29 Agosto 2012
"Se mexer com a nova Ocupação Eliana Silva, mexerá comigo e com muita gente que se comove com a dor dos empobrecidos e fica possuído por uma ira santa diante de tanta injustiça. A quem tem algum preconceito contra os pobres que levantam a cabeça, se unem, se organizam e partem para a luta pelos seus sagrados direitos humanos, sugiro: Vá visitar o povo nas ocupações", escreve Gilvander Moreira, Frei e padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais, em artigo.
Eis o artigo.
Dias 11 e 12 de maio último (2012), a Polícia Militar de Minas Gerais, com um fortíssimo aparato repressor – mais de 400 policiais, com cavalaria, tanque de guerra (caveirão), cachorros e muitas armas – despejaram 350 famílias sem-casa e sem-terra da Ocupação Eliana Silva, no Barreiro, em Belo Horizonte, MG. O povo resistiu 36 horas e, extenuado fisicamente, saiu do terreno, mas saiu de cabeça erguida.
As famílias comeram o pão que o diabo amassou após esse despejo. Muitas pessoas tinham perdido emprego, porque apostaram na Ocupação. Outras não puderam voltar para os aluguéis de antes. Arranjaram-se novamente debaixo da cruz do aluguel, que é um espinheiro, ou, se humilhando novamente, pediram guarda em casas de parentes ou de amigos/as. Mas o povo não se dispersou. Semanalmente continuou se reunindo. Pouco a pouco o trauma do despejo foi sendo elaborado existencialmente. As lideranças do MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – sacudiram a poeira, avaliaram os acertos e os erros e, junto com as famílias, tomaram a decisão de dar a volta por cima e retomar a luta.
Premidas pela necessidade, algumas famílias sem-terra e sem-casa ocuparam nos últimos dias um grande terreno abandonado há mais de 40 anos, ao lado da Vila Santa Rita, no Barreiro, em Belo Horizonte. Sabendo dessa lenta ocupação, na madrugada do dia 25 de agosto de 2012, mais de 300 famílias sem-casa, de forma organizada, entraram também para dentro da mesma área.
A polícia militar chegou ao raiar do dia e iniciou-se uma grande tensão que rondou até o início da tarde. Houve risco de massacre. Advogados, lideranças e apoiadores foram presos de forma ilegal, pelo simples motivo de estarem ali apoiando os pobres que lutam pelos seus direitos. Um apoiador que tentou entrar com uma caixa de pão para alimentar as crianças foi agredido e preso por policiais. A caixa de pão foi jogada no chão. Muitos policiais agiram de forma truculenta e arrogante. São calúnias as acusações que policiais colocaram no Boletim de Ocorrência para justificar as prisões. Um conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos – CONEDH - e membro da Comissão Pastoral da Terra foi agredido verbalmente e fisicamente por militares. Teve a calça rasgada e saiu com escoriações no pescoço.
Um capitão que estava comandando a operação nas primeiras horas revelou-se muito nervoso e sem equilíbrio emocional, requisito imprescindível ao exercício de autoridade nesses momentos de conflito. Não aceitou conversar com lideranças que estavam lá tentando negociar e intermediar uma saída que fosse justa e pacífica. Negou-se a atender ao telefone a Sub-defensora Geral da Defensoria Pública do estado de Minas Gerais.
Foi injusto também o grande aparato repressivo usado. Mais de 100 policiais (do GATE, GEPAR, Tropa de choque etc), inclusive, helicóptero com vôos rasantes. Congelamento da área. Muitas pessoas que queriam se solidarizar foram impedidas de entrar na ocupação. Houve vários abusos de autoridade por parte de alguns policiais. Infelizmente, o militarismo ainda está muito arraigado em integrantes da polícia. É triste testemunhar o tanto que usam e abusam da autoridade. Tornam-se autoritários e, assim, pisam na dignidade do povo pobre que está ali lutando por direitos humanos, que são direitos sagrados. “Queremos apenas um pedacinho de terra para construirmos uma casinha para a gente viver. Não queremos nenhuma mansão. Somos humanos, não somos cachorros. Por que não podemos viver com dignidade?”, cobrou dona Maria, uma indígena do povo Pataxó, que após ser expulsa por latifundiários da terra do seu povo lá no Sul da Bahia, teve que tentar a vida na grande cidade com sua família. Agora, ao lado de outros 26 parentes Pataxós participam da nova Ocupação Eliana Silva.
É principalmente a necessidade que anima os pobres para se unirem e ocupar terrenos abandonados. É bom lembrarmos que o déficit habitacional em Belo Horizonte está acima de 150 mil casas. O prefeito Márcio Lacerda não fez nenhuma casa para famílias de zero a três salários-mínimos pelo Programa Minha Casa Minha Vida. O Programa Vila Viva, que em grande parte é Vila Morta, expulsa para a periferia da região metropolitana 40% das famílias que estão em favelas onde o Programa se instala. As famílias reassentadas em apertamentos, em “caixotes” conforme o povo diz, não agüenta ficar ali por vários anos. No 1º dia de inscrição para o Programa Minha Casa Minha Vida, há 3,5 anos, 198 mil famílias se cadastraram. A Prefeitura constrói, no máximo, mil casas por ano. Assim, serão necessários quase 200 anos para zerar o déficit habitacional na capital mineira.
É bonito ver a organização interna da nova Ocupação Eliana Silva. O povo está organizado em Núcleos e há muitas Comissões trabalhando: a) de Estrutura, b) de Segurança, c) de Creche, d) de Limpeza, e) de Coordenação, f) de Cozinha, g) de Doações, h) de Comunicação, i) de Apoio externo etc. “Somos uma só família”, dizem todos.
Ao participar do soerguimento de Eliana Silva - Ocupação Eliana Silva ressurgindo das cinzas -, retomando a luta, “metendo o pé no barranco”, para transformar a sexta-feira da paixão, que foi o despejo dias 11 e 12 de maio último, em um domingo de ressurreição, com os olhos do coração, vi cenas inesquecíveis: garra, coragem, união, solidariedade, audácia, entre as quais, a descrita no depoimento de Paulo Silvestrini, que transcrevo, abaixo.
“Hoje (25/08/2012) reergueu-se Eliana Silva. Em uma batalha muito forte: homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, resistiram às investidas de uma polícia violenta, formando com o próprio corpo um cordão humano para conter o avanço das tropas. Policiais agindo com total desrespeito aos direitos humanos, visando a destruição do acampamento, ameaçaram a integridade física de quem estava lá, chegando a agredir com empurrões, prisões sem fundamento, e verbalmente com deboches e ameaças.
Eu nunca havia participado de uma ocupação e até certo momento não estava muito certo do que estava fazendo. Estava amedrontado, temendo por minha vida e pensando se aquilo realmente valia a pena. Foi quando enquanto segurava uma faixa, percebi que ao meu lado uma criança de mais ou menos 8 anos, veio por conta própria segurá-la. A frente dos policiais, olhava para eles fixamente. Um olhar firme e determinado. Um olhar de quem não tinha mais nada a perder, de quem foi abandonado, assim como o terreno em que pisava, por um governo corrupto, por uma sociedade miserável. Fisicamente, tudo o que ele tinha contra aquele batalhão com cassetetes, armas de fogo e escudo, era o seu pequeno e frágil corpo. Mas o que ele tinha por dentro o fazia maior que qualquer outro homem fardado naquele local. Chorei naquele momento e pensei: esse menino não tem para onde ir, mesmo se eu me machucar aqui, daqui a algumas horas voltarei para o conforto da casa onde moro, e ele? Se não fosse retirado a força no mesmo dia, teria de continuar no acampamento debaixo de uma lona, temendo a todo instante um ataque policial.
Depois daquele instante integrei o cordão humano chegando a ficar frente a frente com a tropa de choque. Não havia mais em mim traços daquele ser egoísta de antes, estava determinado a morrer, pois, do que para mim valeria continuar levando uma vida ignorante, negando a realidade, vivendo uma falsa felicidade.
Hoje (25/08) também é o dia do meu aniversário. Recebi meu melhor presente naquele terreno acidentado. Estar ao lado das pessoas da Ocupação Eliana Silva, ser uma delas. Tenho orgulho de dizer: Sou Eliana Silva!”
Eu também, Paulo, tenho orgulho de dizer: Sou Eliana Silva. Sou MLB. Se mexer com a nova Ocupação Eliana Silva, mexerá comigo e com muita gente que se comove com a dor dos empobrecidos e fica possuído por uma ira santa diante de tanta injustiça. A quem tem algum preconceito contra os pobres que levantam a cabeça, se unem, se organizam e partem para a luta pelos seus sagrados direitos humanos, sugiro: Vá visitar o povo nas ocupações. Puxe conversa, ouça e você experimentará o que Jesus de Nazaré viu e se alegrou exclamando: Quanta sabedoria! Enfim, a Ocupação Eliana Silva ressurgiu das cinzas e seguirá lutando pela construção de um mundo que caiba todos e tudo.
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Ocupação Eliana Silva ressurge das cinzas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU