26 Novembro 2012
Uma das maiores cidades do leste da República Democrática do Congo, Goma, caiu nas mãos de uma poderosa força rebelde na terça-feira, numa guerra que pode redefinir a região, mas não provocou nenhuma ação política, por menor que fosse, da ONU, dos EUA e outras potências internacionais que apoiam vigorosamente governos vizinhos - especialmente o de Ruanda, predileto do Ocidente e beneficiário de suas ajudas -, que estão apoiando a violência, segundo especialistas das Nações Unidas. Os combates já desalojaram quase 1 milhão de pessoas e a batalha por Goma é o mais recente episódio de uma longa luta empreendida por rebeldes apoiados por Ruanda para assumir o controle de um pedaço da República Democrática do Congo - que os insurgentes estão vencendo. O combate também realçou a inépcia da missão da ONU, uma das maiores e mais caras do mundo, encarregada de manter a paz no país.
A reportagem é de Anjan Sundaram, publicada pela Foreign Policy e reproduzida pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-11-2012.
O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, convocou o presidente de Ruanda, Paul Kagame "para exigir que ele use sua influência sobre os rebeldes do M23 para acalmar a situação e impedir que continuem seus ataques", como explicou o comandante das forças de paz da ONU.
E o chanceler da França, Laurent Fabius, afirmou que a rebelião congolesa é apoiada por Ruanda e expressou "sérias preocupações". Mas a violência só se intensificou desde então. O Conselho de Segurança da ONU convocou uma sessão de emergência, mas sua condenação da violência, exigindo que os rebeldes detenham seu avanço sobre Goma e insistindo que potências estrangeiras parem de financiar o M23, foi simplesmente ignorada. O CS anunciou sanções contra o movimento, mas não mencionou Ruanda, a principal força por trás da rebelião. E mesmo com os combates se intensificando, a missão da ONU no Congo fez pronunciamentos sobre novos acessos a água potável para a população a leste do Congo, dando uma imagem surreal da guerra.
Profissionais. Os combatentes do M23, profissionais e bem equipados, talvez mais bem armados e organizados do que qualquer outra unidade rebelde no país na última década, deram uma mostra formidável de força no fim de semana anterior, chegando a poucos quilômetros de Goma.
Eles não só resistiram ao pesado bombardeio por parte de helicópteros de combate da ONU, mas simultaneamente conseguiram avançar e forçaram o recuo do Exército nacional congolês em duas outras frentes. Os militares do Congo e as forças de paz das Nações Unidas ficaram à distância, permitindo que os rebeldes capturassem grandes áreas de Goma sem nenhuma resistência. No fim, cerca de 3 mil militares congoleses, apoiados por centenas de soldados da força da ONU com poder aéreo, foram incapazes de conter os combatentes do M23, que não passavam de algumas centenas.
Essa capacidade militar sem precedentes dos rebeldes num país de milícias desordenadas levou a muitas alegações confiáveis - apoiadas por conclusões de especialistas das Nações Unidas - de que Ruanda está fornecendo armas, soldados e orientação militar para os rebeldes, com as ordens vindo diretamente do Ministério da Defesa ruandês. A Human Rights Watch, diz ter registros extensos de tropas de Ruanda entrando no Congo para ajudar os rebeldes.
Uganda também é acusada de dar base política para os insurgentes, embora a pedido do governo congolês tenha fechado recentemente uma fronteira importante por onde entrava ajuda financeira para os rebeldes.
Tanto Ruanda quanto Uganda são países relativamente organizados - num forte contraste com o Congo - com governos autoritários enraizados, que recebem uma importante ajuda militar e financeira do Ocidente.
Esse apoio de peso significa que os rebeldes têm condições de concretizar suas ameaças. Com a tomada de Goma, o coronel do M23, Vianney Kazarama, me disse que a intenção dos insurgentes é "capturar uma grande parte do leste do Congo", incluindo outra grande cidade, Bukavu. Os rebeldes exigiram que o governo congolês negocie com eles, sem especificar o que desejam. Mas as autoridades responderam que só negociarão com Ruanda, "o real agressor" e não com um grupo "fictício" que serve de cobertura.
Novo país
Os rebeldes do M23 estão agrupados em Goma. E isso pode ser um intervalo de calma, enquanto as partes tentam negociar. Mas, diante da história desses insurgentes, eles acalentam um velho sonho, de um lugar que seja no leste do Congo, algo que se torna cada vez mais realidade. A situação assemelha-se muito a outro ataque contra Goma, ocorrido há quatro anos e articulado por Laurent Nkunda, rebelde também apoiado por Ruanda, que liderou o grupo que antecedeu o M23 e me disse que pretendia criar um novo país no leste congolês chamado "República dos Vulcões". Cerca de 200 mil pessoas foram desalojadas nessa batalha à medida que os combates chegavam à cidade. No fim, Nkunda decidiu não capturar Goma e, durante as negociações que se seguiram, as suas forças se desmobilizaram e se juntaram ao Exército. No entanto, meses atrás alguns dos mesmos combatentes declararam que o governo congolês renegou suas promessas e então armaram a rebelião.
As forças do M23 e de Nkunda são acusadas de graves abusos de direitos humanos, incluindo estupros em massa (como o de 16 mil mulheres num único fim de semana em Bukavu), massacres e recrutamento de crianças soldados. Bosco Ntaganda, um líder do M23, é procurado pelo Tribunal Penal Internacional por recrutar crianças para a guerra. O Congo emitiu um mandado de prisão do líder rebelde em 2005, citando crimes de guerra, mas ele se encontra numa prisão secreta em Ruanda, que se recusa a entregá-lo.
O apoio de Ruanda ao movimento rebelde deriva de uma combinação de simpatias históricas e interesses financeiros. O M23 é composto principalmente de combatentes tutsi, grupo étnico historicamente marginalizado no leste do Congo. Vários líderes do M23 e do seu grupo predecessor combateram ao lado do hoje presidente de Ruanda, Paul Kagame que, como muitos dos seus assessores, também pertence à etnia tutsi.
A região leste do Congo também é rica em minérios, uma riqueza da qual Ruanda tem se aproveitado ilegalmente há anos, desde a invasão do Congo em 1996. Ruanda acumulou centenas de milhões de dólares, provavelmente muito mais, apoiando os grupos rebeldes que controlam minas lucrativas no Congo e contrabandeiam os minérios para o país para exportar para os mercados mundiais.
Há também o aspecto histórico. Muitos ruandeses, incluindo autoridades, acreditam que o leste do Congo legalmente faz parte de Ruanda, região capturada quando as potências coloniais europeias dividiram o continente, em 1884, e essas terras ricas e férteis passaram a fazer parte do Congo. Eles acham que o M23 quer corrigir essa injustiça histórica, apesar das leis internacionais que estabelecem o contrário.
A chanceler de Ruanda, Louise Mushikiwabo, realçou tais simpatias há alguns meses, quando iniciou uma reunião privada sobre a questão dos rebeldes do M23, apresentando um mapa antigo de Ruanda que abrangia grande parte do leste do Congo. Foi o que disseram vários diplomatas que participaram do evento. Seu argumento era que a história da região é complexa, mas ela praticamente reafirmou que Ruanda tem direito a terras congolesas.
Kagame, por seu lado, tem permanecido curiosamente em silêncio desde o novo surto de violência na fronteira do seu país, embora anteriormente tenha refutado todas as alegações de que Ruanda apoia os rebeldes. E, até agora, apesar dos apelos internacionais, ele se recusa a condenar a rebelião. Os rebeldes, contudo, insistem que seu movimento é puramente congolês.
Kazarama, porta-voz do grupo, me disse que o M23 luta contra "anos de péssima governança, falta de serviços públicos e insegurança constante". Quando perguntei onde o grupo obteve seus sofisticados equipamentos militares, (a ONU observou que o grupo possui canhões com calibre de 120 milímetros e até óculos de visão noturna) ele respondeu que foram adquiridos no "mercado negro em Dubai" e insistiu que as armas "não vinham de Ruanda". Embora Ruanda receba enormes somas a título de ajuda dos países ocidentais, representa uma força decisiva na desestabilização do Congo. A grande parte do território congolês, apesar de rica em minérios e aberta à pilhagem, é relativamente uma região pacífica. Mas a fronteira do Congo com Ruanda continua sendo estopim para novos conflitos.
Apesar dos fatos, Ruanda sempre negou seu envolvimento no Congo. Durante a invasão ao país na década de 90, rejeitou acusações de que estava presente em solo congolês, mesmo quando fotografias foram tiradas de James Kabarebe, o atual ministro da Defesa ruandês e comandante operacional daquela invasão, em Kinshasa, ao lado do então presidente congolês, Laurent Kabila, que ascendeu ao poder auxiliado por Ruanda. Durante anos, Ruanda também negou apoiar as forças rebeldes de Nkunda, somente para exercer um controle dele e mantê-lo detido em Ruanda. E agora o presidente Kagame continua - às vezes, ferozmente - a negar a assistência do seu governo ao M23.
Na terça-feira, quando os rebeldes tomaram o controle da fronteira do Congo com Ruanda - um fato que deve preocupar -, as agências de notícias informaram que soldados e policiais ruandeses "não pareciam particularmente inquietos e grandes reforços na região não eram visíveis".
A comunidade internacional optou historicamente por ficar do lado de Ruanda em seus veementes desmentidos de interferência no Congo - e continua enviando anualmente cerca de US$ 1 bilhão ao governo de Ruanda, que depende da ajuda externa para cobrir a metade do seu orçamento.
Entretanto, em julho, vários governos ocidentais suspenderam suas contribuições para Ruanda depois da divulgação de boatos segundo os quais o país estaria armando uma rebelião no Congo. Os EUA foram os primeiros. Suspenderam a assistência militar de US$ 200 mil (uma minúscula porcentagem de sua ajuda real a Ruanda). Mas vários entre os maiores financiadores de Ruanda - incluindo a União Europeia, o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Africano, muitos dos quais canalizam diretamente recursos para o tesouro ruandês - continuaram doando e emprestando ao governo e se recusaram a condenar publicamente o apoio de Ruanda aos rebeldes, apesar das provas cada vez mais contundentes.
Em setembro, a Grã-Bretanha, que anteriormente suspendera sua contribuição, voltou a dar sua ajuda de 16 milhões de libras ao governo ruandês. O ex-secretário para o Desenvolvimento Internacional da Grã-Bretanha, Andrew Mitchell, que é amigo íntimo de Kagame e cujo trabalho beneficente em Ruanda foi elogiado pelo presidente, foi criticado como um "ministro tratante" por membros do Parlamento britânico, por endossar a ajuda no último dia antes de deixar o cargo. Outros países, entre eles os EUA, sugeriram que não farão mais nenhum "novo" compromisso de ajuda a Ruanda, mas os compromissos atuais - que somam várias centenas de milhões de dólares - continuarão sendo cumpridos.
Em palavras simples, a comunidade internacional parece relutar a pressionar Ruanda para que o país ajude a acabar com a enorme crise humana em andamento no Congo. Os países ocidentais dizem que pressionar Ruanda poderá provocar uma maior instabilidade na região - apesar do absurdo dessa afirmação, considerando a influência desestabilizadora de Ruanda no Congo não só na atualidade como também historicamente. Doadores de ajuda também temem perder o que consideram um país modelo para o desenvolvimento da África - embora esse conceito de desenvolvimento bem-sucedido se refira apenas ao aspecto econômico.
Embora Ruanda tenha apresentado um crescimento econômico desde o genocídio de 1994, seu governo é profundamente repressivo e demonstra um apoio ínfimo aos direitos humanos fundamentais.
Prêmio
O recente ataque em Goma também ressalta a inadequação da força da ONU, composta por 17 mil soldados, provenientes na maior parte de países pobres - do leste do Congo e, principalmente, de Índia, Paquistão e Bangladesh - que são enviados nessas missões como prêmio por seu bom trabalho em seus países de origem. A diária paga pelas Nações Unidas representa, para muitos deles, um salário quatro vezes maior do que seus ganhos em seus Exércitos regulares. As forças de paz frequentemente me disseram que o trabalho no Congo lhes serve para comprar uma casa ou pagar a educação dos filhos - eles não vieram "aqui no Congo para morrer".
A ONU afirma que quando o Exército congolês fugiu de Goma, não deteve os rebeldes do M23 por medo de causar vítimas civis. O chanceler francês pediu nesse ínterim uma revisão da missão da ONU no Congo, afirmando que é um "absurdo" que os rebeldes possam desfilar na frente dos soldados ociosos das forças de paz. Enquanto isso, os Exércitos congolês e ruandês teriam começado a se atacar reciprocamente, assinalando as primeiras hostilidades abertas entre os dois países em muitos anos.
O reinício dos combates, há meses, interrompeu alguns anos de gradativo progresso no leste do Congo, no qual, pela primeira vez desde 1996, reinava uma relativa estabilidade em áreas ao redor de Goma. O famoso Parque Nacional Virunga era visitado por um número cada vez maior de turistas ansiosos por ver o gorila da montanha, uma espécie ameaçada, em seu habitat natural. E Goma desfrutava de uma onda de intensificação das construções, em grande parte de hotéis de vários andares.
O que parece claro atualmente é que os rebeldes do M23 fizeram um esforço decisivo para se apoderar de uma parte do leste do Congo.
Ruanda também parece trabalhar com decisão - não retirando seu apoio à rebelião, apesar dos reiterados apelos internacionais. E o governo sentiu-se estimulado pelo fato de sua solicitação de um assento no Conselho de Segurança da ONU ter sido atendida, apesar de, mesmo naquela época, existirem evidências consistentes de que estava dando seu apoio ao M23. E, agora, fala-se na região do surgimento de um novo país - uma anexação do tipo do Sudão do Sul, do território rico em minérios no Congo.
Agora é difícil imaginar um fim pacífico desse conflito - e serão os civis congoleses que mais sofrerão, como sempre ocorreu. Mas se o M23 for derrotado, a animosidade contra as minorias de língua ruandesa no Congo se tornará ainda mais violenta e poderá levar a uma renovada onda de violência. Sem dúvida, os rebeldes - e Ruanda - estão conscientes de sua grande aposta.
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Essa outra guerra insana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU