10 Abril 2012
"Aqueles que recomendam a "absoluta liberdade de comércio", supondo que ela é produto de um teorema bem demonstrado com hipóteses realistas, devem saber que não há dúvida sobre o ganho geral. A incerteza é sobre quem ganha e quem perde (no nível dos países e no nível dos seus cidadãos), o que sugere que tenham mais cuidado", escreve Antonio Delfim Netto, economista, em artigo publicado no jornal Valor, 10-04-2012.
Segundo ele, "quem decide se vale à pena perder ou ganhar, no nível macroeconômico e no do cidadão, é a urna. Não nós, os economistas, nos laptops. Esta é, claramente, e ainda que não gostemos disso, uma questão política. Podemos, modestamente, usar os nossos conhecimentos para ajudar a sociedade a escolher o que consideramos o melhor caminho, mas é imoral sugeri-lo em nome da "ciência econômica"".
Eis o artigo.
A teoria do comércio internacional e o mundo mudaram muito desde quando Adam Smith (1776) demoliu o mercantilismo nacionalista, que acreditava que uma balança comercial favorável traria para o país ouro e prata, que poderiam ser utilizados para fazer "a guerra e sustentar a armada e os exércitos em países distantes".
Quando olhamos mais atentamente, a mudança parece ser menor. Com o "dollar standard" e o "privilégio excessivo" do Estado emissor, a coisa na segunda metade do século XX não parece ter sido muito diferente... Baseado naquela doutrina, a política econômica dos mais importantes países do século XVI impunha restrições às importações e encorajava as exportações. O comércio exterior seria um jogo de soma zero: o que um país ganhava o outro perdia.
Usando as horas de trabalho como unidade de medida, o velho Smith mostrou o equívoco embutido nessa proposição. Da mesma forma "que o alfaiate não faz o seu sapato, mas compra-o do sapateiro" (a divisão do trabalho aumenta a produtividade pela especialização), as nações poderiam beneficiar-se desse princípio. O comércio exterior não seria, necessariamente, de soma nula: o que não se podia determinar é como se dividiriam os resultados da vantagem absoluta entre os países.
O primeiro avanço revolucionário sobre essa proposição foi a observação de David Ricardo (1817), que não era preciso a vantagem absoluta. Bastava uma vantagem relativa dentro de cada país. Mas continuaram ainda sérias dúvidas de como se dividiriam entre os dois países os ganhos do comércio que saltavam à vista nos exemplos aritméticos cuidadosamente preparados, nos quais a especialização é completa. De fato, não estava excluída a possibilidade de que eles fossem muito desiguais.
Uma tentativa razoável para "explicar quais os fatores que determinam o comportamento do que é exportado e importado" por um país veio só um século depois. Conhecida como teoria Heckscher-Ohlin, ela afirma que os bens que requerem, na sua produção, muito dos fatores abundantes no país e pouco dos fatores escassos são exportados em troca dos que requerem o oposto. Assim, os fatores de produção com oferta abundante são indiretamente exportados e os com oferta pequena são importados. As conclusões da teoria são interessantes no curto e no longo prazo.
Pensemos num país A, onde os preços relativos dos bens agrícolas com relação aos industriais são menores do que no país B. Quando se inicia o comércio, os preços respondem imediatamente. Em A, os preços agrícolas sobem e os industriais caem e, portanto, aumenta a produção de bens agrícolas e diminui a de bens industriais.
No país B, há um movimento simétrico e de sinal contrário. E depois? No país A (e no B), a utilização dos fatores vai se alterando até que os preços dos fatores e dos produtos se igualem no longo prazo. Há um ganho geral no comércio, cuja distribuição continua incerta.
Mas há, também, cidadãos ganhadores e perdedores dentro dos países. A teoria é impotente para explicar boa parte do comércio mundial atual, onde a indústria exporta e importa os mesmos produtos e é dominada por imensos conglomerados internacionais, que fragmentam a sua produção por dezenas de países na procura de uma minimização de custos através do comércio intraempresas.
Desde o fim da década de 70 do século passado, desenvolveram-se novas teorias que introduzem as "economias de escala" internas e externas e reconhecem o regime de competição monopolística. A incorporação dessas novas realidades melhorou a qualidade do nosso conhecimento, mas não aumentou nossa capacidade de extrair recomendações "normativas" de modelos abstratos. O que ainda resta de incerteza induz a maioria dos economistas a reconhecer as vantagens da liberdade de comércio "cum grano salis".
Aqueles que recomendam a "absoluta liberdade de comércio", supondo que ela é produto de um teorema bem demonstrado com hipóteses realistas, devem saber que não há dúvida sobre o ganho geral. A incerteza é sobre quem ganha e quem perde (no nível dos países e no nível dos seus cidadãos), o que sugere que tenham mais cuidado.
Aventuram-se sem bússola num mar revolto, quando afirmam que a intervenção do governo viola as regras do mercado e introduz "distorções", como aconteceu há poucos dias num respeitado programa de televisão. O que os entrevistadores não lhe perguntaram foi: "Distorções com relação a que? " A um modelo teórico em vias de construção e aperfeiçoamento há dois séculos e meio, e que ainda continua envolvido nas maiores duvidas?
Uma pequena observação para terminar. Quem decide se vale à pena perder ou ganhar, no nível macroeconômico e no do cidadão, é a urna. Não nós, os economistas, nos laptops. Esta é, claramente, e ainda que não gostemos disso, uma questão política. Podemos, modestamente, usar os nossos conhecimentos para ajudar a sociedade a escolher o que consideramos o melhor caminho, mas é imoral sugeri-lo em nome da "ciência econômica".
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