dia 13 de março, em pleno Conclave, coloquei São José e Maria Desatadora de Nós em meu espaço caseiro de trabalho junto a um Cristo de Assis – presente de outra amiga comum – para ter a Sagrada Família completa – e pedi ajuda para que a Igreja fosse “luz e sal” e ponto de encontro neste mundo angustiado e dividido. Recorri a eles, diante deste ponto eclesial e social – sem esperanças de sobra, na verdade.
Cheguei a ver a fumaça branca na televisão de casa, mas para o meu pesar, nesse momento, tive que sair com meu marido e minha filha mais velha, tendo que aguentar a curiosidade. Havíamos permanecido entre sete e meia e oito horas em Getafe. A notícia, da boca do cardeal Touran, ouvi pelo carro, chegando à porta da casa de um sindicalista amigo, companheiro – com outros e outras – de quando trabalhamos numa fábrica de metal; um homem profundamente crente e honesto, animador durante muitos anos do movimento cristão educativo Junior, que a tantos meninos e meninas encaminhou e segue encaminhando, e que a Igreja espanhola atual não reconhece adequadamente – que pena! - como próprio. Um militante entusiasta, generoso e de diálogo, buscando sempre somar mais do que diminuir, e que sofreu a desestruturação da empresa na qual trabalhávamos e de tantas outras; carregando nas costas muitas decepções com a Igreja instituição. Todo um símbolo do momento.
Aguardei, sem sair do carro, para ouvir o nome do novo papa. As ruas de Getafe, de um município operário e emblemático da causa dos pobres, da Igreja no mundo operário, hoje fragilizada e questionada, fizeram eco, na obscuridade do início da noite de inverno, da minha surpresa e entusiasmo após o segundo nome – Mario – inclusive antes de ouvir o sobrenome. Minha filha mais velha – de passagem por Madri, há anos fora – se debatia entre o riso e a vergonha alheia, mas era difícil para eu me conter. Por sorte, a rua estava vazia. Minhas outras filhas me telefonaram de casa emocionadas. Elas nos “aguentam” no cotidiano e se deram conta – no mesmo momento – do que tinha acontecido.
Porém, só agora [escrevo], quando vão transcorrendo as semanas, quando continuamos vendo coerência e decisão, quando as pontes seguem crescendo e as vontades convergindo, quando a Misericórdia vai encontrando corações dispostos “in crescente”, agora, quando sou mais consciente do que pode significar esta nova era eclesial para a Igreja e para o mundo, caso continuemos remando a partir da diversidade, mas todos em um e de coração aberto, nesta barca que há de impulsionar o sopro do Espírito em nós. Talvez por essa intuição – não sei – senti, há três dias, que tinha que fazer este relato do que tinha visto e ouvido. Ainda não sei por qual via poderá discorrer, por sua extensão.
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Relato de um encontro com Bergoglio. "Todos nós necessitamos de misericórdia" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU