27 Outubro 2012
Desta sexta-feira até segunda-feira, em Turim, Itália, ocorre o Salão do Gosto – Terra Madre, uma exposição organizada pelo Slow Food, na qual participam dezenas de chefs, artesãos e agricultores italianos, europeus e do Sul do mundo ligados à produção de alimentos que preservam o valor cultural e social dos alimentos.
A reportagem é do sítio da revista dos jesuítas italianos, Popoli, 25-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Por ocasião desse evento, antecipamos o prefácio, assinado por Carlo Petrini, fundador e presidente do Slow Food, ao livro (que será lançado em novembro), que reúne os artigos de etnogastronomia publicados nos últimos anos na revista Popoli, de autoria da antropóloga Anna Casella Paltrinieri, intitulado Sapori & Saperi: Cibi, ricette e culture del mondo (Ed. Firenze, 2012, 236 páginas).
Eis o texto.
Ler Sapori & Saperi: Cibi, ricette e culture del mondo, de Anna Casella Paltrinieri, é um pouco como percorrer novamente muitas das minhas viagens e reviver outros tantos encontros. São pequenas pílulas de mundo, de um mundo feito de sabores e culturas, contadas com uma leveza e ao mesmo tempo profundidade.
Certamente, agora já não há publicação ou revista que hoje não hospede seções dedicadas ao à etnogastronomia. Que fique claro, isso não é ruim; ao contrário, é também o fruto de uma nova consciência, mas às vezes é mais o surfar da onda de uma tendência. Já está consolidado o axioma de que o alimento é cultura, e muitos se enchem a boca (também metaforicamente, e isso diz muito) com esse conceito, levado às vezes à banalização. Dito isso, frequentemente entre uma abordagem autêntica e uma abordagem meramente instrumental aos alimentos como fator cultural, corre um abismo.
A atenção às culturas "outras", que nestes tempos são cada vez menos e, de fato, tornam-se cada vez mais próximas e "nossas", é uma característica que eu encontro na revista Popoli, assim como no trabalho de Anna Casella. Uma coisa, de fato, é fazer folclore e cor com uma receitística como fim em si mesma; outra é narrar de modo divulgativo, com um método antropológico, a história, a origem, a difusão de pratos e alimentos.
O discurso, portanto, parte de mais longe: da relação imprescindível entre o alimento – entendido não só como nutriente e "combustível", mas também como transformação de produtos da natureza –, conhecimento e ser humano. No livro, parte-se, de fato, justamente desse ponto: alimento como conhecimento, alimento como saber fazer, alimento como trabalho do homem (e sobretudo da mulher).
Esse estudo, além disso, aprofunda as fortes manualidades ligadas à produção alimentar, que passa através do papel masculino e feminino, da capacidade de reconhecer, coletar e utilizar os produtos da terra; depois, analisa o desenvolvimento das técnicas de transformação que, ao longo dos séculos, foram inventadas, adquiridas, aperfeiçoadas, codificadas, para tocar a relação entre ser humano e natureza (os ciclos sazonais, a ritualidade relacionada, a preceitística religiosa etc.).
Todo povo, em toda região do planeta, elaborou uma tradição culinária própria: e como toda tradição cultural, há quem a impugnou e a impugne para fazer dela uma bandeira identitária, de tipicidade, omitindo o fato de que toda tradição raramente é pura, incontaminada e sem conexões com o mundo. Foi assim no passado e é assim hoje. O espaguete ao molho de tomate, o prato italiano por excelência, é fruto de uma mestiçagem antiga, com a massa que tem origem na China e os tomates trazidos da América. Isso é verdade para nós hoje, mas também não será verdade para novos pratos e novos produtos no futuro? Em um mundo que é cada vez menor, cada vez mais fluido, cada vez mais comunicante, ainda tem sentido falar de tipicidades locais?
Tradição e contaminação
À luz da esperança da associação que eu presido, posso dizer que sim, mas com um olhar de precaução com relação à abertura, ao intercâmbio, à transfusão de conhecimentos. Ao longo dos anos, o Slow Food evidenciou fortemente a importância do território, da ideia de Presidio de um produto, do saber fazer e de interconexão com o ambiente que esse produto gera. Nasceram e renasceram impulsos e projetos de relançamento de lugares e de profissionalidade em vias de extinção. Também foram reforçados o orgulho e o amor pela própria terra, assim como a consciência do ser agricultor e artesão do alimento. Tudo isso, no entanto, seria estéril e obtuso se não fosse aberto ao outro. E se não fosse consciente de como a hibridização cultural é um processo tão inevitável quanto enriquecedor.
Para esclarecer mais esse conceito, pode ser útil remete às análises de Arjun Appadurai, um antropólogo social indoamericano, quem melhor do que todos soube esboçar a modernidade e a globalização. Appadurai elaborou cinco novos conceitos – definidos de "etnoramas" globais – para descrever as dimensões e os fluxos culturais globais que caracterizam o nosso mundo hoje: "ethnoscapes", "mediascapes", "technoscapes", "financescapes" e "ideoscapes", em que "-scape" significa "-orama", de panorama.
O "etnorama" define o fluxo de pessoas – sejam migrantes, turistas, trabalhadores – que se movem constantemente entre os Estados e cada vez mais influenciam as políticas nacionais e internacionais; o "mediorama" é o fluxo das imagens veiculadas pelos meios de comunicação; o "tecnorama", por sua vez, refere-se ao fluxo da tecnologia através de fronteiras cada vez menos definíveis; o "financiorama" é o fluxo de dinheiro em todas as suas formas; enfim, o "ideorama" é o fluxo das ideias e das ideologias. Esses fluxos são disjuntos, mas cada um influencia o outro.
No rastro dessa análise, que eu considero apaixonante e eficaz, no campo dos food studies, adaptaram-se novos "-scapes", os "foodscapes", que fotografam os hábitos e os estilos alimentares à luz dos processos de globalização que dizem respeito à nossa sociedade. O que, de fato, é aplicável às diversas paisagens culturais que surgiram com a globalização também pode ser justamente aplicável ao mundo dos alimentos. Que, no entanto, é cada vez mais fluido, nas palavras de Bauman, mas que, ao contrário, pode se cristalizar cada vez mais em compartimentos identitários herméticos de forma defensiva. Eis que, então, na ótica de "ethnoscapes" cada vez mais amplos, os "foodscapes», as paisagens alimentares, também se tornam um novo paradigma que não podemos desconsiderar.
A dimensão transnacional que se refere não só aos migrantes, que gerenciam e levam vidas entre o país de origem e o país de imigração, mas também a faixas cada vez maiores da população italiana (quer por estudo, quer por motivos de trabalho, ou outros ainda), nos leva a incorporar naquela que reivindicamos como cultura alimentar italiana novos "foodscapes", novos sabores, novos saberes-fazeres.
As pílulas de cultura alimentar que Anna Casella Paltrinieri destila todo mês na Popoli e que estão reunidas nos ajudam a ver e a entender o que está por trás de um prato, as conexões que existem entre costumes que pensávamos distantes, a relação entre tradição culinária e ambiente, a influência que o alimento tem sobre a cultura, sobre a língua e sobre o patrimônio material e imaterial de um povo, sugerindo também, àqueles que querem arriscar, uma versão acessível da preparação do próprio prato.
Carlo Petrini
Presidente do Slow Food
O livro
Sapori & Saperi: Cibi, ricette e culture del mondo não é um costumeiro livro de receitas. Ao invés, é uma viagem às culturas culinárias. Um itinerário que evidencia como a comida não é apenas um alimento, mas sim o espelho das identidades e das tradições de cada povo. A autora, antropóloga, que neste livro reuniu os artigos de etnogastronomia publicados desde 2008 na Popoli, relata tradições, usos, histórias, mitos e lendas ligados a pratos individuais, dos quais ela também oferece ingredientes e sistemas de preparação.
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A identidade mestiça dos alimentos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU