15 Agosto 2012
A Argentina e o Uruguai estão em conflito. Não é a primeira vez, levando em conta o efeito geladeira da disputa pelas papeleiras. Desta vez, os protagonistas são apenas os dois governos, sem minorias ambientalistas ou ex-governadores dispostos a que tudo exploda. O centro da briga se chama Riovia, uma empresa que draga o canal Martín García no Rio de la Plata, vital para o porto de Montevidéu, e aspira continuar no futuro se ganhar a licitação convocada por uma comissão formada pelos dois países.
A reportagem é de Martín Granovsky, publicada pelo jornal Página/12 e reproduzida por Carta Maior, 14-08-2012.
A Argentina e o Uruguai estão em conflito. Não é a primeira vez, levando em conta o efeito geladeira da disputa pelas papeleiras. Mas três fatores fazem com que o conflito atual seja mais gratuito do que aquele. Um, que os protagonistas são apenas os dois governos, sem minorias ambientalistas ou ex-governadores dispostos a que tudo exploda. Outro, que o Uruguai é presidido por Pepe Mujica, um político sensível para interpretar as virtudes e os defeitos da Argentina, mas ao mesmo tempo inteligente para pôr a relação acima de fofocas. E o terceiro, que o conflito se produz justamente quando a Argentina e o Uruguai, junto com o Brasil, conseguiram a incorporação plena da Venezuela ao Mercosul e, portanto, o novo mercado comum nasce com um ruído incômodo.
O Uruguai não é nenhuma maravilha. Um país onde uma ditadura manteve presos políticos durante 12 anos, dois desses enterrados num buraco, deve ter algum curto-circuito.
O Uruguai tem algumas maravilhas. Um desses presos do buraco é Mujica, presidente desde 2010, que jamais esquece, mas como tantos dirigentes lúcidos da Argentina, não usa o sofrimento próprio e de seus companheiros para se autoglorificar, mas para refletir. Em uma entrevista com o jornalista Lucho Soria, do semanário “Brecha”, reproduzida na web pelo sítio argentino El Historiador, Mujica disse: “o que vou dizer pode ser sentido, aparentemente, como uma monstruosidade... Dou graças à minha vida pelo que vivi, porque se não houvesse passado esses anos, a aprender o ofício de galopar para dentro para não ficar louco de pensar, teria perdido o melhor de mim. Obrigaram-me a remover meu chão e por isso me fiz muito mais socialista do que antes”. E agregou: “O homem não é ele, o homem é filho das peripécias, das adversidades. Alguns tivemos a sorte de que a vida nos apertou, mas não nos fulminou. Nos deu licença para continuar vivendo e em alguma medida colher o mel que pudemos produzir no marco das amarguras. Se não, nunca teríamos fabricado esse mel...”.
Com uma população que o censo de 2011 estabeleceu em 3.286.314 pessoas (51,99% mulheres e 48,01% homens), o Uruguai aumentou em apenas 45.311 pessoas desde o censo de 2004. Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas, a população continua envelhecendo e a emigração pode ter diminuído. Se alguém lê, por exemplo, o jornal “La República” de sábado (11), verá tendências comuns a outros países, incluindo a Argentina. Uma notícia dá conta de marchas em todo o Uruguai contra a violência doméstica, que este ano cobrou 19 mortes entre 12 mil vítimas, 20% mais que no mesmo período de 2011.
É o mesmo país cujo presidente acaba de enviar ao Parlamento um projeto que regula e controla a produção e comercialização da maconha “para efeitos de contribuir na redução dos riscos e danos potenciais aos que se submetem aquelas pessoas que usam maconha com fins recriativos ou medicinais, os quais, por ter que se abastecer no mercado ilegal, se vêm denigrados e envolvidos em atividades delitivas e em práticas com alto risco, se expondo assim, também, a entrar em contacto com o consumo de drogas toxicologicamente mais arriscadas, como é o caso da pasta base de cocaína, entre outras”.
Esse país vizinho costuma ser endeusado porque, diferente da antropofagia política argentina, seria o paraíso do consenso, da continuidade política e da homogeneidade entre a Frente Ampla, os colorados e os brancos. Mas, além de que seguidamente o consenso como fetiche disfarça espíritos conservadores, no caso uruguaio se trata de puras bobagens sem fundamento. Mujica é atacado pela oposição sem piedade, como em qualquer país do mundo, a tal ponto que a presidenta da Frente Ampla, a senadora socialista Mónica Xavier, disse que “tudo o que acontece, a oposição analisa em termos de campanha eleitoral”. Xavier esclareceu que a Frente “deve dizer rotundamente que não estamos em campanha eleitoral”.
O ruído dentro do ruído entre a Argentina e o Uruguai se chama Riovia. É uma empresa de capitais holandeses que draga o canal Martín García no Rio de la Plata, vital para o porto de Montevidéu, e aspira continuar no futuro se ganhar a licitação recém convocada por uma comissão binacional formada pelos dois países.
É sabido que, com um atraso de dois anos e sem elementos, um ex-embaixador uruguaio na Argentina, o diplomata de carreira Francisco Bustillo, denunciou supostos subornos em torno da Riovia e da dragagem. Também sabem os funcionários de ambos os países, segundo pode confirmar Página/12 com funcionários que pediram anonimato, que não só a Cristina Fernández de Kirchner caiu mal ter sabido tarde uma decisão do Tribunal de Contas do Uruguai segundo a qual, na Comissão Administradora do Rio de la Plata, se produziram “situações que permitem irradiar dúvidas sobre a regularidade dos procedimentos”. Também houve atraso na circulação interna do relato dentro do governo uruguaio.
A Argentina havia invalidado a pré-qualificação de Riovia e havia questionado, em um comunicado da Chancelaria impensável sem o aval da Casa Rosada, quem protege a empresa. Houve vários comunicados mais sobre o tema, muitos deles enquanto coletavam os dados sobre relações supostas ou reais entre o vice-presidente Amado Boudou e os donos da ex Ciccone, a gráfica predileta do masserismo em 1978, que agora está a ponto de ser estatizada. Terá jogado nos comunicados um sentimento de irritação por parte da Presidência ante um escândalo como o de Riovia, o qual poderia carecer de um pé argentino? É uma especulação sem resposta certa, ainda que não seria conveniente deixar de explorar a pergunta.
A última novidade pública no conflito é que o chanceler uruguaio Luis Almagro se apresentou perante a Justiça de seu país para dissipar toda sombra de dúvida. Uma interpretação é que a apresentação aponta para a tentativa de salvar a honra de Bustillo, o amante da importação para a Argentina de carros esportivos com documentação falsa.
Outra possível leitura: que se a Justiça não encontra nada concreto, Bustillo se torne desacreditado e talvez a Riovia, empresa com a qual o diplomata entabulou boa relação, termine perdendo um amigo de peso.
Até que a Justiça se expresse, a questão é o enquanto isso.
Chance número um: O Uruguai e a Argentina giram em falso e cada um dispara um tiro no próprio pé. Esse seria o sentido de instalar um atrito forte e duradouro de dois sócios e vizinhos no exato instante em que parece melhor, muito melhor, investir a energia em um Mercosul resetado.
Chance número dois: Pepe e Cristina fecham este capítulo enquanto no Uruguai os juízes investigam a Riovia e na Argentina a Justiça pesquisa os bastidores da propriedade da Companhia Sudamericana de Valores, o último nome de fantasia da Ciccone. Ao mesmo tempo, o Estado aproveita a ocasião e manda aos livros de história a política imposta por Armando Gostanián segundo a qual a Casa da Moeda não tinha êxito nas licitações sobre bilhetes porque, simplesmente, procurava o fracasso. Justiça trabalhando e reversão do modo de imprimir bilhetes seria (é?) uma combinação curativa que aliviaria os ânimos e os predisporia para questões mais agradáveis. Ou não importa mais uma linda conversa entre Cristina e Pepe que, digamos, um diálogo entre Francisco Bustillo e Alejandro Vandenbroele?
Como diria o personagem do conjunto Les Luthiers: “¡Haya paz!”.
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Argentina e Uruguai, uma péssima hora para brigar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU