Por: Cesar Sanson | 09 Julho 2012
"As últimas semanas não foram fáceis para o presidente uruguaio. Em pouco mais de um mês perdeu uma eleição interna, viu ressurgir das cinzas seu arquirrival político, suportou críticas de seu vice-presidente, às quais se somaram as de seus opositores, e teve que aguentar a deslealdade ou falta de compromisso de um homem que ocupa um posto chave em seu governo, nada menos que o de chanceler. E tudo isso, em grande parte, por abraçar o sonho da integração regional". O comentário é de Santiago O’Donnell em artigo no Página/12 e reproduzido por Carta Maior, 08-07-2012.
Eis o artigo.
É impossível saber daqui o que estará se passando pela cabeça de Pepe Mujica, mas é certo que estas últimas semanas não foram fáceis. Em pouco mais de um mês perdeu uma eleição interna, viu ressurgir das cinzas seu arquirrival político, suportou críticas de seu próprio vice-presidente, às quais se somaram as de seus opositores, e teve que aguentar a torpeza, deslealdade ou falta de compromisso de um homem de suas fileiras que ocupa um posto chave em seu governo, nada menos que o de chanceler.
E tudo isso aconteceu em grande parte por abraçar o sonho de Artigas da integração regional, em um momento no qual muitos de seus compatriotas veem com receio e desconfiança seus aliados Argentina e Venezuela e dão a entender que preferem políticas mais próximas ao liberalismo econômico que se referencia nos Estados Unidos.
No dia 27 de maio, os candidatos de Mujica foram derrotados na interna da Frente Ampla e como resultado disso cresceu a figura de seu principal rival interno, o ex-presidente Tabaré Vázquez, cuja candidata Mônica Xavier (Partido Socialista) ganhou com folga as eleições. Xavier obteve 36% dos votos, contra o candidato a linha interna de Mujica, Ernesto Agazzi (MPP), que conseguiu 19%. O outro candidato que apoia Mujica, Enrique Rubio (da Vertente Artiguista), obteve 15%, enquanto que Juan Castillo, o candidato comunista, somou 13% e os votos em branco alcançaram uma cifra recorde de mais de 16%.
Foi um resultado muito ruim para o presidente uruguaio, levando em conta que, na interna de 2009, o MPP venceu e Mujica fez 52% dos votos. No mês passado, somando-se os votos de Xavier com os votos em branco, mais da metade dos militantes da Frente Ampla expressaram sua contrariedade com a condução do presidente uruguaio. “Y ya lo ve y ya lo ve, el presidente es Tabaré.” Ovacionado, aplaudido de pé, assim ingressou Vázquez no Plenário Nacional da Frente Amplia para presenciar a posse de sua correligionária socialista Mônica Xavier como presidenta da coalizão, no sábado passado, no Clube Democrático de Florida.
Vázquez deixou a presidência uruguaia em 2010 com um alto índice de popularidade, impossibilitado pela Constituição para disputar mais uma vez a presidência. Mas no ano passado havia anunciado sua “aposentadoria” da política para apagar o fogo causado pelas divulgações do Wikileaks. Os telegramas revelaram que Vázquez havia pedido ajuda a Bush para uma eventual guerra contra a Argentina e seu odiado Néstor Kirchner por causa do conflito nas papeleiras no rio Uruguai.
Em seu discurso do sábado passado, Mônica Xavier agradeceu e dedicou seu triunfo a Tabaré. Os jornalistas foram para cima do ex-presidente para perguntar se sua “aposentadoria” tinha terminado. Um dado que não é menor já que, segundo as pesquisas, com Wikileaks e tudo, Vázquez é o político mais popular do Uruguai.
“Estamos longe de falar de candidaturas, mas estou aqui neste plenário da Frente”, disse Vázquez ao jornal El País, de Montevidéu. Malicioso, comparou sua participação no plenário da Frente Ampla, da qual é membro permanente, com a “volta do Progresso à primeira divisão do futebol uruguaio, clube do qual é torcedor”.
Além de servir de cenário para a dramática reaparição de Vázquez, a eleição interna impulsionou a figura de outro rival interno de Mujica, o vice-presidente Danilo Astori, ex-ministro da Economia de Vázquez e emergente do Partido Liberal que faz parte da Frente Ampla, chamado Frente Líber Seregni. Essa frente se impôs na votação por partidos, com 19%, ficando atrás apenas do MPP e do Partido Socialista. A margem foi mínima, mas o crescimento foi importante e diversos meios de comunicação uruguaios que cobriram a eleição coincidiram em destacar que Astori saiu fortalecido.
Neste contexto ocorreu o golpe parlamentar contra Lugo, a decisão do Mercosul de suspender o Paraguai e, quase no mesmo ato, a aprovação da incorporação da Venezuela como membro pleno do organismo regional. Para Mujica, certamente, o momento não foi muito oportuno.
Astori representa uma linha de pensamento. Como ministro de Economia, tentou impulsionar sem êxito um tratado de livre comércio com os Estados Unidos. Ele foi e segue sendo muito crítico às assimetrias no Mercosul entre os países maiores e os menores. Fala mal de Chávez. Dentro da aliança governista, representa o setor mais próximo do capital financeiro. No ano passado, se opôs a um imposto sobre os latifúndios proposto por Mujica e os dois terminaram negociando.
Já com Almagro, a questão é outra. O chanceler Luis Almagro é do MPP, a linha interna de Mujica, e foi assessor de Mujica no Ministério da Agricultura durante o governo de Vázquez. Ele era considerado um aliado incondicional de Pepe. Mas foi Almagro que disse que a incorporação da Venezuela ao Mercosul “não está firme” poucas horas depois que os presidentes do Uruguai, Brasil e Argentina tinham anunciado a incorporação na cúpula de Mendoza. Também disse que Mujica havia sido pressionado pela mandatária argentina Cristina Kirchner e por sua colega brasileira, Dilma Rousseff, para abrir espaço no Mercosul ao país governador por Hugo Chávez.
As declarações de Almagro explodiram em todo Uruguai. A oposição fez uma festa. As forças de oposição se uniram para exigir uma interpelação do chanceler e pediram sua renúncia. Os Colorados anunciaram que retiravam seus representantes do Parlamento do Mercosul até voltassem os representantes paraguaios suspensos. Depois se uniram com os Blancos e fizeram uma segunda interpelação, desta vez para Almagro e o ministro da Defesa, pela presença supostamente não autorizada de militares não venezuelanos no Uruguai.
Animado pelos resultados da interna, Astori usou a oportunidade para levar mais água para seu moinho e saiu a opinar, em meio da tormenta, que a incorporação da Venezuela no Mercosul era uma “ferida” para os uruguaios.
Ante a enxurrada de críticas, a primeira reação de Mujica foi a de um político. Disse que, quanto mais pedirem a renúncia de Almagro, mas se empenharia em mantê-lo no cargo. Mas não se escutaram muitas vozes em defesa do presidente. Quem ficou na linha de frente dessa defesa foi a senadora nacional, liderança do MPP e mulher de Mujica, Lucía Topolansky, que refutou as declarações de Almagro e ratificou o apoio uruguaio à incorporação da Venezuela.
Então os socialistas moveram suas fichas. Mônica Xavier, como nova presidenta da Frente Ampla, visitou Mujica para reafirmar que, como presidente da República, ele segue sendo o líder do projeto político da Frente Ampla e que, como tal, tinha todo o apoio dela e de toda a coalizão. Além disso, afirmou que a Venezuela era “um tema superado”. Talvez tenha sido uma forma elegante de lembrar a Astori que serão aliados, mas que ele não representa os socialistas, cuja referência é, agora mais do que nunca, Tabaré Vázquez. E também de advertir Astori mais uma vez que a postura contra o Mercosul segue sendo minoritária dentro da Frente.
Na verdade, a incorporação de Venezuela foi aprovada pelos quatro países membros do Mercosul em 2006 e de novo em 2009, faltando apenas a ratificação do Senado paraguaio. Mas segundo um ex alto funcionário do Mercosul, conhecedor na intrincada arquitetura legal que surge dos distintos tratados e protocolos firmados, não era preciso o voto do Parlamento paraguaio. Os estatutos foram reformados, explicou essa fonte, para que a aprovação de três dos quatro países do Mercosul fosse suficiente para aprovar novas incorporações. “O que ocorreu em Mendoza é que tomaram a decisão política”, explicou o especialista. Ou seja, tinham o instrumento legal para agir sem a aprovação do Paraguai, mas nunca tinham o utilizado.
Mas não era a letra pequena do Mercosul que complicava Mujica e o fazia perder força dentro da Frente Ampla. Seu problema, diziam seus críticos, era a relação com Argentina e Venezuela. Era o fato de ter negociado com os chavistas e com os bloqueadores de pontes; de ter escolhido mal seus amigos. Na quinta-feira, Pepe não aguentou mais e veio a público contestar os críticos.
Disse que se sentia muito só na defesa da relação com a Argentina, que não é nenhuma novidade que os argentinos são difíceis, mas são os vizinhos que existem, que não é possível mover o Uruguai para outro continente, que é preciso negociar, negociar e negociar ou que alguém lhe mandasse a receita para fazer algo diferente. Afirmou ainda que os argentinas fizeram Punta del Este e grande parte do Uruguai, mas que lamentavelmente quando a Argentina joga futebol com a Alemanha os uruguaios torcem pela Alemanha. Ele pediu aos uruguaios que mudem um pouso essa mentalidade.
Em relação a Venezuela, Mujica esclareceu que não é o chavismo que está ingressando no Mercosul, porque os governos passam, vão e vem. Disse que o que foi aprovado é o ingresso de um país, um país com muito petróleo que o Uruguai precisa comprar, um país que demanda muitos alimentos que o Uruguai precisa vender.
É impossível, daqui, entrar na cabeça de Pepe, mas é possível imaginá-lo tomando mate no pátio de seu rancho de Rincão do Cerro, enquanto repassa o que fez de certo e errado após um mês bastante duro. Desde pequenas questões táticas como ir para a disputa interna com dois candidatos em vez de um, ou de não ter feito um acordo com os comunistas, até as grandes perguntas sobre coesionar a frente externa com a interna, e a questão de longo prazo envolvendo as eleições presidenciais de 2014.
Poderá sentir-se tranquilo com a saúde da Frente Ampla, com figuras respeitadas como Vázquez, Astori, Topolansky e Mônica Xavier, líder da campanha pela legalização do aborto. Todos eles garantiram a Mujica que sua formação política terá grandes chances de competir com êxito pelo poder nos anos vindouros e, deste modo, aprofundar as mudanças que vem sendo realizadas. Mas não será fácil para Mujica digerir a derrota na disputa interna e a falta de apoio a sua política externa.
Podemos imaginá-lo na porta de seu rancho, como mostra a foto de Gonzalo, com o olhar perdido no horizonte, mergulhado em sua memória. Com a recordação de sua condição de prisioneiro tupamaro na ditadura para ganhar ânimo, lembrando que saiu triunfante de situações piores.
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Mate amargo: o "fogo amigo" contra Pepe Mujica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU