06 Março 2013
Norberto Armando Habegger, Monica Susana Pinus de Binstock e Horacio Campiglia. Estes três militantes montoneros, da esquerda argentina que entraram no Brasil com nomes falsos entre 1978 e 1980 mostram como a fatura das ações desenvolvidas no regime militar ainda pode ser cobrada e implodir, de maneira indireta, o espírito da lei de anistia de 1979.
A reportagem é de César Felício e publicada pelo jornal Valor, 07-03-2013.
No julgamento que se iniciou terça-feira em Buenos Aires, envolvendo 25 acusados pelo desaparecimento de 106 pessoas, consta este indício de colaboração brasileira com ações integradas repressivas. Os argentinos foram sequestrados no Brasil, sendo os dois últimos em pleno Aeroporto Internacional do Galeão, e vistos pela última vez na Argentina, poucos dias depois.
O processo na Argentina é o primeiro na América Latina que trata de homicídios que teriam acontecido no contexto da chamada "Operação Condor". A operação seria uma sintonia fina entre as ditaduras do Cone Sul, para a repressão conjunta contra o que se denominava à época de "subversão".
A "Operação Condor" propriamente dita teve vida curta. Esta espécie de Interpol da repressão foi idealizada em 1975 pelo general Manuel Contreras, comandante dos serviços de inteligência no início do regime Pinochet, no Chile, e teria contado com a adesão entusiasmada do então comandante do Exército na Argentina, Jorge Videla. A Argentina ainda era uma democracia formal, comandada pela presidente Isabelita Perón.
Havia dois representantes brasileiros na reunião de Santiago em 25 de novembro daquele ano que teria formatado o esquema, mas o governo do então presidente Ernesto Geisel manteve o país distante da trama. O Brasil só teria se comprometido a uma "troca de informações" e não assinou o compromisso de ações operacionais. Foi o único dos países presentes a agir assim.
A iniciativa multinacional de terrorismo de Estado foi perdendo organicidade após a audácia da ditadura chilena em assassinar o ex-chanceler Orlando Letelier, exilado em Washington. O caso colocou os Estados Unidos frontalmente contra as ditaduras do Cone Sul e o condor passou a voar baixo, atingindo vítimas de perfil mais discreto, em operações cruzadas de segurança. Destas, o Brasil participou.
"Na minha época houve uma tentativa de fazer uma espécie de união do Brasil com Uruguai, Paraguai, Argentina e Bolívia para o combate das ações subversivas, mas eu fui contra, seja porque essas ações já eram muito reduzidas entre nós, seja porque essa união não me merecia muita confiança e envolvia relações que considerei indesejáveis", comentou Geisel, inexplicavelmente omitindo o Chile, em seu depoimento para os pesquisadores Maria Celina D'Araújo e Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, publicado em 1997.
"Os militares brasileiros se achavam superiores, viam os colegas dos países vizinhos com certo desprezo, e questionavam os resultados e a estratégia do combate aos oposicionistas em outros países, sobretudo Argentina. Jamais aceitariam ficar subordinados a outros governos. Não há um único documento mostrando adesão brasileira à operação Condor", comentou o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para em seguida ponderar: "Isto não quer dizer que não havia integração de ações repressivas, com a participação brasileira. Elas foram intensas e estão documentadas antes e depois de 1975, mas não com o caráter centralizado que a Operação Condor pressupõe".
Vincular o Brasil à Operação Condor, ou a qualquer ação integrada que se assemelhe, é estratégico para diversos setores envolvidos na temática de direitos humanos. A lei brasileira de anistia trava punições dos desmandos acontecidos até 1979, mas a história muda de aspecto quando se trata de possíveis crimes cometidos no Brasil envolvendo cidadãos estrangeiros, ou tendo algozes brasileiros no exterior.
O tema ganha ainda mais gravidade se, como no caso de Campiglia e Susana, o delito aconteceu após a promulgação da lei. Precisamente no dia 12 de março de 1980.
"Este julgamento é um marco que poderá ter repercussão no Brasil e no Paraguai. O que se pretende fazer em termos de desvendar o que aconteceu ainda é tímido no Brasil, e no Paraguai o Ministério Público ignorou três toneladas de documentos", afirmou o advogado paraguaio Martín Almada, referindo-se à Comissão da Verdade criada por Dilma há cerca de um ano. Almada não está exagerando: os ativistas de direitos humanos no Paraguai tiveram acesso a 590 mil páginas produzidas pelos serviços de inteligência do país no regime de Stroessner.
Almada será testemunha no julgamento argentino e deve viajar a Buenos Aires para depor nos próximos dias. Ele é observador privilegiado da ação repressiva brasileira no exterior. "Fiquei preso em Assunção entre 1974 e 1977 e fui pessoalmente torturado por interrogadores chilenos, argentinos e brasileiros", afirmou. Os brasileiros, segundo recorda Almada, teriam usado choques elétricos interessados em informações sobre o educador Paulo Freire.
Exagerar a dimensão das consequências que os regimes militares do continente produziram é tentação recorrente. Em entrevista na saída do tribunal, a jornalista Stella Calloni, uma das impulsionadoras do processo, chegou a afirmar que a repressão na América Latina teria produzido "mais de um milhão de vítimas".
É um radicalismo em parte explicável por uma tentativa de se legitimar a ação, por vezes violenta, de algumas vítimas dos crimes de Estado daquele tempo. A falta de transparência em relação ao tema, marcante em países que patrocinaram anistias, ajuda para que se carregue tanto na tinta.
Há sete brasileiros desaparecidos na Argentina, cinco no Chile e um na Bolívia e existem relatos de outros cinco argentinos que teriam sumido no Brasil. Sem a barreira da lei da anistia, da coisa julgada e da prescrição de crimes, é possível que novidades sobre o regime militar brasileiro surjam de fora para dentro.
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Os convidados de pedra, na Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU