02 Novembro 2011
O novo livro de Vito Mancuso (Io e Dio. Una guida dei perplessi, Garzanti, 2011) merece uma leitura atenta. Quem se interrogava sobre as razões do sucesso dos seus livros, tem nesse último livro uma resposta clara. Transparece uma autenticidade que dá sabor de verdade ao que está escrito, um rigor de reflexão que fascina até aqueles que apresentam reservas sobre as conclusões.
A análise é de Carlo Molari, publicada na revista italiana Rocca, nº. 20, 01-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É um texto de teologia fundamental, original pelo método experiencial, rico pelos conteúdos amplos e documentados, concreto pela impostação orientada a uma renovação da Igreja.
A análise se desenvolve no horizonte da fé cristã, porque parte da experiência pessoal do autor, declaradamente religiosa ("Não me lembro de um só instante da minha vida em que eu tenha duvidado de Deus", p. 393; "Nesse sentido, eu defino a minha identidade cristã", p. 446).
Mancuso busca com paixão os fundamentos da fé em Deus, como é vivida na tradição cristã, analisa com clareza as suas dinâmicas e declara com sinceridade os seus limites. Ele parece escrever, acima de tudo, para si mesmo, para deixar claras as impostações de vida, para justificar as escolhas cotidianas e para motivar o declarado pertencimento à Igreja. Convencido de que a sua experiência pode ser um "guia dos perplexos", como indica o subtítulo.
Por isso, a reflexão prossegue com argumentos de razão. São escolhas conscientes e declaradas: "Nestas páginas, torno pública a minha visão da fé em Deus e do seu fundamento" (p. 194); "Quis examinar a solidez daquilo que pretende ser o ponto firme para construir a minha identidade" (p. 445). "O meu objetivo é contribuir para fazer com que a mente contemporânea possa voltar a pensar "juntos’ Deus e o mundo, Deus e Eu, como um único sumo mistério, o da geração da vida, da inteligência, da liberdade, do bem, do amor". "Gostaria que este livro e, em geral, o meu trabalho intelectual despertem e reforcem nos seres humanos o amor pelo bem e pela justiça e o sentido de solidariedade e de fraternidade" (p. 184-185). "Desejo particularmente promover uma mudança de paradigma: a passagem do princípio de autoridade ao princípio da autenticidade" (p. 194).
Seria presunção de minha parte, em poucas linhas, listar os muitos temas examinados com riqueza de informações, as provas produzidas com rigor lógico e as conclusões às quais ele chega, às vezes em discordância com as opiniões difundidas nas comunidades católicas. Ao contrário, gostaria de desenvolver um diálogo sobre dois pontos que eu considero qualificadores e que me parece que merecem uma reflexão: o Eu/Nós no caminho de fé e o caráter pessoal do Deus cristão.
Levanta uma certa perplexidade a escolha de se considerar o eu como sujeito exclusivo da relação com Deus. Uma escolha insistente e intencional, especificada também no uso gráfico do pronome pessoal "eu/Eu": "minúsculo significa o escritor, maiúsculo, o sujeito humano" (p. 10). Ele está convencido de que, "se não se quer pronunciar em vão o nome "Deus’ mesmo como nome comum de pessoa, impõe-se uma condição precisa, mandatória: falar na primeira pessoa do singular. Acredito que hoje só se pode falar de Deus de modo verídico dizendo conscientemente "eu’, e justamente a partir do "Eu’" (p. 387).
Referindo-se às dúvidas e reservas sobre a historicidade de muitos relatos bíblicos, Mancuso escreve: "O poder da profecia e a profundidade dos livros sapienciais continuam intactos, mas a esse respeito não se trata de um ingresso de Deus na "história’, mas sim de inspiração na alma individual. Ou seja, não "nós e Deus", mas sim sempre e somente "Eu e Deus"" (p. 268). A conclusão do livro parece pôr um selo à escolha: "Quanto a mim, o ponto firme que constitui a minha verdadeira identidade de homem não deriva de nada exterior... O que me define como homem é algo interior a mim mesmo. Essa interioridade é o espírito, o mesmo que está na origem do bem moral "dentro" de mim e do mundo físico e, do mesmo modo, "dentro" de mim porque eu também sou mundo... Para todo homem que vem à terra, o jogo da vida é sempre em Eu e Deus" (p. 446).
Com essas afirmações, Mancuso pretende, acima de tudo, afirmar que a experiência de fé pressupõe a plena consciência pessoal e só se desenvolve na liberdade. Nisso, ele tem razão plenamente. Gostaria de ilustrar duas dúvidas. A primeira a propósito da autossuficiência do indivíduo. A liberdade, de fato, é doada pelos outros, o caminho de fé só se desenvolve por induções alheias e pressupõe, portanto, um campo permanente de testemunho. O próprio Mancuso elenca as testemunhas que o orientaram e educaram à fé (por exemplo, p. 191 ss.). Essa condição não se refere apenas à origem da experiência religiosa, mas também ao desenvolvimento maduro da vida espiritual e continua sendo um status permanente seu. A vida espiritual individual está imersa ou envolvida por um campo energético mais amplo ao qual alcança continuamente.
Mancuso, de fato, acolhe aquela "visão do homem e da vida" segundo a qual "não há primeiro um Eu isolado, uma mônada monacal que, depois, em um segundo momento, tem relações". Mas, ao contrário, "primeiro, existem as relações" e, "com base na natureza dessas relações, o sujeito, de vez em quando, se forma: o Eu não tem relações, o Eu é relações" (p. 401).
Por outro lado, ele mesmo confessa: "Vou descobrindo que eu não sei responder com certeza ao porquê da minha fé" (p. 393) e reconhece ao mesmo tempo: "A fé em Deus está enraizada em mim como um patrimônio ideal pelo qual sou feliz e do qual vivo" (Ibid). A tradicional sapiencial também se alimenta por meio do cruzamento das experiências pessoais em um único horizonte de fé. Coerentemente, não se deveria concluir que o processo interior, como derivou agora, é sustentado pelos outros? Por que, então, "eu" e não "nós" se as relações constituem e condicionam a nossa vida de fé?
Em segundo lugar, a relação com Deus na história se concretiza quando a sua ação é acolhida e visibilizada. Mas isso acontece não só em nível individual, mas também e principalmente de forma social e histórica. Há qualidades humanas que só podem florescer em ambientes vitais amplos e em comunidade com vínculos intensos. O entrelaçamento das relações constitui um espaço de desenvolvimento espiritual "mais amplo e profunda do que a soma" das dimensões pessoais. Uma comunidade de vida não é a simples soma das potencialidades vitais das pessoas, mas sim o resultado exponencial da energia criadora que, através do entrelaçamento das relações, pode desenvolver um campo energético mais profundo e intenso.
Dessa forma, as riquezas da história também podem se expressar de formas mais ricas. Portanto, não só porque o Nós vem antes do Eu porque o precede e o fundamenta, mas também porque constitui um sujeito mais amplo e rico do que a soma energética das pessoas, de modo a retomar e a resumir toda a história da comunidade.
Do ponto de vista do método de reflexão, é justo partir da experiência pessoal, mas com a consciência de que ela é doada, implica relações e de que o caminho autêntico de fé se realiza só no Nós. A esse propósito, gostaria de mencionar algumas reflexões propostas por Bento XVI no dia 24 de setembro passado na conversa improvisada com os seminaristas de Friburgo. Ele disse: "Só no "nós" podemos acreditar... O "tu" do próximo faz parte da fé, e o "nós" faz parte da fé... Quando dizemos: "Nós somos Igreja", sim, é verdade: somos nó, não qualquer pessoa. Mas o "nós" é mais amplo do que o grupo que o está dizendo. O "nós" é toda a comunidade dos fiéis, de hoje e de todos os lugares e de todos os tempos. E depois eu sempre digo: na comunidade dos fiéis, sim, ali existe, por assim dizer, a opinião da maioria de fato, mas jamais pode haver uma maioria contra os apóstolos e contra os santos: essa seria uma falsa maioria. Nós somos Igreja: e o somos! Somos justamente no fato de nos abrir e de ir além de nós mesmos e no fato de sê-lo junto com os outros!".
Uma verificação da insuficiência da perspectiva principalmente individual vem do fato de que Mancuso tem dificuldade para valorizar a liturgia como lugar comunitário de encontro com Deus e para considerar a história como âmbito privilegiado da revelação divina. Ele admite: "O estatuto comunitário da liturgia "não se concilia" bem com a "minha atenção privilegiada ao Eu na sua singularidade"" (p. 190, grifos meus). A liturgia, de fato, não é simples dever, mas sim o lugar onde a estrutura teologal da existência cristã se exercita, se verifica e se alimenta na troca de dons recíprocos. A prática litúrgica autêntica desenvolve em todos a capacidade de amar.
Quanto à história, Mancuso faz referência a conclusões pontuais e informadas de notáveis historiadores e exegetas acerca do caráter e das razões das narrativas bíblicas (p. 245, 344). Mas uma coisa é negar a historicidade dos relatos, outra é negar que a história seja o âmbito necessário da revelação e da experiência do divino, de modo a realizar aquela " verificação concreta e absoluta" de toda religião, que, justamente, segundo Mancuso, consiste em "querer-se bem, querer o bem, nada mais do que o bem" (p. 190).
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Eu e Nós diante de Deus: um diálogo com Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU