05 Dezembro 2012
Não se deve atribuir à rede o que, ao invés, depende dos nossos limites relacionais e humanos, e que transferimos para a web exatamente como nos outros ambientes que frequentamos offline. Atribuir à web as culpas que são nossas é uma forma de desresponsabilização, de inaceitável posição de determinismo tecnológico.
A análise é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, ex-professor da Universidade Gregoriana. O artigo foi publicado no blog Cyberteologia, 02-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No dia 29 de novembro, o L'Osservatore Romano publicou um artigo de Christian Martini Grimaldi intitulado "Entre realidade e preconceito", dedicado às relações humanas dentro e fora da rede. É um artigo que parece desmentir a inteligência e a sabedoria do magistério pontifício sobre as comunicações de Bento XVI (exatamente às vésperas da sua presença no Twitter!) com a simples e inútil reproposição de alguns estereótipos.
O artigo começa a partir de uma frase minha que, na realidade (não se diz isso no artigo), parte de um artigo meu publicado no jornal Avvenire. Nessa frase, eu digo que, enquanto se mantiver o dualismo entre a vida offline e a vida online – considerando banalmente a primeira como a vida "verdadeira" e a segunda como a vida irremediavelmente "falsa" –, se multiplicarão as alienações. Enquanto se disser que, para viver relações reais é preciso fechar as relações em rede, se confirmará a esquizofrenia de uma geração que vive o ambiente digital como um ambiente que vive de banalidades efêmeras.
A mensagem que eu tentava comunicar é que a vida é uma só, seja ela vivida no ambiente físico, seja ela vivida no ambiente digital. A rede não é uma realidade paralela, mas é chamada a ser um espaço antropológico interconectado radicalmente com os outros espaços da nossa vida.
O que faz o autor do artigo do L'Osservatore Romano? Ele escreve que não, a rede, ao invés, é somente uma "bolha isenta de realismo físico", que em rede, portanto, acabamos ou acabaremos todos sendo "hikikomori", ou seja, aqueles japoneses que vivem isolados do resto do mundo, como demonstrado por uma série de fatos e síndromes que Grimaldi anota, concluindo que, no fim, substancialmente, é tudo culpa da rede.
Mas como ainda é possível raciocinar desse modo, eu me pergunto? O que faz o autor do artigo? Parte da patologia e chega acriticamente às suas conclusões. Em suma, é como se eu falasse dos criminosos (da vida" real ") e, então, deduzisse que o mundo é um lugar mau, onde todos os homens acabam sendo pessoas depravadas. O autor do artigo esquece toda a solidariedade que se expressa em rede, a open source, a troca virtuosa, a capacidade de compartilhamento positivo... Para ele, tudo isso não existe: todos acabaremos sendo hikikomori.
Duas considerações:
1. Eu acredito que não se deve atribuir à rede o que, ao invés, depende dos nossos limites relacionais e humanos, e que transferimos para a web exatamente como nos outros ambientes que frequentamos offline. Atribuir à web as culpas que são nossas é uma forma de desresponsabilização, de inaceitável posição de determinismo tecnológico. Essa exteriorização do negativo me parece sem sentido.
A web não nos "determina", ao contrário, e pode ser "habitada". Obviamente, porém, o habitar não pode prescindir da sabedoria de uma adaptação (nem sempre fácil) ao ambiente em que, pouco a pouco, se inscrevem os próprios valores. É uma espécie de domesticação do espaço. Artigos como o publicado pelo L'Osservatore Romano não ajudam a adquirir a consciência necessária para habitar aquele que os bispos italianos nas Orientações Pastorais da Conferência dos Bispos Italianos, n. 51, definiram como o "novo contexto existencial".
2. O artigo do L'Osservatore Romano vai diretamente em rota de colisão com o magistério pontifício sobre as comunicações. Como não lembrar as palavras de Bento XVI na sua Mensagem para o 45º Dia Mundial das Comunicações Sociais quando ele diz que as novas tecnologias da comunicação, se usadas sabiamente, "podem contribuir para satisfazer o desejo de sentido, de verdade e de unidade que continua sendo a aspiração mais profunda do ser humano"? Repito: "desejo de sentido e de verdade"! E lembremos que o título da mensagem era "Verdade, anúncio e autenticidade de vida na era digital". O articulista do L'Osservatore esqueceu disso?
Devemos lembrar, dentre outras coisas, que, com a abertura do Ano da Fé e o encerramento do Sínodo sobre a "nova evangelização", Bento XVI escolheu o seguinte tema para o 47º Dia Mundial das Comunicações Sociais: "Redes Sociais: portas verdade e de fé, novos espaços de evangelização". O papa, portanto, nos convida a refletir sobre as redes sociais, conectando a elas tanto a fé quanto a evangelização. E não é por acaso, talvez, que algumas interessantes intervenções dos padres sinodais tenham se detido justamente sobre a questão das novas linguagens e da cultura digital.
O artigo do L'Osservatore Romano, dizendo que todos acabaremos sendo "hikikomori", parece inverter em 180 graus essa perspectiva. O papa, de fato, define as redes sociais como "porta" e "espaço", isto é, um espaço de experiência. O seu convite, portanto, é de ampliar os nossos horizontes, ouvir os desejos profundos que o ser humano hoje já expressa muito bem também na rede, lugar onde se faz experiência do real. Estamos a anos-luz de distância de posições acríticas de dualismo digital como as expressas pelo artigo em questão.
Quando o papa pede para se "usar sabiamente" as tecnologias das comunicações, ele centraliza o ponto: é preciso sabedoria, vigilância, prudência cristã. É dessa sabedoria que se precisa, não de pessimismo capaz apenas de criar mais esquizofrenias. É uma tarefa que requer responsabilidade. Aquela responsabilidade que não pode ser obscurecida por, a meu ver, posições inaceitáveis de determinismo tecnológico, como as expressas por Grimaldi.
E, além disso, para que servem artigos desse tipo? Para fazer uma laudatio temporis acti, um elogio dos belos tempos que já se foram? A Igreja nunca se limitou a isso, porque sabe que é chamada a uma tarefa muito maior e comprometedora.
Veja também:
Rede e socialidade: entre realidade e preconceito
Antonio Spadaro. O Mistério da Igreja na era das mídias digitais. Cadernos Teologia Pública, no. 73
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Rede e socialidade: quando o L'Osservatore Romano diz que todos acabaremos ''hikikomori'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU