11 Março 2013
Carnes de animais mortos nestes locais podem transmitir doenças graves, como cisticercose, que ataca o cérebro, e toxoplasmose, que provoca problemas no fígado, pulmão e coração.
Os repórteres do Fantástico percorreram abatedouros pelo Brasil e comprovaram total falta de higiene e extrema crueldade no abate do gado em vários pontos do país.
A reportagem é publicada pelo Fantástico e reproduzida por amazonia.org.br, 11-03-2013.
Estimativas obtidas pelo Fantástico indicam que 30% da carne brasileira é produzida sem fiscalização. A reportagem de Fabio Castro e Monica Marques mostra uma ameaça à saúde pública, que merece a atenção das autoridades.
Animais mortos com marretas e até com uma espingarda. Restos de carnes espalhados entre cachorros e porcos. Funcionários fumando, sem camisas e cortando o gado com um machado.
Assim funcionam os abatedouros que fornecem 30% da carne que vai para mesa do brasileiro, segundo estimativas dos produtores.
O Brasil tem um rebanho de 200 milhões de cabeças de gado. É o maior exportador de carne bovina do mundo. Essas cenas foram flagradas, com câmeras escondidas, em abatedouros municipais e estaduais legalizados.
São parte de um trabalho realizado pela ONG Amigos da Terra, uma organização mundial que denuncia problemas ambientais.
“Em estados que têm 50% do rebanho nacional, a gente estima que seja aproximadamente dois terços dos empreendimentos operando irregularmente e gerando um terço da carne consumida dentro do Brasil”, declara Roberto Smeraldi, diretor da Amigos da Terra.
Duzentos e oitenta abatedouros foram visitados em oito estados brasileiros. Nesses lugares, a higiene é o problema mais grave.
Em Jeriquara, no interior de São Paulo, uma série de irregularidades sanitárias. Os funcionários cortam a carcaça sem usar luvas ou uniformes.
De acordo com a lei, todos os funcionários devem usar luvas, máscaras e botas.
“A razão é saúde pública. O objetivo é garantir que o produto tenha a menor oportunidade de contaminações ou qualquer perigo à saúde das pessoas”, diz Enio Marques, secretário da Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura O abatedouro de Jeriquara é municipal. E segundo o prefeito, não poderia estar sendo usado para abates.
“Teve uma suspensão. Foi parado, as atividades aqui. E não sei por que motivo ela está sendo retornada. Eu vou determinar imediatamente a suspensão do uso deste recinto”, conta Sebastião Henrique Dalpiccolo, prefeito de Jeriquara.
Também no interior de São Paulo, em Parapuã, outro problema comum nos abatedouros do país: animais são cortados no chão, onde a carne acaba sendo contaminada.
“Nós baixamos um decreto municipal interditando o matadouro por 15 dias para que a gente possa buscar adequar ele às normas da Vigilância Sanitária”, diz Samir Pernomian, prefeito de Parapuã.
No chão do matadouro há insetos mortos, poças de sangue secas e fezes de ratos.
Um ex-funcionário do abatedouro mostrou ao Fantástico as irregularidades.
“Sem nada, do jeito que está. Roupa normal, não tem uma luva, não tem nada. Nada, nada. Máscara, nada, nada. Ergue no balanção aqui. Com essa mão suja que você já veio aqui e pegou aqui tudo enferrujado, você vai lá e encosta no animal. Rato tinha demais. Rato aí, Ave Maria, tem muito. Só rato grande”, declara o motorista Alexandro Roberto Santos.
Alguns abatedouros atraem animais ainda maiores. Em Braúna, cachorros e gatos comem os restos dos abates.
Antes de ser eleito prefeito de Braúna, Vander Bosco era o veterinário responsável pelo abate.
“Aqui precisa mudar quase toda a estrutura, ter a higienização melhor. É deficitário. A prefeitura não tem capacidade de melhorar. Tem que ter incentivo do governo”, declara Vander Bosco, prefeito de Braúna e veterinário.
Em Lavras do Sul, no Rio Grande do Sul, porcos são criados no pátio do local onde o gado é morto.
Fantástico: O que vocês jogam aqui pra eles?
Funcionário: Aquelas buchadas ali, vêm tudo pra cá.
Fantástico: E eles comem tudo?
Funcionário: Comem tudo.
Fantástico: E não pode ter contaminação?
Funcionário: Ah, pode.
Também em Mato Grosso do Sul, outro estado grande produtor, encontramos abatedouros em mau estado. Além de restos de animais pelo chão, as paredes não têm acabamento, faltam portas e a fiação elétrica fica solta.
Procuradas pelo Fantástico, as secretarias de agricultura de Eldorado e Maracaju disseram que vão fechar esses locais.
O Fantástico esteve em uma rua da cidade de Itajá, em Goiás, quase na divisa com Mato Grosso do Sul. E em um prédio funciona um abatedouro. Já chegou a ser fechado, mas que voltou a funcionar através de uma liminar da Justiça. Os animais são mortos com marretas e cortados no chão. Ninguém usa luvas ou máscaras.
Nossa equipe acompanhou a distribuição da carne, logo após o abate. O produto sai da indústria sem passar pelo resfriamento, que é obrigatório. Fica numa caixa sem refrigeração e é carregada numa espécie de tambor plástico, sem tampa. O veterinário contratado pela prefeitura para coordenar o processo de abate diz que a situação é provisória.
“Deu um problema no nosso motor do resfriador da câmara fria”, diz o veterinário.
Outra prática comum nos matadouros pelo Brasil é o abate cruel. De novo em Jeriquara, flagramos cenas de barbárie. Um funcionário conduz o boi para a entrada do abatedouro. O animal para, se deita, e é chutado pelo homem.
Como o boi não segue para o local de abate, o homem usa uma outra técnica. Ele morde o rabo.
Pouco depois, outro homem se aproxima com uma espingarda e abate o boi com um tiro. Um procedimento obviamente irregular.
O homem que usou a espingarda é Daniel Silva, dono de um açougue em Jeriquara.
Fantástico: Como vocês matam o boi?
Daniel: Na marreta.
Fantástico: E o que vocês usam pra cortar?
Daniel: Corta no machado.
Fantástico: O senhor consegue reconhecer se uma carne está com alguma doença?
Daniel: Não. Não consigo.
Fantástico: Então, o senhor pode estar comercializando uma carne com doença?
Daniel: Não, não sei.
Fantástico: O abatedouro nunca foi fiscalizado nesses 15 anos?
Daniel: Não, nunca foi. Nunca teve veterinário.
É obrigatória a presença de um veterinário durante todo o processo de abate dos animais.
Na cidade de Rolante, na região metropolitana de Porto Alegre, o veterinário responsável pela fiscalização admite que não vai ao matadouro.
“Eu treinei o pessoal lá dentro. Eles fazem o meu serviço lá dentro. Deu problema, eles me ligam: ‘Ó, fiscal, vem aí que nós tamo com problema aí’”, diz o veterinário.. E, discretamente, o veterinário confessa que é conivente com abates sem nota fiscal.
“Matamos 50 na semana. Se matar cinco sem nota, quem é que vai perceber? Então, fecha o olho um pouquinho”.
Procurado pelo Fantástico, o veterinário negou tudo: “O abate não pode ser feito sem eu estar aqui”.
No estado de São Paulo, a mesma coisa.
Fantástico: Tem veterinário?
Alexandro: Tem veterinário. Só que deu o horário, sete e meia, oito horas, ele vai embora. Ele deixava o carimbo lá em cima pra carimbar a carne, dizendo que foi ele que carimbou, sendo que era eu mesmo que ia lá e carimbava. Pra quê? Se a polícia parasse eu na pista, tinha lá o carimbo.
Por telefone, o Fantástico procurou o veterinário do matadouro de Parapuã, Marcelo Moretti. Ele não quis gravar entrevista.
Mesmo os açougueiros que usam os abatedouros municipais não são capacitados para identificar problemas na carne.
Fantástico: Você sabe olhar uma carne e verificar se ela tem alguma doença?
João Paulo Pereira: Não saberia te falar direitinho, não.
Fantástico: Então você não acha que pode estar vendendo uma carne com essas doenças?
João Paulo Pereira: Quem sabe… vai saber… E essas doenças podem ser graves. A principal delas é a cisticercose, que ataca o cérebro, provoca convulsões e distúrbio de comportamento.
Teníase infecta os intestinos. Causa dores, náuseas e perda de peso.
Listeriose causa febre, dores de cabeça e pode provocar abortos em grávidas.
Toxoplasmose provoca problemas no fígado, pulmão e coração.
Tuberculose, que causa problemas nos pulmões.
“De todas as tuberculoses humanas, 10% são por micro-bactéria Bovis, que é uma bactéria do boi. Então é fundamental que tenha realmente muita vigilância e cuidado com esse tipo de alimento”, alerta Leandro Teles, médico do Hospital das Clínicas, da USP.
A venda da carne para a população precisa respeitar normas de armazenamento. O consumidor deve procurar saber a origem da carne. Se for processada por frigoríficos fiscalizados, ela é segura.
No frigorífico, o gado não vai direto para o abate. Ele fica nos currais entre 12 e 24 horas descansando. O animal não se alimenta mais, apenas ingere água. Segundo os veterinários, esse processo faz parte de um trabalho de controle de qualidade da carne.
O correto é que o animal passe por exames. Depois do abate, a carcaça não pode ter nenhum contato com o chão. Os funcionários têm 40 minutos para retirar as vísceras e evitar que a carne seja contaminada por bactérias. Seis funcionários fazem a inspeção.
“Todas as carcaças que saem do sistema de inspeção têm um carimbinho do serviço federal, municipal ou estadual”, explica Enio Marques, secretário da Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura.
“É importante que a dona de casa toque a carne, perceba se não tem alguma coisa pegajosa, se a carne não está viscosa. É importante apertar para ver se não está dura demais, ou mole demais. Se você está num local onde você vai comer fora ou não consegue garantir a procedência da carne, é fundamental que você não consuma carne mal passada”, alerta o médico Leandro Teles.
“Quando tiver dúvida da procedência de um produto, entrar em contato com a vigilância sanitária, para que haja uma possibilidade de ação preventiva, eliminando gradativamente os focos de produção clandestina”, declara Enio Marques, secretário da Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura.
E é preciso que a fiscalização por parte dos municípios e estados seja mais rigorosa, inclusive nos abatedouros legalizados.
“Precisa haver um esforço coletivo das autoridades públicas, porque nós consideramos como crime. Um crime contra a saúde pública”, diz Péricles Salazar, presidente da Abrafrigo.
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Fantástico mostra falta de higiene em abatedouros e abate cruel dos gados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU