24 Julho 2012
Com o objetivo de prestar um serviço para a ciência brasileira, o Laboratório de Modificação do Genoma (LMG), coordenado pelo médico José Xavier Neto, localizado em Campinas (SP), começou neste mês a receber encomendas de animais geneticamente modificados para pesquisas médicas e biológicas de variadas áreas.
A reportagem é de Herton Escobar e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 22-07-2012.
O laboratório do médico José Xavier Neto está cheio de roedores. Cerca de 2 mil camundongos, acomodados em modernas "gaiolas" de plástico transparente, do tamanho de uma caixa de sapatos, com entrada e saída de ar individuais. Por fora, parecem todos iguais. Limpinhos, impecáveis e ativos, correndo de um lado para outro como personagens curiosos de um desenho animado. Por dentro, porém, há diferenças essenciais entre eles. São animais transgênicos, que tiveram um ou mais de seus genes modificados antes de nascer.
Inaugurado em setembro de 2010, como parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, em Campinas, o Laboratório de Modificação do Genoma (LMG) - que Xavier coordena - foi criado para prestar um serviço essencial à ciência brasileira: a produção de modelos animais geneticamente modificados. Uma ferramenta básica para o avanço das pesquisas médicas e biológicas de diversas áreas, mas historicamente muito pouco usada no Brasil.
"Estamos falando de uma tecnologia que existe desde 1981", ressalta Xavier, referindo-se ao ano em que foram produzidos os primeiros camundongos transgênicos no mundo. Desde então, o genoma do camundongo já foi completamente sequenciado e praticamente todos os seus genes - 95% dos quais são iguais aos do homem - já foram modificados de uma forma ou de outra para a investigação de processos biológicos básicos e aplicados a doenças humanas.
Só o Laboratório Jackson, um dos maiores fornecedores de camundongos transgênicos do mundo, nos EUA, tem um catálogo com mais de 6 mil variedades e vendeu, só no ano passado, mais de 3 milhões de animais para pesquisadores de 56 países.
No Brasil, porém, a "moda" não pegou. O primeiro camundongo transgênico do País só foi produzido em 2000, na Universidade de São Paulo (USP), e mesmo depois disso nunca se estabeleceu um serviço de produção de linhagens capaz de abastecer a ciência nacional. O jeito é importar linhagens prontas (solução cara e burocrática), desenvolver linhagens próprias (inviável para a maioria dos laboratórios) ou se limitar a fazer pesquisas in vitro (solução mais simples, porém de menor impacto científico). "Definitivamente perdemos o bonde dessa tecnologia", diz Xavier. "Não só ela não foi incorporada como não se desenvolveu uma cultura de usar esses animais aqui."
O LMG foi pensado para reverter esse quadro, operando simultaneamente como centro de pesquisa e prestação de serviços, produzindo animais transgênicos customizados para pesquisadores de todo o País. Se um cientista precisa de um animal transgênico, ele faz a encomenda, fornece as especificações, o LMG produz o animal e manda para ele. Tal qual um escritório de engenharia executa um projeto para um arquiteto. Só que a engenharia, neste caso, é genética. E a arquitetura, biológica.
As duas primeiras encomendas - feitas por Lygia Pereira, da USP, e Francisco Laurindo, do Instituto do Coração (Incor) - começaram a ser produzidas neste mês. O serviço é gratuito para projetos de pesquisa pública.
Antes de abrir o balcão, porém, o LMG já produziu cerca de 50 linhagens de camundongos transgênicos, utilizando nove genes diferentes, para projetos de pesquisa internos do laboratório. Vários deles, voltados para pesquisas cardíacas, relacionadas ao desenvolvimento e ao funcionamento do coração - herança, em parte, dos 21 anos em que Xavier foi pesquisador do Incor.
Outras 15 linhagens foram importadas do Laboratório Jackson, por US$ 6,5 mil (cerca de US$ 230 por animal). O Estado presenciou a chegada das últimas quatro, no início do mês: oito camundongos em uma caixa de plástico com comida e água em forma de gel. São animais com um grau a mais de complexidade transgênica. Eles têm uma enzima no organismo que funciona como um interruptor molecular, que permite aos cientistas ligar ou desligar as modificações genéticas onde e quando desejarem. Por exemplo: só no tecido cardíaco ou só na fase adulta do animal.
A ideia é cruzar esses bichos com as linhagens customizadas do laboratório, combinando o interruptor já embutido nos pais com os genes que serão colocados no genoma dos filhos. "O bicho já vem com o interruptor, a gente só acrescenta a lâmpada", compara Xavier.
Engenharia genética. Para produzir os animais transgênicos, os cientistas injetam em seus embriões pedaços de DNA especialmente montados em laboratório (chamados "construções"), contendo o gene de interesse da pesquisa e uma série de outros códigos genéticos associados ao seu funcionamento.
Seja qual for o método aplicado, a ideia é que essa construção se integre ao genoma do embrião e passe a funcionar como se fosse parte original dele - algo como embutir um software genético no sistema operacional do bicho. Dependendo do que estiver escrito nesse software, ele pode executar uma série de funções, como inibir a ação de algum outro gene ou ordenar a superexpressão de uma proteína cuja função os cientistas desejam estudar. "O limite é a imaginação do pesquisador", diz Xavier.
Manipulações que não podem ser feitas em seres humanos. Mas que, pela semelhança genética entre homens e camundongos, podem dar contribuições diretas para o conhecimento da biologia humana e para a cura de doenças.
As ninhadas primogênitas das duas primeiras encomendas são esperadas para outubro.
Modelos são essenciais para a biomedicina
"Antes tarde do que nunca", diz a pesquisadora Lygia Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Doze anos atrás, recém-chegada de um doutorado nos Estados Unidos, ela foi a primeira a produzir um camundongo transgênico no Brasil, por uma técnica que envolve a injeção de células-tronco geneticamente modificadas em embriões. Hoje, professora titular da universidade, ela comemora a criação do Laboratório de Modificação do Genoma (LMG) e lamenta o fato de poucos cientistas no País fazerem uso dessa tecnologia.
"Espero que as pessoas tomem consciência da importância dessa ferramenta e comecem a planejar suas pesquisas de forma mais ambiciosa", diz Lygia. "Se esse serviço funcionar e os pesquisadores fizerem uso dele, poderemos dar um salto enorme de qualidade na ciência brasileira."
"Alguém tinha de fazer isso. Esses modelos transgênicos são essenciais para reduzir o tempo e o custo do desenvolvimento de novos medicamentos", aplaude, também, João Bosco Pesquero, do Departamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo.
O camundongo produzido por Lygia, em parceria com Jose Antonio Visintin, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, tinha um gene defeituoso introduzido em seu DNA para simular a síndrome de Marfan, doença genética que afeta 1 em cada 5 mil seres humanos. O animal original, batizado de Christian, já morreu faz tempo, mas seu genoma transgênico continua vivo em seus descendentes, que Lygia até hoje utiliza como modelos para estudar as bases moleculares da doença e testar drogas capazes de minimizar seus efeitos no organismo. Com resultados bastantes promissores.
Seu próximo projeto é ir mais fundo ainda na biologia básica da doença, para entender como a fibrilina (a proteína que é produzida de maneira defeituosa nos portadores de Marfan) atua no desenvolvimento embrionário. Para isso, ela encomendou ao LMG a produção de um camundongo transgênico com os genes da fibrilina totalmente desligados.
"A melhor maneira de entender o que um gene faz é retirá-lo do genoma e ver o que acontece", explica o coordenador do LMG, José Xavier Neto. Imagine, por exemplo, que você queira entender o que faz uma peça de um carro. Uma boa estratégia para isso é retirá-la e ver como o carro funciona sem ela.
Tanto Lygia quanto Pesquero tentaram estabelecer serviços próprios de produção de modelos transgênicos, mas ambos fracassaram, citando amarras administrativas do serviço público, dificuldades logísticas e falta de interesse da comunidade científica. "Fizemos algumas dezenas de modelos, mas ficou por isso mesmo. As dificuldades eram tantas que acabei desistindo", conta Pesquero, que, em 2002, gerou o primeiro camundongo transgênico brasileiro pela técnica de microinjeção pró-nuclear. "Hoje você tem funcionário, amanhã não tem mais. Hoje tem dinheiro, amanhã não tem mais. Na academia é tudo muito amador."
Pesquero agora utiliza cinco modelos de ratos e camundongos transgênicos para estudar a ligação entre obesidade e diabetes - alguns produzidos por ele mesmo, outros importados. "Sem esses animais a pesquisa não existiria", diz ele. "Ou até existiria, só que num nível de detalhamento muito menor."
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País inicia produção de animais transgênicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU