17 Fevereiro 2012
Quando o cardeal Joseph Ratzinger foi eleito Papa Bento XVI em 2005, poucos católicos estavam conscientes do papel central que ele desempenhou durante décadas para reverter as reformas do Concílio Vaticano II – para restaurar a Igreja Católica ao seu status como uma monarquia autoritária e um sistema impermeável à mudança a partir de baixo. Poucos autores contaram essa história tão bem quanto Matthew Fox (foto) em seu novo livro The Pope's War [A Guerra do Papa].
A reportagem é de Mark Day, publicada no sítio australiano Catholica, 10-02-2012. A tradução, é de Moisés Sbardelotto.
Fox, um teólogo progressiva, foi forçado a sair da Ordem Dominicana em 1988 por ordem de Ratzinger, então presidente da Congregação para a Doutrina da Fé. Autor de mais de 23 livros, Fox continua ensinando e explorar as grandes questões espirituais de hoje. Seu site é www.matthewfox.org.
Eis um extrato da entrevista.
Você concorda com o teólogo suíço Hans Küng que afirma que os papas João Paulo II e Bento XVI, ao se oporem aos ensinamentos do Concílio Vaticano II, criaram um cisma na Igreja Católica?
Sim, absolutamente. Um concílio pode se impor sobre um papa. Um papa não pode se impor a um concílio. Essa é a boa teologia. O que está claro é que esses dois últimos papas romperam com todas as principais posições que o Concílio autorizou, inclusive o poder dos episcopados nacionais de escolherem seus próprios bispos, o papel dos leigos, o ecumenismo, a renovação da liturgia e o movimento rumo à justiça social. O Vaticano está em cisma. Os católicos fiéis aos princípios do Concílio não estão em cisma.
Você compara a hierarquia da Igreja de hoje e o Vaticano a um "edifício em chamas". Você exortar as pessoas a salvar apenas o essencial. O que seria?
O maior tesouro da Igreja são pessoas boas: Pe. Bede Griffiths, Dorothy Day, Mestre Eckhart, Julian de Norwich e assim por diante. Nós não precisamos viajar com as basílicas sobre as nossas costas. Precisamos apenas de mochilas. Os místicos e os profetas, a forma como viveram suas práticas e teologias, tudo isso realmente vale a pena manter. Precisamos preservar os ensinamentos sobre a sacramentalidade do universo, a tradição da sabedoria da qual Jesus vem. E, é claro, a tradição do feminino divino. Ela ainda está presente no catolicismo, porque ele é pré-moderno. A Igreja não jogou fora a deusa – mas adotou-a com o princípio mariano.
Você apresenta uma forte questão em The Pope's War sobre a corrupção na Igreja.
Realmente, há um banquinho de três pernas na corrupção da Igreja: o primeiro é o abuso sexual e o acobertamento. O segundo é a corrupção financeira, e o terceiro é o "teológico-ideológico". Tudo isso está interligado. É ideológico, porque tudo tem a ver com dualismos como o secular versus os cristãos. É daí que vem a fixação no controle de natalidade, na homofobia e no celibato. Tudo tem a ver com o sexo. Isso também alimenta o fundamentalismo protestante. As duas ideologias estão intimamente ligadas.
Você não acredita que o Vaticano seja capaz de reforma?
Obviamente, ele não pode ser reformado. Eu olho para isso teologicamente. Eu acredito que o Espírito Santo está por trás do movimento para matar o Vaticano como o conhecemos – para matar a estrutura da Igreja Católica, para enterrá-la, para que possamos começar de novo. Trata-se de apertar o botão de restart [reinício]. Basta olhar para as seitas religiosas de direita favorecidas pelos dois últimos papas: Opus Dei, Comunhão e Libertação e os Legionários de Cristo. Não, o Vaticano não é reformável. É um clube masculino, um clube de valentões.
Que papel tem o sexismo na Igreja?
O sexismo está entrincheirado e institucionalizado na Igreja. Sabemos que a liderança feminina na Igreja primitiva estava por todo o lugar. Até São Paulo, que não é um homem iluminado, é explícito sobre o papel das mulheres na Igreja primitiva. E, é claro, o papel de Maria Madalena foi redescoberto. Ela pertence à ala da Igreja que assumiu a cura. Maria Madalena é a mãe da tradição sacramental da Igreja. No entanto, ela foi descrita como uma prostituta.
Como o Vaticano se relaciona com a política dos EUA?
Bem, eu acredito que a reeleição de George W. Bush em 2004 se deveu, em grande parte, às pressões do cardeal Ratzinger e do Papa João Paulo II. Em junho, Bush foi ao Vaticano e disse: "Ei, eu sou contra os gays e contra o aborto, e mereço mais do apoio dos bispos católicos norte-americanos". Uma semana depois, Ratzinger instruiu os bispos de que nenhum político católico (nomeadamente Kerry) que não fosse explicitamente contra o aborto e os gays deveria ser apoiado. Um estudo posterior mostrou que isso influenciou fortemente o voto pró-Bush em Ohio, Iowa e Novo México. No entanto, ninguém denunciou essa intervenção de uma potência estrangeira. É chocante. Mais uma vez, trata-se de negação.
Você disse em que, nos níveis mais altos, o nosso governo passou a estar sob a influência do Opus Dei, uma seita católica de extrema-direita que exige a obediência absoluta de seus membros.
Sim, é amplamente sabido que os juízes da Suprema Corte Antonin Scalia, Samuel Alito e Clarence Thomas pertencem ao Opus Dei – e que o juiz Thomas Roberts também pode ser um membro. Outro membro do Opus Dei, o ex-diretor da CIA William Casey, deu milhões de dólares ao Vaticano e aos ultraconservadores Legionários de Cristo. Além disso, Daniel Ellsberg recentemente me contou que alguns dos comandantes superiores das nossas Forças Armadas também são do Opus Dei. E o que podemos dizer de uma safra completamente nova de políticos católicos de direita como Newt Gingrich e Rick Santorum?
É verdade que o Vaticano geralmente confia em fontes questionáveis ao emitir uma condenação contra teólogos e pensadores católicos?
Ah, sim. No meu caso, a Congregação da Doutrina da Fé ignorou as conclusões de três teólogos dominicanos que examinaram o meu trabalho e não encontraram nada de errado com ele. Eles deram mais crédito a fofocas de fontes não confiáveis. Eles ouviram a todos esses excêntricos de extrema direita que enviam e-mails e faxes. Eles nunca examinaram as suas credenciais, e a maioria deles não tem credenciais.
Estes dois últimos papas minaram a possibilidade de escolher lideranças progressistas para a Igreja no futuro?
Sim, minaram. É como arranjar tendenciosamente a Suprema Corte. Mas lembre-se, eles estão em cisma. E não se esqueça que todos esses cardeais, arcebispos e padres também estão em cisma. Isso significa que qualquer católico que esteja tentando viver os princípios do Vaticano II e do Evangelho não está em cisma.
Por que mais católicos não se queixam sobre isso?
Bem, é isso que a mídia, o que a televisão faz. Ela entorpece as pessoas. Mas também tem a ver com a negação. Na nova edição de bolso do meu livro, eu cito o Mestre Eckhart, que disse: "Deus é a negação da negação". Para mim, essa é uma frase muito poderosa. Enquanto não pudermos superar a negação, o Espírito não pode fluir novamente. Os católicos precisam quase se esconder atrás dos bancos, atrás das ordens religiosas.
Você acha que os grupos católicos de reforma como o Call to Action, Future Church e outros estão crescendo, ou as pessoas estão simplesmente abandonando a Igreja?
Recentemente, eu participei de uma convenção nacional em Detroit [The American Catholic Council]. Foi triste ver que não havia lá praticamente ninguém com menos de 50 anos. Jovens com bebês recém-nascidos vieram me perguntar como eles deveriam educar seus filhos, já que não querem ter mais nada a ver com a Igreja Católica. O futuro da Igreja está com os jovens, e os jovens não estão aparecendo na Igreja, talvez com a exceção dos hispânicos.
Qual a sua opinião sobre os ordinariatos vaticanos recém-criados para aceitar clérigos anglicanos casados como padres católicos válidos?
Eles acolhem esses padres episcopais contanto que eles possam provar que são homofóbicos e sexistas. Não se esqueça que o papa também acolheu de volta um bispo cismático que provou ser um fascista e um negador do Holocausto. Isso realmente não tem fim. Nada disso tem a ver com Jesus.
Um dos principais objetivos do Papa Bento XVI era restaurar a Cristandade, ou a influência da Igreja na Europa ocidental. A crise dos abusos sexuais em todo o mundo inviabilizou esse projeto?
Com certeza. Mesmo na Polônia. Uma pesquisa realizada lá mostrou que apenas 3% da população da Polônia confia na hierarquia da Igreja Católica Romana. O ex-secretário papal, o cardeal Stanislaw Dziwisz, primaz de Varsóvia, está sendo acusado agora por ter se intrometido nos assuntos do governo polonês.
Por que as Igrejas tradicionais perdem tantos membros, enquanto as megaigrejas continuam crescendo?
Bem, esse é um sinal de que a coisa toda precisa ser sacudida. O problema católico é a corrupção no topo, e o problema protestante é a apatia. Isso permite que os fundamentalistas se apossem do nome de Jesus. Muitas pessoas estão pegando no sono nos bancos. Ao contrário, elas precisam dançar. Usamos vídeos, danças e diferentes formas de expressão em nossas "Missas Cósmicas".
Como o paroquiano médio se relaciona com essas missas, com telas de vídeo, danças e sessões de rap? Isso não vai de um extremo ao outro?
Trazer o rave, o rap e novas formas de linguagem para a celebração é muito eficaz. É uma forma de tornar a celebração relevante para os jovens e também para despertar os mais velhos para pensar e meditar. Isso realmente funciona. A Eucaristia é bonita, mas precisa ser posta em um novo cenário. Você não precisa que as orações sejam lidas para você – elas precisam vir do seu coração. E é isso que acontece quando você dança. Isso também é pré-moderno – remonta ao culto indígena que envolve o corpo. Sou favorável a uma grande variedade de celebrações – mas a Missa Cósmica é algo que atravessa todas as linhas de idades e culturas.
Em maio próximo, você estará pregando um retiro em Boston chamado "Ocupar o Cristianismo".
Sim. É sobre como apertar o botão de restart no cristianismo. Estaremos discutindo a dimensão espiritual e estratégica para renovar o cristianismo, tanto com católicos, quanto com protestantes. As Igrejas protestantes precisam de um reinício também, por razões diferentes. Ambas as tradições precisam voltar aos ensinamentos espirituais básicos de Jesus para a renovação.
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A Igreja em cisma? Entrevista com Matthew Fox - Instituto Humanitas Unisinos - IHU