08 Outubro 2012
Com o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica, consciente de não viver mais em um regime de cristandade generalizada e óbvia, mas sim em um mundo que toma direções muito diferentes e às vezes opostas com relação à mensagem evangélica, descobre a si mesma como peregrina e, portanto, missionária.
A opinião é do vaticanista italiano Aldo Maria Valli, publicada no jornal Europa, 06-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não vou entrar na polêmica acerca da contraposição entre hermenêutica da continuidade e hermenêutica da descontinuidade. Parece-me uma discussão bastante estéril e francamente pouco apaixonante. Ambos os frontes têm alguma razão. O Concílio, como disse Bento XVI, não pode ser considerado uma nova constituição que revoga a velha. Primeiro porque a Igreja Católica não é um regime político, e depois porque para a Igreja a única "constituição" é o Evangelho, e o Evangelho certamente não é revogável nem emendável.
Por outro lado, quem defende a hermenêutica da descontinuidade tem razão em destacar que, com o Concílio Vaticano II, abriu-se uma página totalmente nova ("uma transição epocal e uma reviravolta profunda", definiu-a o cardeal Roberto Tucci) sob a insígnia de profundas mudanças, como a valorização do papel dos leigos e a redescoberta da Escritura.
Com o Vaticano II, a Igreja sai da dimensão dogmática, volta a estabelecer verdades e erros no sinal do absoluto e do indiscutível, e entra na dimensão pastoral, volta a encontrar o modo de expor e transmitir melhor os conteúdos da fé aos homens e às mulheres do tempo. Não é possível entender o Concílio se não levarmos em conta a sua essência pastoral. De fato, não por acaso, os tradicionalistas custam a entendê-lo, ligados ao caráter dogmático da mensagem cristã.
Com o Concílio, a Igreja Católica, consciente de não viver mais em um regime de cristandade generalizada e óbvia, mas sim em um mundo que toma direções muito diferentes e às vezes opostas com relação à mensagem evangélica, descobre a si mesma como peregrina e, portanto, missionária: uma realidade que vive no meio do mundo, no debate constante com todas as outras realidades. E precisamente por ser peregrina ela não pensa mais a si mesma como instituição rígida, como organização estruturada em torno de alguns princípios imutáveis, mas sim como povo a caminho, como autêntica “ecclesia”, comunidade de pessoas.
Uma comunidade que, estando a caminho, não passa por cima das realidades circundantes, mas está misturada com elas, e não olha com espírito de superioridade para as dificuldades e para os limites do resto do mundo, mas toma parte deles, através de um estilo misericordioso. O Concílio põe para trás a Igreja dos grandes sacerdotes, que julgam estando de fora e acima dos sofrimentos e dos pecados do mundo, e valoriza a Igreja samaritana, que se inclina sobre a dor do necessitado e cuida dele concretamente, em nome da humanidade comum.
Também há rugas no rosto do Concílio. E a principal, talvez, consiste no seu modo de fazer a questão da relação com o mundo. Quando João XXIII anunciou o Concílio, a noção de "mundo" era muito mais simples, menos articulada do que a atual. Limitando-nos ao mundo de cultura cristã, quando os padres conciliares falavam do mundo, eles tinham em mente uma realidade que certamente estava se afastando, já naquela época, da fé, mas ainda estava embebida de tradições e valores cristãos.
Era um mundo mais compacto, menos complicado, menos diferenciado. Ninguém, então, jamais imaginaria recorrer, para descrever o mundo, à expressão de Zygmunt Bauman: "sociedade líquida". O mundo estava mudando, mas ainda era legível através das velhas lógicas. Ainda era unitário, enquanto hoje estamos em plena fragmentação. E o mesmo mundo eclesial era algo muito menos complexo do que hoje.
O mundo ao qual o Concílio se refere, com um entusiasmo que hoje pode nos parecer legitimamente ingênuo, também pode dar medo (como no caso do risco atômico), mas ainda é compreensível, até mesmo no plano moral. Naquele mundo, as noções de bem e de mal, de bom e de ruim, ainda são amplamente compartilhadas. Ainda existe um sujeito que observa e julga. Mas hoje tudo é posto em discussão. Basta pensar no advento da realidade virtual, pela qual é cada vez mais difícil definir até mesmo o conceito de experiência pessoal. Como lidar com esse mundo que foge como a água, esse mundo tão inapreensível a ponto de não poder nem ser descrito com as velhas linguagens?
O problema, hoje como naquela época, não está nas estruturas, mas sim na renovação espiritual: no rosto da Igreja deve resplandecer o rosto de Cristo. Obviamente, é mais fácil mudar as estruturas. Muito mais difícil é se despojar daquilo que Dom Casale chama de "um modo impróprio de ser e de se sentir Igreja". É preciso sempre retornar ao Evangelho. É preciso se dar conta do fato de que a questão das estruturas, e em primeiro lugar da Cúria Romana, também é problema teológico, e não administrativo. Não por acaso, Giuseppe Dossetti defendia a necessidade de uma pesquisa teológica em apoio a uma autêntica reforma.
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O impacto do Vaticano II numa sociedade líquida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU