16 Fevereiro 2013
Em A Sacralidade da Pessoa: Nova Genealogia dos Direitos Humanos, Hans Joas revê os valores de um tema delicado.
O artigo é de Rodrigo Petrônio, escritor, professor da FAAP e da Casa do Saber, e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 07-02-2013.
Diz-se que o pensador utilitarista britânico Jeremy Bentham, reformador do sistema penitenciário início do século 19, ao ser indagado sobre os direitos humanos, tê-los-ia definido como uma “bobagem sobre pernas de pau”. É uma boa piada. Mas sequer toca de longe a complexidade do problema. Se quisermos enumerar duas ou três questões nucleares no início do século XXI, certamente teremos que reservar um lugar de destaque para o dilema axiológico em que vivemos, ou seja, a controvérsia entre universalidade e relatividade dos valores. Esse dilema tem relação direta com as definições de ser humano.
A obra A Sacralidade da Pessoa: Nova Genealogia dos Direitos Humanos (Unesp), de Hans Joas, é uma das mais profundas, consequentes e substanciosas contribuições a esse debate. Diretor do Centro Max Weber da Universidade de Erfurt e professor da Universidade de Chicago, em linhas gerais Joas propõe dirimir alguns equívocos sobre a formação dos direitos humanos e fornecer novos caminhos para compreender o estatuto universal de validade dos valores. Ou seja, pretende realizar uma tarefa de Atlas.
Para tanto, segue alguns passos. Primeiro, reaproxima a gênese dos valores e a sua validade formal, distanciadas pelas ciências humanas. Tenta assim transcender a dicotomia entre justificação abstrata, dada pela Filosofia, e relativismo situacional, fornecido pelas ciências históricas. Trata-se de um conflito teórico insolúvel entre o formalismo transcendental de Kant e o voluntarismo de Nietzsche. Tal conflito, ao invés de ser superado, foi reatualizado no século 20, dividindo-se entre a pragmática transcendental de Habermas e a arqueologia do poder de Foucault.
Joas opta pelo caminho do meio. Consegue isso mediante uma abordagem sócio-histórica da dinâmica dos valores que ele denomina, em contraponto a Nietzsche, de “gênese afirmativa”. Esse conceito nuclear é diretamente inspirado no “historismo existencial” do teólogo protestante Ernst Troeltsch, cujas ideias analisadas em um longo e minucioso capítulo.
O ponto central de sua argumentação é uma definição da modernidade como o projeto inconcluso de sacralização da pessoa. Retificando Weber, Joas entende que os direitos humanos não surgem de um mero “carisma da razão”. Não é devido a processos de racionalização da vida que agimos bem ou mal, mas por crenças em realidades transcendentes, sejam elas fornecidas pelas religiões tradicionais ou por outros sistemas seculares de sentido, incluindo a ciência. Conseguimos efetuar distinções morais não por meio de juízos, mas quando somos capazes de uma visão dialética entre sagrado e profano, tal como definidos por Émile Durkheim.
A despeito da sabida ênfase de Durkheim sobre o coletivo, Joas se vale de sua definição da modernidade como uma “sacralização do indivíduo”. Porém, o binômio sagrado/profano não tem correspondência direta com a dualidade de religioso/secular. Sagrado, etimologicamente, que dizer: separado. Algo da ordem secular, ou seja, foram da esfera religiosa, pode ser investido de um valor sagrado, à medida que for preservado pela comunidade. Em uma palavra: consagrado. Sagrado é tudo aquilo que, entendido como dom inalienável, consegue resistir à lógica instrumental das relações de troca. Não por acaso, Kant havia definido dignidade como um valor que não pode ser trocado. Portanto, não pode ser alienado. Esse bem humano salvaguardado dos demais bens cambiáveis constitui a pessoa.
Na questão da violência, Joas se aproxima das teses de um oportuno estudo de Lynn Hunt, publicado em 2009 no Brasil: A Invenção dos Direitos Humanos (Companhia das Letras). Tanto o fim da escravidão quanto o paulatino declínio da legitimidade da violência em geral seriam frutos de uma “descentralização moral” de amplo alcance. Por meio dela, os valores genéticos (de cada povo) começaram a se desdobrar em valores que transcendem as culturas nas quais surgiram em direção a uma “sensibilidade humanitária”.
A partir do pragmatismo norte-americano, especialmente de William James, temos também uma penetrante análise da relação entre alma, imortalidade e pessoa. E uma meditação sobre a “lógica do dom”, tema clássico do antropólogo Marcel Mauss. A obra se encerra com uma análise do conceito de “generalização de valores”, de Talcott Parsons. Para Parsons, quanto mais complexas as sociedades, maior o grau de diferenciação produzido em seu interior. Quanto maior é a diferenciação, maior a necessidade de valores gerais que deem conta das contradições específicas internas ao sistema.
Em outras palavras, ao se tornarem sistemas complexos, as sociedades precisam criar valores cada vez mais abstratos que consigam mitigar os conflitos locais que surjam no seio de seus grupos. Para Joas, a categoria pessoa, sacralizada, ou seja, separada do âmbito geral das relações de troca, pode assumir o estatuto dessa universalidade genérica e, ao mesmo tempo, preservar as dinâmicas vitais particulares.
Porém, como diria Marx, todo universal é um particular universalizado. Joas insiste não haver uma reconversão necessária da função secular da pessoa à sua origem judaico-cristã. Mas para o leitor, fica difícil imaginar que um conceito tão fortemente enraizado na tradição religiosa ocidental possa ter estatuto de validade apodítico (universal) do ponto de vista da razão prática. E não é preciso ser um multiculturalista para sustentar essa dúvida. No mais, sua obra abre um, brilhante caminho para que o pensamento contemporâneo possa enfim superar o eterno impasse entre uma validação universal meramente formal dos valores e as suas contingências reais, presentes na vida de cada um de nós.
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Equívocos Humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU