O Ano da Fé: do papa ou de Jesus?

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23 Janeiro 2012

"Uma vez, em Nazaré, seu povoado, Jesus disse na Sinagoga: "Fui enviado para anunciar uma boa notícia, para curar os doentes e libertar os prisioneiros. Está aberto o ano da graça". O que mais senão isso pode ser o Ano da Fé para aqueles que clamam a Jesus de Nazaré?"

A opinião é do teólogo espanhol José Arregi Olaizola, professor das faculdades de teologia de Vitoria e Deusto, na Espanha, e fundador e diretor da revista religiosa Hemen. O artigo foi publicado em seu blog no portal Religión Digital, 19-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Quero saudar este ano de 2012 do nosso calendário solar gregoriano, cuja primeira lua já minguou. Que cada um ponha o número que corresponda ao seu próprio calendário, seja lunar ou solilunar, judeu ou muçulmano, chinês ou indiano, inca ou maia. E tenha já começado ou ainda esteja para começar, nunca se sabe. Quero saudá-lo a partir da minha fé.

Este ano, a ONU declarou como Ano Internacional da Energia Sustentável para Todos e também como Ano Internacional do Cooperativismo. Oxalá sejam ambas as coisas, que são a mesma! E que não aconteça neste 2012 o que aconteceu em 2011, que foi declarado pela mesma ONU como Ano Internacional das Florestas, mas as florestas continuaram caindo, e continuou nos faltando o ar, e o ano acabou com uma lei proposta pelo governo brasileiro que, se for aprovada, fará com qe se reduza ainda mais a selva do Amazonas, principal pulmão da terra e da vida que respira.

Todos os seres vivos respiram o mesmo oxigênio, são movidos pela mesma energia, formam juntos o mesmo corpo vivo e cooperante. O planeta inteiro é, sem saber, um organismo vivo em cooperação. Nós, humanos, que nos gloriamos de saber disso, somo neste momento a grande ameaça desse corpo vivo e único.

Seremos precisamente nós que romperemos esse misterioso tecido cooperativo da vida? Trairíamos a nossa consciência e toda a Terra. Minha fé diz: "Trairíamos a Deus".

Sim, eu sei que abuso dessa palavra sagrada: "Deus", que tanto utilizamos em vão, que tão em vão utilizamos. Mas é minha forma de dizer o Mistério supremo e mais íntimo. É a minha fé.

O que é a fé? É olhar a Realidade como bela, agradecê-la como boa, compadecer-se dela como sofredora, ouvi-la como chamado, confessá-lo como promessa, acolhê-la como graça. Traindo vida, traímos a Deus, pois "Deus" é essa centelha, esse calor, essa paixão, esse espírito, essa vontade que habita em tudo, também naquilo que chamamos de matéria inerte.

"Deus" é a chama que late na cor e no som, na melodia e na dança. "Deus" é essa energia que sustenta e anima tudo: o átomo e a árvore, a palavra e o olhar. "Deus" é o coração de tudo o que é feito de cooperação e cuidado, de respeito e liberdade. "Deus" é a fé do crente. "Deus" também é o seu empenho, inclusive sua luta. O empenho do crente brota do consolo, sua luta emana da paz.

O Papa Bento XVI anunciou justamente que neste ano, lá por outubro, será aberto na Igreja o "Ano da Fé". Eu gosto desse nome: "Ano Internacional da Fé". Sim, mas que seja uma fé que abra, não uma fé que feche. Que seja para abrir fronteiras e portas, para abrir os corações para a confiança que transforma, para sustentar juntos a energia da vida, para cooperar na luta da paz verdadeira.

Tudo depende, mais uma vez, do que o papa entende quando diz "fé". Tendo visto e lido a sua declaração, temo que ele queira abrir o Ano da Fé para continuar fechando portas e erguendo fronteiras. Já não seria o ano da fé. Que pena!

A questão é que, no motu proprio que anuncia o Ano da Fé, Bento XVI afirma querer "dar um impulso renovado à missão da Igreja de conduzir os homens para fora do deserto em que se encontram com frequência". Ou seja, o deserto são os outros. No deserto, vagam sedentos todos os que não estão na Igreja, incluindo os católicos que não se submetem à hierarquia vaticana e devem ser tomados paternalmente pela mão e reconduzidos ao único redil onde há vida e verdade.

Como se a Igreja não caminhasse no deserto com todos os demais. Como se ela não necessitasse deixar-se tomar pela mão pelos "outros" e deixar-se reconduzir humildemente para as águas que não lhe pertencem. Como se ela, a Igreja, e de modo particular a hierarquia, não fosse responsável pelo imenso deserto, sem florestas verdes nem águas frescas, que se estende dentro e fora dela.

Como se sua primeira missão não fosse deixar-se evangelizar pelos homens e as mulheres de hoje e buscar com eles verdor e frescor, espírito de vida, Energia sustentável para todos.

Essa é a visão, bastante maniqueísta, do mundo e da Igreja que esse papa tem, desde muito antes de ser papa. Em sua homilia do último dia 6, festa da Epifania, festa da luz universal, ele voltou à crítica. "O mundo – disse – com todos os seus recursos, é incapaz de dar à humanidade a luz para orientar seus caminhos. Comprovamos isso também em nossos dias: a civilização ocidental parece ter perdido a orientação, navegando sem rumo. Mas a Igreja, graças à Palavra de Deus, vê através dessas trevas".

Está claro: fora da Igreja reinam as trevas. Os maiores males do mundo são a descrença, o relativismo e o pluralismo religioso. Por isso, o mundo naufraga, vai à deriva. E só a Igreja, isto é, só aqueles que acreditam no que a hierarquia ensina – ao fim e ao cabo, o papa – conhece a luz e o rumo seguro.

Isso não seria celebrar o Ano da Fé como Jesus faria. Uma vez, em Nazaré, seu povoado, ele disse na Sinagoga: "Fui enviado para anunciar uma boa notícia, para curar os doentes e libertar os prisioneiros. Está aberto o ano da graça". O que mais senão isso pode ser o Ano da Fé para aqueles que clamam a Jesus de Nazaré?

A fé de Jesus não era crer em dogmas, que ainda não existiam. A fé de Jesus não era se submeter a uma hierarquia, que não apenas ainda não existia, mas também ele disse em alto e bom som que nunca deveria existir. A fé de Jesus era um sentimento vital profundo de que Deus é eterna Ternura em ação, que a Graça é a Realidade primeira de tudo o que existe, que em todos os momentos somos amados tal como somos, que sempre pode haver consolo e cura, e que nós, em Deus, podemos fazer que todo este mundo novo já exista neste mundo. Ele fez isso.

Isso sim seria hoje o Ano da Fé que Jesus proclamaria: a fé inabalável de Deus no mundo, e a nossa fé em nós mesmos e no nosso futuro comum, por quebradiça que seja. A Boa Notícia de que nada é fatídico: nem que os direitos humanos sejam substituídos pelos direitos de mercado, nem que a Europa sucumba aos ditames da especulação, nem que os bancos nomeiem os ministros de economia e continuem emprestando aos Estados com 6% de juros o dinheiro que recebem dos Estados com 1%, nem que aumentem os pobres quando a economia cresça, nem que 30 milhões de pessoas morram de fome por ano enquanto a cada dia se invistam 4 bilhões de dólares em armas e gastos militares, nem que morram as florestas, nem que 20 toneladas de peixes apareçam mortos em algum dia como no último dia 3 de janeiro em uma praia da Noruega, nem que milhares de pássaros pereçam como pereceram no Arkansas (EUA) no mesmo dia.

A Boa Notícia de que podemos construir grãozinho a grãozinho uma autêntica democracia baseada na justiça fraterna e universal, a partir da Praça Tahrir até a Praça do Sol e Wall Street.

Esse seria o Ano da Fé de Jesus: o Ano da Graça em ação.

Para rezar:

Em Êxodo

A vida sobre rodas ou a cavalo,
indo e vindo da missão cumprida,
árvore entre as árvores, eu me calo
e ouço como a Tua Vinda se aproxima.
Quanto menos Te encontro, mais eu Te acho,
livres os dois de nome e de medida.
Dono do medo que Te dou vassalo,
vivo da esperança de Tua vida.
À espreita do Reino diferente
vou amando as coisas e as pessoas,
cidadão de tudo e estrangeiro.
E a Tua paz me chama como um abismo
enquanto cruzo as sombras, guerrilheiro
do Mundo, da Igreja e de mim mesmo.

Pedro Casaldáliga