03 Setembro 2012
Para Martini (na foto conversando com Eugenio Scalfari), a fé é ao mesmo tempo contemplação e ação, mas são dois movimentos da alma intimamente conectados. A contemplação é solitária, a ação é solidária e pastoral.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ouso pensar que foi um momento sereno ou até mesmo feliz o de Carlo Maria Martini quando decidiu ser desligado das máquinas que ainda o mantinham com vida e permitir-lhe entrar no céu das bem-aventuranças, se Deus quiser.
Nós conversamos frequentemente sobre isso em nossos encontros. Ele dizia que a sua fé era forte, mas se confrontava todos os dias com as dúvidas. Não sobre a fé, mas sobre o modo de usá-lo, de fazê-la viver com os outros e para os outros. A fé – assim dizia – é ao mesmo tempo contemplação e ação, mas são dois movimentos da alma intimamente conectados. A contemplação é solitária, a ação é solidária e pastoral.
Eu, de um ponto de vista totalmente diferente, objetava que a dúvida sobre a ação acaba envolvendo a fé na sua inteireza. Ele, quando eu lhe fiz essa observação, respondeu que, de fato, todos os dias quem tem fé deve reconquistá-la. Essa é a tarefa do cristão e, em particular, do bispo, sucessor dos apóstolos: colocar sua fé ao serviço dos outros, portanto, colocá-la em jogo e, junto com os outros, junto com as ovelhas perdidas, reconquistá-la.
Um dia eu lhe perguntei qual era para ele o momento culminante da vida de Jesus: o discurso da montanha, a ultima ceia, a oração no horto do Getsêmani, o interrogatório diante de Pilatos, as "estações" da Paixão ou, por fim, a crucificação e a morte. "Não – respondeu –, o momento culminante é a Ressurreição, quando se abre o seu sepulcro e aparece a Maria e a Madalena. E, depois, transfigurado aos apóstolos, aos quais confia a tarefa de ir e pregar".
Martini foi e pregou; se confrontou, privilegiou os jovens padres e os leigos mais distantes e considerou a morte como o instante em que se atravessa a porta que conduz à contemplação eterna na luz do Senhor. A alma abandona o corpo onde estava encerrada, onde fez a experiência dos pecados, onde se mediu com as tentações, onde rezou pelos outros à espera desse momento supremo. Por isso, ouso pensar que decidir ir em paz foi o instante feliz da sua vida.
Eu não tenho fé no além e não a busco. Ele sabia disso e nunca fez nada para me converter. Não era essa a sua pastoralidade, ao menos comigo. Ele queria me oferecer a sua experiência e talvez utilizar a minha. Mas qual experiência? Certamente não a do mundo, mas sim a da alma, dos instintos, dos sentimentos, dos pensamentos.
A última vez que nos encontramos, no inverno passado, eu lhe levei o meu último livro intitulado Eros, que certamente não é uma divindade cristã. Ele já não falava mais, sussurrava, e o seu assistente, Pe. Damiano, lia o movimento dos seus lábios e o traduzia. Mas depois de ter revirado o livro entre as mãos trêmulas, ele me perguntou (e o Pe. Damiano traduziu) se o protagonista do livro era o amor, e eu respondi que sim, que era um livro sobre o amor e, acima de tudo, sobre o amor pelos outros. E ele fez "sim" com a cabeça, para dizer que o presente lhe agradava.
O amor pelos outros é o modo que Jesus indicou como o único que conduz a Deus, a caritas, o ágape. Essa é a tarefa da Igreja apostólica: a caritas para chegar a Deus através do filho que se fez homem.
Quando nos despedimos, ele me sussurrou ao ouvido: "Rezarei pelo senhor", e eu respondi: vou pensar no senhor. E ele me sussurrou ainda: "Igual".
Hoje, penso muito nele. Ele, à imagem daquele instante final, certamente pensou que estava atravessando a porta da vida eterna. E eu acho que ele pensou nisso, e isso me consola pela sua perda.
Nota da IHU On-Line:
Confira abaixo, em Para Ler Mais, as três entrevistas concedidas pelo cardeal Martini a Eugenio Scalfari, em 2009, 2010 e 2012.
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A fé e a dúvida. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU