23 Fevereiro 2012
A nossa justiça depende também da relação com a terra e com todas as criaturas que ela nos dá.
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 12-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Nas primeiras páginas da Bíblia, o ser humano, criado por Deus à sua imagem e semelhança, recebe de Deus um mandamento: "Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra" (Gn 1, 28).
Palavras que delineiam a relação entre o ser humano e a terra. Os seres humanos devem ser fecundos, multiplicar-se sobre a extensão da Terra, habitá-la para que a terra seja a sua casa, devem ter com a terra aquela relação que liga um homem à sua mulher, um rei ao seu povo; uma relação esponsal, real.
Ao ser humano, porém, não é dado por Deus um poder opressivo, arbitrário, violento, explorador, porque, dessa terra, o ser humano, "feito pouco menos do que um deus" (Sl 8, 6), é senhor como mandatário, administrador em nome de Deus.
É por isso que, no mais antigo relato da criação, está escrito que, ao colocar o ser humano sobre a terra, "o Senhor Deus o colocou em um jardim para que o cultivasse (literalmente, “o servisse”) e o guardasse" (Gn 2, 15 ). A terra, de fato, não é do ser humano, continua pertencendo a Deus! Os seres humanos detêm a sua posse, não a propriedade, e devem responder a Deus pelo mandato que lhes foi confiado: isto é, os seres humanos são, acima de tudo, responsáveis pela terra. Isso porque, segundo a Bíblia, a terra é mãe do ser humano, sendo a adamá da qual foi retirado o adam, o humano, o terrestre (cf. Gn 2, 7), ao qual, significativamente, retorna à terra (cf. Gn 3, 19).
Mas dizer que a terra é mãe, e portanto afirmar a comunhão entre a terra e a humanidade, não pode significar fazer da terra Gea, a mãe terra inviolável, nem requer que se instaure uma relação fetichista entre o ser humano e a terra, como se o homem tivesse que venerá-la e adorá-la. Essa comunhão significa, ao contrário, que, dessa relação, depende a qualidade da vida humana, do ambiente, da natureza sempre em relação com a cultura.
É verdade que uma certa leitura cristã da Bíblia permitiu que se isolasse o ser humano da criação, que se fizesse da terra um cenário à sua completa disposição, que se favorecesse uma fé acósmica, com o resultado de autorizar o poder humano a explorar, consumir, pisotear a terra, ostentando sobre a terra apenas direitos, sem jamais se sentir responsável também por deveres para com ela.
Na verdade, isso aconteceu, sobretudo no segundo milênio, por causa de uma interpretação antropocêntrica de algumas passagens escriturísticas, que considerou o ser humano como superior à terra e a todos os seus inquilinos, um ser humano com traços prometeicos. Uma correta leitura da Bíblia, ao invés, é teocêntrica, e não antropocêntrica: no centro, não está o ser humano, mas sim Deus. O homem é, sim, colocado como soberano da terra, mas em comunhão de cocriaturas, em um espaço compartilhado com outros coinquilinos, em uma situação que o torna outro com relação aos animais, enquanto criado à imagem de Deus, mas animal ele também entre os animais, porque uma mesma vida é compartilhada por ambos.
Status complexo o do homem: ontológico e ecológico, inserido na natureza, mas capaz de transcendê-la, na natureza, mas jamais sem a cultura, no ciclo natural da vida e da morte, mas dotado de uma sede, de um sentido de eternidade. Nesse delicado equilíbrio, não reina nem o antropocentrismo, nem o biocentrismo, mas Deus está no centro, como presença capaz de dizer que a criação não é um acaso, mas sim o produto de um projeto de sabedoria e de amor. Nem tudo é Deus (panteísmo), mas tudo vem de Deus, e a promessa é que Deus será tudo em todos e em todas as coisas (pan-in-teísmo). Para o cristão, esse Deus que quis o céu e a terra "não está longe de cada um de nós, pois nele vivemos, nos movemos e existimos" (At 17, 27-28); é o Deus que diz: "Eu ocupo o céu e a terra com a minha presença" (cf. Jr 23, 24).
Houve séculos em que o ambiente ecológico, a natureza, era mais forte do que a humanidade, em que o ser humano, de certa forma, tinha que se defender da natureza. Hoje, ao contrário, é justamente o ambiente ecológico que se tornou frágil, muitas vezes se tornou vítima do ser humano, a tal ponto que o ser humano, com o seu poder nuclear, já é capaz de destruir a terra.
Assim, nos tornamos responsáveis pela terra no mais alto grau, responsáveis pelo nosso próprio poder: sob essa ótica, o mais difícil é controlar o nosso poder, não ceder ao excesso, à desmedida. O desafio ético nos pede que assumamos o controle, o domínio do nosso poder técnico-científico, pondo um limite às nossas ações e aos nossos projetos; nos pede que reconheçamos que existem direitos da natureza, do ambiente, direitos de todos os nossos coinquilinos sobre o planeta.
Esse é um passo que é preciso dar em nível de consciência social, até expressar esses direitos mediante instituições e legislações jurídicas. E, se o ambiente é titular de direitos e deveres, nós, humanos, temos deveres, temos uma responsabilidade precisa que, se não for assumida ou violada, nos torna transgressores da lei necessária à convivência, ao habitar a terra, ao construir um mundo mais sinfônico e mais belo.
Portanto, é necessária, acima de tudo, uma ética da responsabilidade, que se preocupe com o futuro da espécie humana e da terra. Hans Jonas formulou-a mediante o seguinte imperativo categórico: "Aja de modo que as consequências da sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra" (O princípio responsabilidade).
Se antigamente a responsabilidade significava responder pelos próprios atos passados e presentes, agora ela o é também com relação ao futuro, com relação ao futuro do planeta e do universo. É o futuro em que os habitantes da terra serão as novas gerações, os nossos filhos, os nossos netos, que requer a minha responsabilidade hoje, porque hoje o ser humano pode destruir a terra: desse poder, nascem obrigações, deveres. Assim como temos chegamos a elaborar um "contrato social", hoje devemos ir além do social e do político para elaborar um "contrato natural", um contrato com o ambiente!
Isso, porém, sem jamais esquecer que a questão ecológica e a questão social são dois aspectos da mesma desordem por nós provocada, são dois frutos da mesma vontade de poder, da mesma exploração que não conhece deveres nem limites, do mesmo hedonismo que só pensa em si mesmo, sem os outros e contra os outros.
Quando se chega a tratar as pessoas só em função da sua capacidade de produzir e de possuir, também se acaba tratando a natureza e os seres vivos só em função de uma possível exploração sua, só em função do seu valor de mercado...
Mas, ao lado da responsabilidade, eu gostaria de acrescentar uma outra necessidade em vista de uma ética que respeite a terra: a sobriedade. Sei que é uma palavra detestada, muitas vezes até ridicularizada, mas hoje mais do que nunca somos advertidos: os recursos do planeta não são infinitos, o desenvolvimento não está em constante crescimento, a produção não é ilimitada, o consumo não podem ser desenfreados.
Por isso, é preciso retornar a essa palavra que é atestada com grande frequência na Regra de Bento: mensura, medida. Medida dos alimentos, do consumo, do tempo livre, do trabalho... Medida, isto é, sobriedade, moderação: atitudes mediante as quais nós, humanos, reconheçamos os nossos limites de terrestres. Medida, em sentido ecológico, significa que devemos deixar cair as pretensões que não se referem às necessidades fundamentais, mas que, ao invés, são induzidos ou até impostas como exigências alienantes pela sociedade de consumo.
É preciso que nos libertemos dos desejos supérfluos para adquirir também uma capacidade crítica, uma liberdade, e não sermos curvados às exigências prepotentes do mercado. Às vezes, também é preciso de uma renúncia; ou, para usar um termo banido da nossa linguagem, um sacrifício, isto é, a disponibilidade de nos privarmos de alguma coisa, no caso de que a nossa satisfação passageira provoque danos ao ambiente e às criaturas das quais somos coinquilinos, a outras pessoas ou a outros povos.
Edgar Morin, entre os ensinamentos necessários para o futuro, também inclui o referente à identidade terrestre do ser humano (cf. Os sete saberes necessários à educação do futuro, Ed. Cortez): ele pede que se conheça o humano situando-o no mundo, sobre a terra, sem destacá-lo ou distingui-lo dela, porque qualquer objeto do conhecimento sempre deve ser contextualizado para ser pertinente. A pergunta: "Quem somos nós?" é inseparável das perguntas "Onde estamos? De onde viemos? Para onde vamos?". Portanto, integrar a condição humana, a nossa situação no mundo, é decisivo para conhecer a nossa identidade terrestre e saber viver a nossa relação com a terra, este "terceiro satélite de um sol destronado de seu posto central, convertido em astro pigmeu errante entre bilhões de estrelas em uma galáxia periférica de um universo em expansão".
A Terra é o único planeta sobre o qual, pelo menos por enquanto, sabemos que há vida humana, sabemos que existe essa espécie de animais biológicos, mas também seres culturais, os animais humanos: humanos no sentido de que o ser humano não é completo plenamente senão pela cultura e na cultura; humanos no sentido de que são capazes de se sentir responsáveis pelos outros coinquilinos animais, vegetais e minerais; humanos porque capazes de com-paixão, de sofrer com esta terra, capazes de sim-patia com todas as criaturas; humanos porque capazes de habitar a Terra, procurando e buscando a paz: uma paz não só entre os homens, mas também cósmica, ou seja, o shalom, a vida plena para toda a terra.
Assim advertia o Eclesiástico: "Para a vida do homem, as coisas de primeira necessidade são as seguintes: água, fogo, ferro, sal, farinha de trigo, leite, mel, suco de uva, óleo e roupa. Todas essas coisas são boas para os fiéis, mas para os pecadores se tornam más" (Eclo 39, 26-27). Realmente, a nossa justiça depende também da relação com a terra e com todas as criaturas que ela nos dá.
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Depois do contrato social, um contrato com o ambiente. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU