13 Agosto 2012
O mate passa de mão em mão entre os seis plantonistas que atravessaram a noite na estrada que leva ao chamado Cordão de Famatina, conjunto de montanhas de picos gelados localizado no interior da província de La Rioja, na Argentina.
São 10 horas da manhã e a temperatura começa a aumentar um pouco. Durante a noite, eles enfrentaram um frio de -3ºC, numa cabana sem calefação.
"Não há dúvida de que tínhamos que estar aqui, e vamos seguir até que deixem o 'Fama' em paz", diz a professora aposentada Andrea Crabbe à Folha.
A reportagem é de Sylvia Colombo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 12-08-2012.
Os moradores da vila de Famatina, um povoado que existe desde o Império Inca e que hoje conta com 6.700 habitantes, estão otimistas.
Nos últimos anos, eles conseguiram expulsar três empresas estrangeiras de mineração que tentaram tirar ouro do local.
Primeiro, foi a canadense Barrick Gold, depois, a chinesa Shandong Gold. Agora, acabam de obter a suspensão das atividades da também canadense Osisko Mining Co.
As três haviam obtido um acordo com o governo da província de La Rioja, mas não respeitaram a Lei de Glaciares, que exige que todo lugar onde exista um glaciar que provê água para uma região seja mapeado.
Se houver algum risco de desabastecimento ou contaminação, o local não poderá ser explorado. No caso de Famatina, toda a água para a agricultura e para o consumo da população vem dessas montanhas.
HIPPIES
As empresas dizem que não haveria interrupção do acesso ao recurso, mas a população se baseia na análise de ambientalistas e de cientistas, que dizem que a exploração a céu aberto acarretaria a liberação de cianureto e outras substâncias que são nocivas à saúde.
"A mineração em Famatina é ilegal, não há maneira que se instale sem afetar os glaciares", diz Daniel Taillant, diretor do Centro de Direitos Humanos e Ambiente. A reportagem tentou ouvir a Osisko, mas não obteve resposta.
Por meio de manifestações e de ações na Justiça, os famatinenses conseguiram impugnar os três projetos.
Atualmente, a Osisko e o governo regional, com o apoio da presidente Cristina Kirchner, seguem tentando reverter a última decisão da Justiça de Chilecito (cidade a 30 km de Famatina), onde tramitam as causas.
"É por isso que não vamos sair daqui. Está quase ganha, mas ainda há um risco, e os adversários são muito poderosos", explica o agricultor José Maria Akerman, descendente de alemães.
No acampamento, os moradores de Famatina se revezam. Há uma tabela que estabelece turnos de seis horas, que vêm sendo cumpridos há sete meses consecutivos.
Ao lado da concentração da comunidade local, estão os que eles chamam de "hippies", grupos de ambientalistas de diversas partes da Argentina que se somaram à causa.
Os cartazes sinalizam a presença de representantes de Buenos Aires, Tucumán, La Pampa, Córdoba, San Juan e outros.
"Sou da capital, mas sou argentino, portanto essa causa é minha também", diz Rubén Ferreyra, estudante da Universidade de Buenos Aires, enquanto escova os dentes num riacho que desce de um dos glaciares.
ALERTA DO PADRE
Se um veículo relacionado à Osisko ou ao governo regional tenta atravessar o bloqueio, eles impedem. Imediatamente, mensagens de texto são enviadas ao povoado, que está a 15 km do local. Em especial, buscam o padre Omar Quinteros. Este faz com que soem os sinos da Igreja, e os moradores sobem a estrada para somar-se à barreira.
Mesmo pertencendo ao Partido Justicialista (peronista), o mesmo do governador e da presidente Cristina, o prefeito de Famatina está sofrendo retaliações por apoiar a causa popular.
"Não me enviam recursos há sete meses para me pressionar. Eles querem que eu desista e passe a apoiar a mineração", relata Ismael Bordagaray.
"A questão é que nem o governador nem a presidente conhecem a região", prossegue o prefeito.
"Dizem que a mineração traria desenvolvimento. Porém, nas províncias próximas, como Mendoza, Catamarca e San Juan, onde esses projetos estão instalados, só vejo subdesenvolvimento e pobreza", afirma.
Padre apoia causa e compra briga com bispo da província
No último domingo, o padre Omar Quinteros, há cinco anos responsável pela paróquia de Famatina e outros oito povoados das montanhas de La Rioja, viu caras novas entre os fiéis.
"Eram uns 30, estavam enfezados. No fim, eles saíram dizendo que estavam vigiando o 'padre antimineiro'. Claramente queriam me assustar."
Alguns fiéis foram questioná-los e descobriram que se tratava de um grupo de trabalhadores das minas da região, atualmente sem emprego. Disseram que passariam a ir sempre à missa "só para saber se o padre estava usando os sermões para fazer política".
Quinteros conta que a ameaça não é o único preço que está pagando por apoiar os habitantes de Famatina. Seu superior, o bispo de La Rioja, já avisou que ele será transferido.
Também houve pressão para que fosse impedido de soar os sinos para convocar as mobilizações, mas sem sucesso.
Acusado por seus opositores por um comportamento anticlerical, ao defender uma causa política, Quinteros se defende: "a questão é social. A igreja deve se posicionar em defesa da vida, e aqui em Famatina isso quer dizer lutar pela não contaminação da água", contou à Folha.
Por detrás de grossos óculos, o religioso discorre sobre o que considera os males da atividade, sem poupar críticas ao governador da província, Luis Beder Herrera.
Desde o começo do ano, Quinteros é um membro atuante dos protestos. Ajuda a organizar as manifestações, convoca fiéis nas missas por meio dos sermões e dá entrevistas.
"A América Latina sempre teve padres engajados em causas públicas, é uma tradição do continente."
Apesar de otimista com os resultados, ele se diz preocupado com a região.
"O dinheiro não chega às províncias. O que se sente aqui é uma solidão muito grande para enfrentar os problemas, dos concretos aos espirituais. Temo que as coisas fiquem feias e não se possa conter a violência social."
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Aldeia rebelde. Povoado nos picos gelados da Argentina resiste a mineradoras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU