17 Outubro 2012
"Faz parte da modernidade impedir a violência por parte do cidadão, fazendo seu uso privilégio exclusivo do Estado. Mas, embora isso tenha tornado a vida social mais segura (pelo menos nos regimes democráticos), a vida moderna, que elude amplamente e às vezes até exclui a corporalidade, essa vida cuja realidade profissional consiste hoje na fusão de consciência e software, também degradou nossos corpos de modo totalmente disfuncional, lançando-nos numa zona existencial de inércia propensa a causar nervosismo e agitação inútil", escreve Hans Ulrich Gumbrecht, professor de Literatura na Universidade Stanford e autor de Graciosidade e Estagnação (Editora PUC-Rio, Contraponto Editora), em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 07-10-2012.
Eis o artigo.
A notícia que nos chegou de Curitiba essa semana foi ruim, mas não uma surpresa. Uma garota de 13 anos e o pai foram quase linchados por torcedores do time de futebol local porque, no estádio, ela mostrou seu entusiasmo pelo time visitante, o São Paulo Futebol Clube, e seu jogador, Lucas. Foi um incidente feio e perturbador, sem nenhuma dúvida ou ambivalência, mesmo para aqueles que, como nós, sabem quanta provocação das massas reunidas de torcedores de uma equipe rival acabam fazendo parte do comportamento do torcedor. A cobertura dos fatos fez disparar os costumeiros alertas contra a violência nos estádios.
Esse é o ponto em que a bem-intencionada crítica da violência nos eventos esportivos ganha vida própria e pode se tornar contraproducente. Porque podemos dizer que, hoje, parte da função social positiva desempenhada pelos estádios repousa na sua condição de santuários de violência. Nosso objetivo, portanto, não deve ser fomentar uma vigilância intolerante que reprima qualquer violência, mas, pelo contrário, identificar o limite a partir do qual a violência nos estádios tem potencial verdadeiramente perigoso.
Para iniciar a discussão, proponho definir violência como conquistar ou o fechar espaços com corpos, enfrentando a resistência de outros corpos. Faz parte da modernidade impedir a violência por parte do cidadão, fazendo seu uso privilégio exclusivo do Estado. Mas, embora isso tenha tornado a vida social mais segura (pelo menos nos regimes democráticos), a vida moderna, que elude amplamente e às vezes até exclui a corporalidade, essa vida cuja realidade profissional consiste hoje na fusão de consciência e software, também degradou nossos corpos de modo totalmente disfuncional, lançando-nos numa zona existencial de inércia propensa a causar nervosismo e agitação inútil.
Além do exercício corporal individual, a experiência do estádio pode compensar essa situação em duas dimensões distintas - o que explica por que o esporte espetáculo, no último século, se tornou incomparavelmente mais popular do que nunca. Quando assiste a um evento de atletismo num estádio você se identifica em primeiro lugar com os atletas individuais e seus movimentos corporais; e, ao se identificar com os atletas individuais ou as equipes você, em segundo lugar, se torna parte de um corpo coletivo maior.
Quanto à identificação do espectador com o atleta, os times e os esportes, há uma percepção equivocada segundo a qual a violência envolvida em cada esporte contagia aqueles que o estão assistindo. Na verdade é o contrário, como sólidas evidências empíricas demonstram: o boxe e a luta livre, o hóquei no gelo e o futebol americano são esportes nos quais o nível de violência atlética é muito alto, e não são famosos pela violência em massa. O futebol, pelo contrário, cujas regras proíbem a violência por parte do jogador, tem torcedores conhecidamente violentos - como, no que é quase um paradoxo, muitos jogadores cerebrais de xadrez se tornaram famosos por atos de violência que beiraram o sadismo, como apagar cigarros no dorso da mão do adversário. Parece, então, que a função apaziguadora do estádio de compensar nossa vida cotidiana quase desprovida de corpo é mais bem-sucedida quando há uma nítida violência como objeto básico de referência.
Em geral, essa dimensão plena da identificação do espectador individual com os atletas pode produzir fenômenos estranhos e excessivos, mas dificilmente isso se torna um problema. A zona de problemas começa onde a atenção conjunta dirigida aos atletas transforma os espectadores individuais num corpo coletivo, num sentido muito similar àquele em que a antiga teologia cristã descrevia a comunidade da fé como "o corpo místico de Cristo". Se, de um lado, fazer parte desse corpo místico reduz nossa autodeterminação, de outro existe a alegria de se deixar mergulhar, espiritual e fisicamente, num cenário de presença coletiva e em movimentos que transcendem a existência individual. A ola, popular nos estádios nas últimas três décadas, é a mais inofensiva demonstração da alegria que nasce de se render a um desejo ou impulso inofensivo e quase sempre superficial porque normalmente surge quando o jogo começa a se tornar monótono. Em raras ocasiões, contudo, esses corpos místicos podem atingir um nível de entusiasmo extático quando o jogo alcança tamanho nível estético cujo prazer se torna mais importante do que a vitória ou a derrota do time.
A semifinal da Copa do Mundo de 1970, no México, quando a Itália derrotou a Alemanha por 4 a 3 na prorrogação, ficou famosa nesse sentido. Como também alguns jogos da equipe brasileira depois de 1958, nas épocas de Pelé, Didi e Mané Garrincha. Durante esses momentos nossa alegria se torna realmente física e transcendente, quase num sentido religioso ou social, e desaparece a separação entre os diferentes grupos de espectadores torcendo pelos times rivais.
Essa forma de transcendência e inclusão corporal é a simples razão pela qual, em ocasiões realmente excepcionais, o corpo místico não se torna violento - pela falta de outros (de fora) corpos individuais e coletivos contra os quais ele poderia se voltar e afastar, com violência. Medidas bem intencionadas para separar os torcedores dos diferentes times num estádio, cuja finalidade é reduzir a violência, pelo contrário e paradoxalmente, tendem a intensificar essa violência. Talvez seja um preço inevitável a pagar por algum controle e segurança racionais. Mas, se é inevitável, essa inevitabilidade transforma o potencial mais nobre e extático de transcendência física prazerosa num espírito de agressão tacanho e potencialmente criminoso. Essa é a lição da última semana vinda de Curitiba.
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Pode a violência nos estádios ser boa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU