25 Abril 2012
O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, considera que o Brasil, como anfitrião da Rio+20, deve assumir o papel de "construtor de consensos" durante a conferência, porque tem uma posição privilegiada na boa relação com países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em entrevista, Coutinho disse que o Brasil não tem uma "posição refratária" à proposta de criação de uma agência na ONU para cuidar do tema ambiental. "Tenho dúvida quanto a criar uma burocracia na ONU, se ela será eficaz para a agenda de eficiência do uso de energia".
A entrevista é de Daniela Chiaretti, Cristiano Romero e Alex Ribeiro e publicada pelo jornal Valor, 25-04-2012.
Luciano Coutinho acha que o momento global é ingrato para a conferência, porque os EUA estão centrados no debate político-eleitoral e "a Europa está um tremendo salseiro", pelos problemas econômicos. Mesmo diante desse quadro, segundo Coutinho, o Brasil precisa fazer o máximo para que a Rio+20 construa pelo menos uma agenda mais nítida para a política de sustentabilidade. "Falo no sentido estrito da palavra, de uma agenda que leve a iniciativas concretas de redução de consumo e de eficiência energética".
O presidente do BNDES afirmou que o potencial de melhoria da eficiência energética é "extremamente relevante e não tem sido devidamente priorizado", inclusive pelo setor privado. "Vejo muita cobrança da Rio+20 voltada para governos, mas estamos longe de construir uma verdadeira adesão do setor privado à sustentabilidade responsável, que permita reduzir a intensidade do uso de energia".
Ao responder pergunta sobre "economia verde", Coutinho preferiu citar o conceito de "green development", definido como o direito ao crescimento das economias em desenvolvimento com novos paradigmas, mais eficientes, com energia renovável e cuidados com a área social.
Eis a entrevista.
Um ponto crucial da economia verde, eixo da Rio+20, pressupõe corte dos incentivos aos combustíveis fósseis. O Brasil, com o pré-sal, não vai na contramão?
O petróleo é um recurso sujeito a um processo de depleção [esgotamento pela extração contínua de um recurso natural]. As reservas se exaurem à medida que há exploração. Para manter a produção estável, é preciso continuar investindo porque os poços tendem em geral a perder capacidade após certo período. No mundo inteiro, a estrutura atual de produção é sujeita a processos de depleção, portanto, isso demanda investimentos. Então, é possível perfeitamente projetar um crescimento na capacidade produtora e exportadora brasileira, sem que isso signifique que a fatia de combustíveis fósseis no consumo global ou no consumo brasileiro vá aumentar. Não é incompatível fazer um grande esforço de investimento e de capacidade produtiva e, ao mesmo tempo, aumentar, na oferta de combustíveis, a participação das energias renováveis. O pré-sal é a mais recente descoberta de grande escala. Com exceção das grandes reservas na Arábia Saudita, no Cazaquistão e no Irã, essa é a maior província. No planejamento de longo prazo da própria Petrobras, trabalha-se com a ampliação da participação de combustíveis renováveis. Essa é uma tendência global. Os incentivos colocados para energia eólica já a tornaram competitiva em vários países. Espero que, no futuro, outras formas de energia renovável possam se tornar competitivas e ocupar um espaço crescente. Por exemplo: a energia solar seria uma promessa muito interessante para um país como o Brasil.
Como as economias emergentes poderão se desenvolver em um mundo de sete bilhões de pessoas e caminhando rapidamente para nove bilhões, em que o consumo per capita terá que ser menor para fazer frente à pressão sobre os recursos naturais?
Podem se desenvolver e não se pode é negar o direito ao desenvolvimento, que era uma tese que estava implícita em algumas das colocações originais dos países desenvolvidos e que provocou tanta resistência. É possível reduzir a intensidade no PIB de uso de energia e conciliar desenvolvimento econômico com uma utilização mais eficiente da energia e/ou um aumento de participação de energias renováveis. Isso demanda mudança tecnológica. Algumas economias, a mais importante é o Japão, conseguiram reduzir nos últimos dez anos a intensidade energética do PIB. Outras economias relegaram esse processo. A China mudou de atitude.
Como?
Estrategicamente, começa a dar prioridade a uma agenda de poupança de recursos tanto de energia quanto de água. A China, pelo tamanho da população, tem de fato um problema de estresse sobre a água, que é tão importante quanto o de intensidade de energia. É um país que tem uma matriz energética altamente dependente de carvão e começou a mudar e a apoiar energias renováveis. O desembolso no ano passado dos bancos públicos para energias renováveis foi de US$ 45 bilhões, um investimento pesado.
É possível obter ganhos expressivos por meio de eficiência?
O potencial de melhoria de eficiência no uso de energia é algo extremamente relevante e não tem sido devidamente priorizado. Essa é uma agenda muito grande, que compreende, por exemplo, tornar mais eficiente o uso de energia em processos industriais. Envolve rever todos os eletrodomésticos. Houve uma notável melhoria nos últimos 20 anos de eficiência de consumo de energia na geladeira, mas isso não foi tão marcante em outros aparelhos, como máquinas de lavar louça e de lavar roupa, tanto em termos de poupança de energia quanto de água. É uma agenda que precisa ser induzida. A outra agenda importante é a de iluminação pública. Também tem um tremendo potencial. Tecnologia de edifício inteligente; sistemas mais inteligentes de automação de elevadores; processos industriais que emitam menos carbono e usem menos energia. Essa é uma agenda muito relevante e muito difícil. Ela precisa engajar o setor privado.
Por que é difícil?
Exige uma combinação de projeção tecnológica e um pouco de regulação. Não acredito que essa agenda venha, com a força necessária, só com base em uma adesão voluntária do setor privado. Muitas empresas têm usado o "label" [a marca] de que elas que são "green" [ecológicas]. Como não existe uma métrica nem um benchmark estabelecidos, você não sabe se isso é marketing ou é real. O primeiro problema é ter padrões de comparação técnica aceitos, porque também não se pode simplesmente impor. Só ter padrões não resolve. É preciso uma visão de engenharia de processo, uma engenharia de produto, que permita olhar para o futuro e estabelecer uma meta e isso tem que ser ao mesmo tempo factível. Um exemplo é a eficiência de motores automotivos. O governo americano jogou lá para frente uma meta, uma coisa muito bem construída. Então, esse é um tipo de padrão que, se você estabelece uma meta num mercado muito grande como o americano, que é um mercado para o qual o mundo inteiro produz, então, você consegue fazer um padrão global. É muito difícil você fazer isso num país só. Esse é um debate de eficiência que precisa de fato engajar o setor privado. Vejo muita cobrança da Rio+20 voltada para os governos, mas acho que estamos longe de construir uma verdadeira adesão do setor privado à sustentabilidade responsável, que permita reduzir a intensidade de uso de energia.
Como tocar essa agenda?
Ela deveria ser liderada pelos países desenvolvidos. Eles é que podem estabelecer um padrão que termine virando um padrão mundial. Eles é que têm a capacidade de desenvolver a tecnologia e de, eventualmente, de transferi-la. Claro que isso não nos absolve, indústria brasileira, de buscar desenvolver nosso próprio esforço de reduzir a intensidade de uso da energia na economia.
Um dos pontos da Rio+20 é estudar métricas e padrões e uma das áreas que podem ser alvo disso é a de energia.
Há três iniciativas dentro da ONU. Existe uma chamada "sustainable energy for all" [energia sustentável para todos]. Essa iniciativa primeiro pensa em incluir os pobres da África que cortam árvore para cozinhar ou usam fogão a diesel, a um custo enorme. É um "Luz para Todos" internacional. Custa pouco. É fundamental para reduzir pobreza e isso não vai poluir mais o mundo. Essas populações consomem energia de uma maneira também predatória.
Quais são as outras duas iniciativas da ONU?
Aumentar a fração das renováveis e elevar a eficiência no uso da energia. Estamos muito atrás. A agenda ficou paralisada pela resistência americana, durante um tempo pela resistência chinesa, mas curiosamente a China mudou. Do Plano Quinquenal anterior para o atual houve uma mudança qualitativa importante.
Que papel o senhor atribui ao setor privado nessa discussão?
O setor privado tem lideranças no mundo genuinamente preocupadas com a questão ambiental e com o aquecimento global e suas consequências. Mas não há massa crítica ainda e não tem adesão de governos para organizar isso. Os governos precisam fazer algo porque meio ambiente é uma tremenda falha de mercado. O mercado não consegue coordenar a questão ambiental.
No Brasil passamos muito tempo sem construir hidrelétricas. Retomamos isso a muito custo nos últimos anos e essa matriz é de energia renovável. Ainda assim, há um debate fortíssimo, por exemplo, sobre a construção de Belo Monte.
Aí tem um pouco de desinformação e um pouco de "xiitismo". O projeto Belo Monte tem a mesma relação entre a área inundada e produção de energia que uma PCH (pequena central hidrelétrica) ou até mais eficiente. Assim como Santo Antônio e Jirau, são usinas a fio d'água, já foram desenhadas para maximizar a relação entre energia e área afetada. Belo Monte podia ter um lago muito maior, para ter energia garantida em um nível mais alto com um sacrifício ambiental muitíssimo maior, mas ela não foi concebida assim. Agora, temos uma economia crescendo e com necessidade de energia. É preciso fazer projetos com a filosofia minimizadora. Entre essa alternativa e fazer térmica, hidrelétrica ainda é uma alternativa melhor. Se pudéssemos acelerar o processo tecnológico e ter, por exemplo, energia solar eficiente, energia eólica... O fator de capacidade da eólica é, em média, de 20% a 25%. Em 75% do tempo fica parada porque tem que ter vento, precisa fazer uma torre mais alta para ter vento, colocar máquinas maiores, não é fácil.
E sobre conservação de energia? O Brasil parece pensar mais em aumentar a produção. O senhor enxerga alguma mudança?
Tem-se no Brasil um complexo Rio Madeira, 10 ou 12 Gigawatts de potencial de poupança de energia. É assim no mundo inteiro e isso demanda uma política organizada. É preciso poupar energia em todos os níveis. Por exemplo, o "smart-grid", que não é fácil de fazer. Significa ter uma computadorização geral da distribuição de energia. E tem um sistema inteligente que diz que, na casa de fulano tem muita demanda de energia, na de beltrano tem pouca, e eu distribuo a carga do sistema para as áreas onde se está usando.
A Rio+20 é uma conferência sem dinheiro. Não se pensa em criar um fundo ou exigir alguma transferência de recursos. Como o senhor vê isso?
O momento global é ingrato para a conferência. Primeiro tem uma eleição nos EUA e a sociedade está centrada em outro debate, voltada para dentro, com um presidente em fim de mandato buscando outro. A Europa está em um tremendo salseiro, uma situação complicada com governos fragilizados. Os países [como a Alemanha] que eram campeões da causa estão voltados para dentro da crise, podendo dar pouca atenção e com poucos recursos. O MDL, o mecanismo de desenvolvimento limpo que são os créditos de carbono, é algo que caduca em alguns anos e precisa ser renovado. Infelizmente, não se percebe uma mobilização de países para aumentar ou renovar o sistema. Não obstante o quadro não ser favorável, temos que fazer o máximo para que a Rio+20 construa condições de avanço. E que construa, pelo menos com clareza, uma agenda mais realista, mais nítida para a política de sustentabilidade.
Realista em que sentido?
Falo no sentido estrito da palavra, que leve a iniciativas concretas de redução de consumo, de eficiência energética. E que seja pragmática, de engajamento, com construção de padrões. Esse é o grande problema. Há um grande pedaço da questão que não se resolve por "dictat" de governo. Uma parte se resolve: é reprimir desmatamento e queimada. O governo faz supervisão com satélite e está conseguindo. Outro aspecto, o governo pode fazer. Por exemplo, na construção da política energética seria incentivar o uso de renováveis. Agora, tem um pedaço enorme do sistema de consumo que é mercado.
Faltam lideranças?
Sim, as lideranças globais estão voltadas para outras questões, e poucas têm uma participação clara, de profundidade, nos desafios que o processo de aquecimento global traz para a humanidade. São poucas lideranças, infelizmente.
O Brasil não está em posição muito defensiva? Por exemplo, na questão da criação de uma agência da ONU para cuidar do tema. Os europeus gostariam de criá-la e os americanos não querem nem ouvir falar nisso e o Brasil parece que também não. O que o Brasil teme?
O Brasil não tem uma posição refratária, mas tem que construir consensos. Tenho dúvida quanto a se criar uma burocracia da ONU, se ela será eficaz para a agenda de eficiência do uso de energia, por exemplo, que é uma agenda que precisa de um forte engajamento do setor privado. Não quero entrar nesse tema específico, nem opinar taxativamente sobre ele. Acho que a posição do Brasil, como anfitrião do encontro, precisa ser a de construir consensos. O país tem uma posição privilegiada porque tem uma boa relação com países desenvolvidos e em desenvolvimento, então, precisa buscar ser um construtor de consensos para que possa haver avanços em várias agendas.
A transferência de tecnologia é um ponto travado desde a Rio 92. É também um ponto nebuloso, em que os governos tentam regulamentar o que é da esfera privada. A Rio+20 pode avançar nisso?
O ponto da transferência de tecnologia, colocado em abstrato, no vácuo, se torna ineficaz. Por que se fala em transferir tecnologia, gratuitamente, para quem? Como? De que forma? Na verdade, se as economias desenvolvidas não estabelecerem padrões de eficiência energética olhando padrões tecnológicos futuros, e elas próprias estabelecerem, com métricas, padrões novos, fica difícil universalizar esses padrões. Temos que lembrar que economias em desenvolvimento são, em grande medida, influenciadas pelo desenvolvimento direto de grandes empresas internacionais que são canais para transferência de tecnologia de processo, não necessariamente de tecnologia própria para os países. Claro que as grandes economias em desenvolvimento têm projetos próprios e legítimos de incentivar e promover a sua capacitação tecnológica própria, inclusive nas áreas de energias renováveis. Este é o caso do Brasil, da China.
Existe uma certa desconfiança em relação ao Brasil. O presidente Obama sinaliza que talvez não venha, a presidente Dilma não comparecerá ao encontro preparatório de chefes de Estado em Estocolmo. O Brasil está se empenhando como fez na Rio92?
Bem, era um momento favorável. A Rio+20 bem organizada será. O campo político do presidente Obama está em plena campanha e logo irá esquentar. Como os EUA não podem liderar uma grande posição, para ele ir lá, firmar compromissos que podem ser facilmente criticados pelo adversário na campanha, bem, eu diria que ele tem uma bola quadrada. Em compensação, vem o chinês, vem muito chefe de Estado.
Ângela Merkel espera sinalização forte do Brasil. É o oposto de Obama: ela tem um eleitorado verde e ela tem necessidade de vir.
Já há mais de 80 chefes de Estado confirmados. Não acho que o Brasil não esteja fazendo esforço.
Alguns países veem o tema da economia verde com desconfiança, temendo que embuta barreiras protecionistas. O que acha?
É, existe ainda uma apreensão de países em desenvolvimento em relação à velha agenda. Porque a velha agenda passava uma mensagem de "não se desenvolva" para não permitir uma série de problemas. Existe uma concepção de "green economy", para uma economia desenvolvida, onde a agenda é diferente. E existe um outro conceito, que é o "green growth", o crescimento verde. Eu acredito que o que nós deveríamos ter é um crescimento do tipo "green development".
O que é esse conceito?
É o direito ao crescimento pelas economias em desenvolvimento com novos paradigmas, mais eficientes e com mais energia renovável. O conceito de "green development" inclui também o desenvolvimento social. Até porque, se você não enfrenta a questão social, ela cobra um preço ambiental. Uma coisa que nos preocupa muito no governo é, por exemplo, o desmatamento formiguinha, porque aquele feito pelo grande produtor, esse é até fácil de detectar e reprimir. Mas, se você não cuida da pequena agricultura e dos assentamentos, eles vão destruindo a floresta. E a formiguinha é difícil de detectar. Precisa ter incentivo para a agricultura de baixo carbono; incentivo para técnicas sustentáveis para a pequena propriedade; recuperação de pastagens degradadas. O conceito intuitivo e errôneo é que, se eu incluir essas pessoas, elas entrarão no mundo do consumo e, portanto, consumirão mais. Bem, essas pessoas precisam consumir. Se elas estão na franja da sociedade, também consumirão. Incluir não significa, necessariamente, emitir mais carbono. O desenvolvimento inclusivo faz parte do sustentável, ambientalmente falando. O Brasil amadureceu e o país pode dar contribuições muito interessantes com a sua experiência. Até como anfitriões, precisamos ter uma atitude mais construtiva, de buscar conciliar e buscar consenso.
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Brasil deve ser "construtor de consensos". Entrevista com Luciano Coutinho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU