26 Março 2013
Quem teve entre os "grandes mestres" simples e pobres mulheres das quais se pôs à escuta, quem lavou os pés sujos das crianças de rua ou dos toxicodependentes, quem ousou proteger prostitutas e presos vendo o Senhor nos seus olhos não tem medo dos insultos, das críticas ou das calúnias.
A reflexão é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 24-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O encontro no palácio papal de Castel Gandolfo entre o bispo de Roma, Francisco, e aquele que o precedeu nesse ministério constitui para muitos uma grande tentação. Fazer comparações ou imaginar o conteúdo do seu diálogo. Certamente, a situação é inédita, mas há décadas, na Igreja Católica, o bispo emérito de uma diocese encontra o seu sucessor, e as mudanças de estilo, as ênfases diferentes no ensinamento, nas atitudes e as óticas diferentes existem estão diante dos olhos de todos, assim como as diversidades que caracterizam cada pessoa, sempre únicas e irrepetível no rosto e na palavra.
Francisco e Bento XVI se encontraram e se abraçaram para afirmar e manifestar o que é verdadeiramente essencial: a comunhão e o amor pela própria Igreja, a fé no único Senhor, Jesus Cristo. Nenhuma passagem de bastão, na verdade, porque o mandato do Papa Francisco, para quem tem fé, vem do Senhor e, portanto, através de uma designação feita pelo Colégio Cardinalício da Igreja de Roma.
Na Igreja não há sucessão como nas monarquias mundanas: quem põe um cristão como bispo para governar uma Igreja não é aquele que governou antes, mas sim o Espírito Santo. Entre quem foi papa, o bispo emérito de Roma, Ratzinger, e o Papa Francisco não há nenhuma dívida, senão a do amor recíproco que existe na Igreja entre irmãs e irmãos.
Ambiguidades demais na linguagem destes dias, nostalgia demais e agora também contraposições. Infelizmente também – como já vimos por ocasião dos primeiros passos de João Paulo II e depois dos de Bento XVI – bajulações demais pelo novo papa e críticas para o anterior, que, contudo, sempre havia sido louvado pelas mesmas pessoas com uma lisonja e às vezes com um "sequestro" que tendia fazer do papa uma bandeira da própria parte: atitudes que revelam como, especialmente no nosso país, a reciclagem é um vício antigo e esquálido. A continuidade na fé e no serviço à comunhão são absolutamente necessários para um papa, mas depois deixam que haja diferença na modalidade de implementação, também para mostrar que a comunhão católica é sempre plural e nunca significa uniformidade.
Nos últimos meses, Bento XVI denunciara aqueles que não admitem diversidade na Igreja: agora vemos em ação essa diferença também na forma assumida pelo ministério petrino. João Paulo II, talvez, já não havia afirmado na encíclica Ut unum sint, de 1995, que a forma do exercício do ministério petrino pode e também deve mudar em vista da unidade dos cristãos?
É verdade, a forma com a qual o Papa Francisco desempenha o seu ministério nesse início de papado é diferente nas palavras com as quais ele se dirige à Igreja e às outras Igrejas, é diferente do modo no qual ele celebra a única liturgia da Igreja romana, é diferente na direção das suas preocupações e das suas solicitudes... Mas isso porque a Igreja é diferente e está espalhada sobre toda a Terra, habita em culturas diferentes, sente bater o coração do povo de Deus com timbres diferentes.
Eis, então, em Francisco papa, assim como antes em Bento XVI, o mesmo serviço prestado ao Evangelho, mas prestado com linguagens e expressões diferentes, como aconteceu com os quatro evangelistas que anunciaram a única boa notícia dirigindo-se a Igrejas diferentes com acentos e tonalidades diferentes: um único Cristo, mas quatro retratos diferentes, um único destinatário do evangelho – a humanidade – mas Lucas sente em Jesus uma opção preferencial pelos pobres e uma ênfase particular na misericórdia, enquanto Mateus capta mais fortemente o horizonte do ensinamento e do cumprimento da Lei-Torah, Marcos sublinha toda a densidade humaníssima do Filho do Homem, e João prefere ler toda a história de Jesus como história e glória do Amor...
Se os quatro evangelistas são tão diferentes, não poderiam sê-lo também os bispos e, portanto, também o de Roma, sucessor não de um evangelista, mas do apóstolo Pedro? Uma só é a fé, um só é batismo é, um só é o Senhor, lembra São Paulo que, depois, fala várias vezes de diversidade de dons, de serviços, de ações: assim é na Igreja.
O Papa Francisco é outro e diferente de Bento XVI, e aqueles que, como eu, amaram Bento XVI – que em diversas ocasiões também me manifestou a sua atenção e o seu afeto, até me chamar duas vezes como especialista ao Sínodo dos Bispos – certamente agora estão contentes com o Papa Francisco, com o seu impulso pelo ecumenismo e pelo diálogo entre as culturas, com a sua postura de homem entre os homens, com a sua opção preferencial pelos pobres e os pecadores, à imagem de Jesus que os visitava, ia buscá-los e os considerava como os primeiros clientes de direito da boa notícia. Assim como houve alguns gestos de Bento XVI aos quais obedecemos "mesmo à custa de fadiga de sofrimento e de não plena compreensão do que nos é pedido com autoridade e que não contradiz o Evangelho", assim escrevi e assim faremos também com o Papa Francisco.
Alguns já o acusam de "heresia bondosa", de "pauperismo" de ternura demais... Mas o Papa Francisco sabe disso e não precisa que ninguém o lembre disso, porque a sua longa vida foi um testemunho da verdade do Evangelho, com um alto preço: "Ai de vós, quando todos disserem bem de vós", disse Jesus. O Papa Francisco sabe como é amargo sentir um coro unânime de louvores: se isso acontece, é porque há adulação, servilismo e, acima de tudo, vontade de sequestrar para o seu lado e pelos próprios interesses a autoridade, neste caso o próprio papa.
Talvez seja por isso que Francisco continua repetindo a todos, aos cardeais, assim como aos garis: "Rezem por mim". Quem também teve entre os "grandes mestres" simples e pobres mulheres as quais se pôs à escuta, quem lavou os pés sujos das crianças de rua ou dos toxicodependentes, quem ousou proteger prostitutas e presos vendo o Senhor nos seus olhos não tem medo dos insultos, das críticas ou das calúnias...
Ao metropolita ortodoxo Hilarion que lhe dizia "Os seus primeiros passos chamaram a atenção pela humildade", o Papa Francisco respondeu: "Não, eu não sou humilde: rezem para que eu me torne".
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A diversidade é o bem da Igreja. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU