20 Novembro 2012
Como puderam? Um míssil lançado contra a santidade de Jerusalém. Um míssil na noite de sexta-feira, logo que concluiu o dia de oração dos muçulmanos. Isto é, lançado contra a santidade do Shabbat, a festividade judaica do sábado anunciada por um pôr do sol inconfundível: os reflexos dourados das rochas da Judeia, que se tornaram pedras e muros da Cidade Sagrada para os crentes do único Deus.
A reportagem é de Gad Lerner e publicada no jornal La Repubblica, 17-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A hora em que os fiéis vestem as roupas anacrônicas da tradição e se apressam pelas vielas do mercado para o Kotel, chamado de Muro das Lamentações, último recinto externo que sobreviveu do templo que o imperador Tito destruiu há mais ou menos dois milênios.
Lá onde nem sequer Saddam Hussein havia ousado, as Brigadas Ezzedine al Qassam, braço armado do Hamas, miraram. Como a história do Oriente Médio contemporâneo é manipulada grotescamente pelos fanáticos barbudos sequestradores do sagrado, eu não descarto que os milicianos se autoapresentem como continuadores da obra de Saladino: o príncipe curdo que, em 1187, sitiou a Jerusalém cruzada e deu fim, depois de 80 anos, ao Reino Latino, prosseguindo para aquela que os muçulmanos celebram como a Libertação da Noiva: aspergindo água de rosas sobre a mesquita de al-Aqsa e a Cúpula da Rocha para reconsagrá-los ao Islã, depois que os Templários havia transformado a esplanada no seu acampamento.
Na visão dos integralistas, Israel é um corpo estranho destinado à extinção, nem mais nem menos do que aqueles reinos cruzados. A palavra de ordem jihad al-Quds – guerra santa para Jerusalém – continua sendo o distintivo da indisponibilidade de todo compromisso territorial.
Pouco antes do lançamento dos dois mísseis M-75, um amigo tinha me telefonado com apreensão pelos meus parentes que vivem em Israel: "Diga-lhes para irem a Jerusalém, é o único lugar seguro". A realidade o desmentiu imediatamente.
Quem se arroga o direito de combater em nome de Deus certamente não tem medo de despedaçar as pedras douradas de Jerusalém. Isso já foi feito várias vezes ao longo dos séculos: não há lugar santo que já não tenha sofrido a injúria da destruição ao redor do Monte Moriá, a colina no centro da cidade velha que o Gênesis indica que sede do esconjurado sacrifício de Isaac. E do qual, segundo o Alcorão, Maomé alçou voo no firmamento com o arcanjo Gabriel, para retornar à Arábia através dos Sete Céus depois da sua viagem noturna a Jerusalém, reconhecível, mas nunca citada como tal no livro sagrado do Islã.
Assim, a esplanada no topo do Monte Moriá, sobre o qual foi edificado o templo judeu e onde depois da conquista islâmica de 638 surgiu a cúpula dourada do califa Omar, é o local da disputa mais dilacerante. Mas os hierosolimitanos destinados a conviver na Cidade Santa gostam de lembrar que o califa sucessor de Maomé evitou cuidadosamente, depois da conquista, profanar o limítrofe Santo Sepulcro venerado pelos cristãos: evidentemente, era mais sábio do que esses fanáticos do Terceiro Milênio.
As Brigadas al-Qassam tuítam de Gaza mensagens que visam a espalhar entre os israelenses o mesmo medo que oprime nestes dias a população palestina vítima dos bombardeios de Tsahal. A guerra do terror está sendo combatida em um pequeno pedaço de terra, e por isso o zeva adom (literalmente, "cor vermelha") marcado pelo barulho das sirenes também leva aos refúgios os habitantes da mundana e prazerosa Tel Aviv.
Mas a tentativa de envolver no alerta o sábado de Jerusalém tem um significado inequívoco: a absolutização do conflito, elevado por controvérsias territoriais a guerra religiosa.
"Jerusalém é uma bacia de ouro cheia de escorpiões", disse o geógrafo hierosolimitano al-Muqaddasi há mais de mil anos. Lembra-o Franco Cardini no belo livro (Gerusalemme. Una storia), recém-publicado pela editora Il Mulino. "Entre os profetas de Jerusalém, vi coisas nefandas", já previra Jeremias bem antes. Enquanto o evangelista Marcos lamentava: "Ó Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados".
No entanto, a cidade continua maravilhosa, atraente como o enigma que protege, imprescindível na sua graça. Sempre atual ressoa o Salmo 137: "Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita murche".
Será possível, alguma vez, que a meta das peregrinações das três grandes religiões monoteístas, a Jerusalém terrena vilipendiada continuamente na sua aspiração a ser a Jerusalém Celeste, poderá se transformar em laboratório daquela convivência entre judeus, cristãos e muçulmanos, que já é realidade em tantas metrópoles ocidentais?
Não parece paradoxal, mas seriam necessárias pessoas capazes de contrapor à blasfêmia belicista dos lançadores de mísseis uma santidade secular que é própria dos verdadeiros amantes de Jerusalém.
Como o grande estudioso da qabbalah Gershom Scholem. Em 1929, o seu amigo Ben Gurion lhe pediu um memorando para ser entregue aos ingleses para lhes mostrar a importância do Muro das Lamentações na tradição judaica. Scholem se recusou com a motivação de que os temas da religião devem permanecer bem distintos da controvérsia política. Homens piedosos e sábios também se encontram igualmente entre muçulmanos e cristãos. Com os mísseis lançados contra a Cidade Santa, o niilismo contemporâneo gostaria de se apoderar do Nome de Deus e reduzi-los ao silêncio.
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Cidade Santa humilhada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU