Por: Jonas | 27 Março 2013
Não ficar num entusiasmo ingênuo, ser crítico, com serenidade e desejo de colaboração. Segundo José Ignacio González Faus: “Para toda grande esperança, o perigo de que “a queda seja mais dura” é intrínseco. Os gestos iniciais do papa Francisco foram muito alentadores, mas é preciso considerar duas coisas: foram apenas formais, embora tenham tido uma simbologia muito adequada. E, caso sejam vistos serenamente, veremos que foram muito elementares". O artigo é publicado no seu blog Miradas Cristianas, 25-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Sou da era do papel, e nunca imaginei que isto das redes pudesse ter tanto poder de difusão. Isto me anima, agora, a escrever a todos os que comentaram meu texto anterior sobre o papa Francisco. Pessoalmente, respondi apenas três pessoas (um irmão jesuíta e dois leigos latino-americanos) que se mostraram mais apreensivos ou críticos. Aos entusiasmados, não gostaria agora de ser um desmancha-prazeres: simplesmente quero recordar que as festas também necessitam de água para não se esgotar.
1. Para toda grande esperança, o perigo de que “a queda seja mais dura” é intrínseco. Atenção, então. Os gestos iniciais do papa Francisco foram muito alentadores, mas é preciso considerar duas coisas: foram apenas formais, embora tenham tido uma simbologia muito adequada. E, caso sejam vistos serenamente, veremos que foram muito elementares. Comentava, ontem, com uma amiga que é como se nós nos entusiasmássemos porque uma pessoa de quarenta anos, que nunca falava, prontamente diz claramente papai e mamãe; será esperançoso, mas isso é tão comum! (Isso é o melhor sinal sobre até que ponto todos nós estávamos habituados a coisas absurdas).
2. Com o tempo será preciso ir passando das formas ao fundo. E aí, o irmão Francisco pode tropeçar, no mínimo, com quatro grandes dificuldades:
a) A Cúria Romana resistirá até o máximo e tem enorme poder. Não sei se a Cúria é um ninho de víboras, como alguns insinuam. Não acredito que sejam pessoas más, mas, sim, vítimas de uma estrutura que fomenta a intriga e o carreirismo, como o cardeal Martini insinuou. Sobre o poder da Cúria, ontem, outro amigo comentava que os papas estão nela como o cidadão vulgar em seus conhecimentos de informática. De repente, se vê diante de um computador enorme que não conhece. Se toda a equipe de informática (a Cúria) decide não colaborar (“não sei”, “isto não é de minha competência”...), o pobre cidadão ficará desesperado, impotentemente, como um novo Luciani, assim como, em algum momento, já nos aconteceu com a questão dos computadores.
b) É preciso considerar que a crise da Igreja não se enraíza apenas nos estamentos institucionais (os chamados “hierárquicos”), mas também numa infinidade de movimentos da base eclesial, de corte fundamentalista, que parecem servir a Deus como eles próprios gostam e não como Deus deseja ser servido.
c) É necessário ter presente que todos os poderes da terra, por mais que assistam a consagração do bispo de Roma, não desejam um mundo mais fraterno, mas a proteção do que eles consideram os seus “interesses vitais”; e que, em defesa deles, sempre acabam se unindo a Herodes e Pilatos (ou “Merkeles” e “Putins” ou coloquem os nomes que vocês quiserem).
E, finalmente,
d) diz-se, embora eu não a conheça, que Francisco é conservador em sua teologia. Será necessário esperar para ver se isso significa alguma coisa, mas pode ser bom levar isto em conta. Pessoalmente, não me satisfez, em suas primeiras palavras, a repetição em falar “do diabo”. Não porque eu negue sua existência – que também não sei tanto como alguns progressistas seguros –, mas, sim, porque tenho problemas sobre ela e sobre o significado correto da linguagem bíblica quando fala do Inimigo (Satanás) ou do Separador (Diabo). A existência de um ser que, por sua vez, junte a perfeição ontológica do pessoal e a consistência absoluta do mal, que é a própria negação do ser, não me parece fácil de entender. Prefiro, por isso, a linguagem neotestamentária do “mistério de iniquidade” (2 Ts 2,7) que coloca em relevo essa verdade do mal como mistério que transcende nossos níveis de existência. Para mim, falar assim teria sido mais razoável, pois, em minha opinião, o ensinamento bíblico sobre o diabo não é “que existe”, mas que, se existe, está vencido (o que já não é uma verdade meramente de informação, mas “por causa de nossa salvação”, como ensina o Vaticano II ao falar da verdade da Bíblia).
Contudo, isto é só um exemplo. O importante é tomar consciência de que as questões de fundo são muito sérias e não se regulam com gestos, por mais imprescindíveis e bonitos que estes sejam. Isto nos exige, por sua vez, serenidade, esperança e colaboração, mas nenhum entusiasmo cego. Agora que se aproxima a semana santa, pode ser oportuno evocar que nós, as multidões humanas, somos assim: um dia gritamos “hosana e bendito o que vem em Nome do Senhor”, para cinco dias depois gritar “crucifica-o”. Jesus nunca foi um otimista, embora trouxesse o mais belo dos anúncios (a paternidade de Deus e o reinado da fraternidade). Entretanto, mesmo sabendo que somos maus, Jesus se atrevia a esperar que imitemos a bondade do Pai celestial. Nem os times de futebol vencem simplesmente gritando: “nós vamos ganhar esta partida”, mas, sim, encontrando uma forma de abrir a retranca rival. Pois bem, parodiando Jesus: “aqui existe muito mais do que um jogo”.
3. Junto às dificuldades enumeradas, é preciso acrescentar a oposição de um setor da opinião midiática que tentará resolver pontos obscuros. Após a eleição de Bergoglio, enquanto pude constatar que os meios de comunicação já sabiam de tudo, pareceu-me que o mais evangélico, de nossa parte, era não querer ocultar nada (porque isso acaba trazendo mais dano), mas pôr em prática as sábias palavras de Paulo VI, que Julín (um padre amigo dominicano) me recorda: “aceitamos com humildade e reflexão crítica e admitimos o que se assinala com justiça. Roma não necessita se colocar na defensiva, fechando os ouvidos para observações que procedem de fontes respeitadas, e menos ainda quando estas fontes são amigas e irmãs”.
Neste contexto, as declarações de Orlando Yorio, irmão do jesuíta torturado e expulso, parecem-me muito dignas de respeito. Pedem apenas para se conhecer a verdade no todo. E para isso tem pleno direito, pois os familiares de uma vítima guardam algum dever em relação a ela, o que significa algo diferente do dever de perdoar. (Jalics, ao contrário, continua vivo e plenamente reconciliado e, segundo li, mudou algo que explicava no capítulo V de seu livro – “Exercícios de contemplação” – , embora sem citar nenhum nome).
Não precisamos encobrir nada porque sabemos bem que a Igreja se apoia sobre uma “rocha”, mas uma rocha lascada: que covardemente negou a Cristo, mas a quem Jesus conseguiu mudar. Pedro foi muito querido na Igreja primitiva, que conhecia sua fragilidade. Se houvesse algum passado para lamentar, então, estaríamos colocando em prática o que o próprio Francisco nos pediu antes de dar sua benção: que nós o perdoássemos. E caberia imaginar uma nova cena evangélica, onde os atuais Vigários de Cristo, que são os pobres da terra, perguntam ao sucessor de Pedro “você nos ama mais que estes?” (mais que todos nós). Por três vezes, e para poder lhe dizer depois: “guia-nos”. E talvez acrescentando uma nova pergunta: “você nos ama mais que do que a estes?” E “nestes” segundos estão incluídos todos os poderes econômicos da terra (banqueiros, executivos de multinacionais, milionários, narcotraficantes, magnatas do petróleo...) e outros que talvez assistam a missa e dão uma pequena esmola para a Igreja, mas que vão aprendendo o que significa uma Igreja dos pobres e um papa para os pobres, como disse nitidamente o bispo Bossuet em seu impressionante sermão “sobre a eminente dignidade dos pobres na Igreja”.
Em resumo, outra vez: serenidade esperançada e colaboração. Uma colaboração que evite tornar o entusiasmo atual um galinheiro de reivindicações sem solidariedade, em que cada um segue só o seu rumo, o que é uma das razões pelas quais fracassam tantas reformas possíveis.
Vocês as verão. Eu, certamente, já nem tanto.
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Despertar do sonho papal. Artigo de José Ignacio González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU