Por: André | 24 Março 2012
Junto com seu marido Marcelo Gelman, filho do poeta, María Claudia foi transferida para o centro clandestino de tortura e extermínio Automotores Orletti, sede da Operação Condor. Foi levada para o Uruguai em um avião clandestino.
A reportagem é de Mercedes López San Miguel e está publicada no jornal argentino Página/12, 22-03-2012. A tradução é do Cepat.
Uma foto em preto e branco mostra uma menina de rosto redondo e olhar sereno. Assim se via María Claudia García Iruretagoyena aos seus 19 anos e seis meses de gravidez quando foi sequestrada no dia 24 de agosto de 1976 em Buenos Aires, junto com seu esposo Marcelo Gelman, de 20 anos. Eram cerca de duas horas da manhã quando um comando militar irrompeu no apartamento do casal enquanto dormiam.
Ambos foram levados para o centro clandestino de detenção Automotores Orletti, situado em uma garagem abandonada de Buenos Aires e que serviu de casa de tortura e extermínio a cargo de unidades conjuntas de oficiais e militares da Argentina e do Uruguai. Orletti foi uma sede da Operação Condor, a coordenação do aparelho repressivo das ditaduras do Cone Sul. Marcelo Gelman foi assassinado e seu corpo foi recuperado em 1989 graças ao trabalho da Equipe Argentina de Antropologia Forense. María Claudia, grávida, foi levada para o Uruguai em um avião clandestino por José Nino Gavazzo, segundo as investigações jornalísticas que possibilitaram a abertura da causa. Em 1976, Gavazzo era o segundo chefe do Departamento III do Serviço de Informação e Defesa (SID) com sede na rua Bulevar Artigas, em Montevidéu. Ali esteve sequestrada a menina de rosto redondo.
De acordo com a investigação realizada por Gabriel Mazzarovich para o jornal La República, junto ao trabalho que fizeram Juan Gelman e sua mulher, Mara, María Claudia foi vista na sede do SID por soldados que faziam a guarda e através de dados indiretos de outros presos, como Sara Méndez. Mazzarovich contou a este jornal que María Claudia foi tirada do centro clandestino para dar à luz em novembro de 1976. “As versões, tanto de presos no SID como das fontes militares, assinalaram o mesmo: a ordem foi levar a jovem ao Hospital Militar”.
Depois, mãe e filha foram levadas novamente para o SID e ali permaneceram ao menos até o dia 22 ou 23 de dezembro de 1976. Mazzarovich disse que nessa data a nora do poeta foi retirada pelo então major Ricardo Arab e o coronel Rodríguez Buratti, que comentaram o fato com o soldado da guarda: “Às vezes é preciso fazer coisas ‘lascadas’”. E esse foi o último momento em que foi vista. María Claudia carregava sua filha em uma cesta, a mesma em que a menina foi deixada tempo depois na porta da casa de um policial.
Com o passar dos anos, o desaparecimento de María Claudia García se converteria em emblema da luta contra a impunidade de seus familiares e das organizações de direitos humanos nos dois lados do Prata. Foi apenas em outubro de 2011 quando foram processados cinco militares retirados acusados de homicídio especialmente agravado. E foi possível após um longo e difícil trabalho de investigação do escritor argentino e das contribuições do jornal La República. Em 1999, as pistas eram conclusivas sobre a identidade da filha de María Claudia, cujo nome era Macarena. Nessa busca sem alento, Juan Gelman não teve nenhuma ajuda oficial: estava fechado o caminho da Justiça no Uruguai pela vigência da Lei de Caducidade, uma anistia que impedia que se julgassem militares e policiais acusados de violações aos direitos humanos durante a ditadura (1973-1985). A norma foi aprovada em 1986 e ratificada em um primeiro referendo três anos depois. Embora não contassem com o apoio da Justiça, os Gelman contaram com a solidariedade de escritores e intelectuais do porte de José Saramago e Günter Grass, que levaram a cabo uma campanha de divulgação.
O reencontro se fez esperar até 2000, quando Macarena tinha 23 anos. Juan Gelman disse sentir uma emoção inimaginável. O avô queria encontrar-se com sua neta em segredo, segundo contou Eduardo Galeano. Mas Jorge Battle, que apenas tinha assumido a presidência, queria que o poeta anunciasse o encontro de sua neta na Casa do Governo. A notícia foi anunciada no dia 31 de março desse ano e percorreu o mundo. Depois a prova de DNA confirmaria o laço sanguíneo.
Segundo a própria Macarena foi reconstruindo, os militares a entregaram ainda pequena a um policial, que a criou junto com sua mulher. Tempos atrás, Macarena contou a esta cronista que durante sua infância não teve indícios de que tinha sido adotada. “Nunca me ocorreu. Foi uma infância linda, normal, a única coisa estranha era que meus pais eram um pouco maiores”. Em nenhum momento mencionou a palavra apropriação.
Pouco a pouco, Macarena assimilou sua verdadeira identidade, e nesse processo tiveram que ver os amigos de seus pais biológicos. “Foram uma contribuição fundamental para reconstruir a história de meus pais”. Ao mesmo tempo que ia armando o quebra-cabeça de sua história, a jovem foi se envolvendo na luta encabeçada por seu avô para que se pudesse romper o bloco de impunidade no Uruguai.
Foi assim que em 2009 Macarena Gelman fez campanha pela anulação da Lei de Caducidade em uma segunda consulta popular. Mas o referendo fracassou. Diante desse impedimento legal, a família Gelman demandou o Estado uruguaio na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A contundência da sentença da Corte fez acelerar os tempos e as vontades: culpou-se o Estado pelo assassinato e pelo desaparecimento de María Claudia García Iruretagoyena e foi exortado a não obstaculizar a investigação e o julgamento dos responsáveis. A incriminação com prisão de José Nino Gavazzo, Ricardo Arab, Valentín Vázquez, Jorge Silveira e Ricardo Medina como coautores penalmente responsáveis pelo homicídio no caso da mãe de Macarena falou por si só. O Congresso sancionou uma lei que anulava a impunidade. E foram retomadas as escavações para encontrar os restos de María Claudia. Coincidências da história, acabam de ser encontrados os restos no Batallón 14 no marco da causa de María Claudia. Avô e neta não perdem as esperanças.
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O martírio de María Claudia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU