25 Setembro 2011
Temos que perguntar se o Concílio Vaticano II ainda pode "falar" à Igreja, ou se há a necessidade de uma nova escavação em profundidade. A globalização oferece a melhor oportunidade da história para sair da concha do Ocidente para se encontrar com as "novas linguagens".
A análise é do vaticanista italiano Giancarlo Zizola, falecido no dia 14 de setembro passado. Zizola, que vivia em Roma, era considerado o decano dos vaticanistas contemporâneos. Ele cobriu o Vaticano para publicações de diversos países desde antes do Vaticano II. Muitos de seus livros, incluindo biografias dos Papas João XXIII e Paulo VI, foram traduzidos para diversos idiomas.
O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 04-10-2002. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em 1961, o Papa João XXIII me chamou para Roma porque queria que os oito jornais católicos italianos tivessem um jornalista dedicado ao concílio ecumênico que ele havia convocado em 1959. Nesses jornais, a prática nessa época era simplesmente a de republicar as notícias religiosas do L"Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, em que o papa ainda era chamado de "Sua Santidade de Nosso Senhor", e se dizia que ele "recebeu graciosamente o Eminentíssimo e Reverendíssimo Cardeal" ou que ele "pronunciou gentilmente com os lábios augustos" um dado discurso.
Eu fui a Roma do meu vilarejo no nordeste, na província de Treviso, em um pequeno caminhão, com a minha Bíblia, meus livros, minha máquina de escrever portátil e meus 25 anos. A viagem demorou quase a noite toda, porque a estrada ainda não estava concluída. Por várias horas, ficamos presos atrás de um caminhão sobrecarregado e lento, com um sinal na traseira alertando para os "freios poderosos".
Assim, forçado a uma espécie de marcha lenta, eu tive a liberdade para refletir sobre o fato de que, assim como o caminhão, a minha Igreja, que eu amava e ainda amo, também estava sobrecarregada e era lenta, e tinha seus próprios "freios poderosos". Eu não tinha dúvidas de que eles eram necessários. Mas meu jovem motorista de caminhão me indicou que, quando tentamos dirigir com os freios "puxados", eles sobreaquecem, e há o risco de uma catástrofe. Assim, eu pensei que a Igreja, que continuava vivendo com os freios "puxados" pelo menos desde a crise modernista, estava à beira do sobreaquecimento, e que o Papa João havia tido uma inspiração do céu ao oferecer a ela a possibilidade de mudar de rumo.
Nesses primeiros dias, houve, sem dúvida, um elemento de pragmatismo acerca do Concílio. João XXIII disse que, no início do seu pontificado, ele estava sitiado pelos bispos, já que cada um deles havia posto os seus próprios problemas sobre a mesa e propunha reformas. A sua fé era uma fé de olhos abertos, como deveria ser a fé de todos os cristãos, e assim ele concluiu: "Por que todos não vêm para Roma e conversamos sobre essas coisas?".
Que toda a Igreja fale
No entanto, quando eu preparei a primeira biografia dos cinco anos do Papa João (A Utopia do Papa João, 1973), eu coloquei minhas mãos em documentos que comprovam que, para ele, a ideia de um concílio tinha sido uma fixação intelectual desde que ele era um jovem padre. Quando ele era o delegado de Pio XII em Istambul, ele pedia que cada amigo que fosse para Roma lhe trouxesse livros sobre concílios ecumênicos, os primeiros dos quais – poucos – haviam sido realizados em solo turco. O que era natural para ele certamente não era, é claro, para todos. No entanto, ele deixou que toda a Igreja falasse.
O "espírito do Concílio" não era uma atmosfera vagamente utópica e romântica. Para mim, posso dizer que ela tocou no meu sentido da fé cristã em que eu havia sido educado. Muitos da minha geração já haviam lutado na Itália, em grupos da Juventude Católica, contra o uso político da fé. Nosso líder, Marco Rossi, presidente da associação juvenil mais forte da Itália, foi forçado a renunciar pelos líderes da Igreja em 1954. Estes eram os mesmos homens que haviam convencido Pio XII a enviar Giovanni Battista Montini, o futuro Paulo VI, ao exílio em Milão.
Esse golpe havia nos desmoralizado profundamente. Foi a Igreja que nos fez sofrer, e foi terrível ver que ela não conseguia entender que nós lutávamos para libertá-la das suas correntes com o poder político. Nós não fomos os únicos a pedir isso. Os apelos por reforma se multiplicaram entre nós, assim como em muitos outros países. Meus estudos sobre os arquivos do catolicismo na Itália na década de 1950 me revelaram, por exemplo, que a invocação de uma reforma da Igreja surgiu dos mosteiros de clausura, dos setores do clero, dos próprios bispos.
As brasas ardiam sob as cinzas e precisavam apenas de um sopro para queimar novamente. Existia no corpo da Igreja Católica correntes de ideias, de aspirações, de problemas e de demandas que os líderes da época não permitiam que emergissem e, de fato, ignoraram e tentaram impedir. O Papa João tinha tomado a iniciativa de soprar sobre essas cinzas, levando a Igreja pelo caminho da renovação, em um mundo em imensa transformação.
Essa ideia extraordinária de uma Igreja que "muda" nos moveu profundamente. Ela não apenas nos encorajou a permanecer na fé, mas também a mudar a nós mesmos na fé. Eu li, depois, com paixão, os textos do cardeal John Henry Newman: "Viver é mudar, e estar vivo é mudar frequentemente". O seu brinde à Carta ao Duque de Norfolk, na qual ele saúda o sumo sacerdócio da consciência antes que o do papa, ajudou-me a entender que eu tinha que trabalhar, juntamente com o Papa João e as suas ideias, para que os católicos, também na Itália, pudessem desenvolver uma compreensão mais evangélica da autoridade de Pedro.
Assim, posso dizer que o amadurecimento da minha fé cristã e o meu "sentire cum Ecclesia" ("pensar com a Igreja") devem muito ao Concílio. Foi uma graça ter sido capaz de acompanhar todas as quatro sessões de perto. Também foi uma escola teológica e uma incrível aventura profissional. Eu recebi o credenciamento para cobrir o Vaticano em 1961, exatamente quando o Vaticano passou a palavra para a Igreja universal, para o ecumenismo, para o diálogo com os judeus. O grande monólito deu lugar à pesquisa e à discussão, e o reinado de dogma abria-se à opinião. O objeto do meu trabalho mudou sob os nossos olhos e "fez notícia".
Saindo da uniformidade
De fato, dois tipos de católicos estavam se confrontando, cada um buscando entender o raciocínio do outro. Para aqueles que estavam fixados na Igreja dos freios, foi uma surpresa: pela primeira vez desde o Concílio de Pio IX, no final do século XIX, a Igreja estava saindo da uniformidade. De modo algum era dado por óbvio que esses dois "partidos" poderiam se entender. Um grupo via na Igreja o depósito confiado por Cristo, uma verdade fixada em definições dogmáticas e ritos, e eles acreditavam que era necessário que toda geração transmitisse essa verdade intacta e inalterada para os que vinham depois.
Para o outro, o que era realmente importante era a evangelização do mundo e sobretudo dos pobres. Eles estavam menos interessados na instituição como tal, no dogma, na moral, do que na "boa notícia" a ser levada aos povos que ainda não a haviam recebido ou que a haviam mal entendido.
Certamente, o Papa João quis o Concílio, e ele disse isso com clareza, não a fim de definir pontos doutrinais ou formular novas condenações, mas precisamente para oferecer a antiga doutrina em uma nova linguagem, e com um magistério prevalentemente pastoral. Um dia, durante a sua audiência com o diretor da Civiltà Cattolica, Pe. Roberto Tucci (hoje cardeal), o papa lhe mostrou um dos esquemas preparatórios: "Este texto, veja, contém 14 condenações. Eu os contei. Quem sabe quantas os outros textos contêm? Podemos continuar assim?".
Mas minha pesquisa me convenceu de que a mudança na mentalidade do Concílio foi inicialmente muito lenta. Acredito que os padres começaram a compreender verdadeiramente as intenções do papa apenas no final da primeira sessão, quando deixaram de lado os esquemas preparatórios e aceitaram um novo método de trabalho.
As relações com a mídia também mudaram. A primeira sessão foi inteiramente secreta. Mas eu tinha certeza de que o papa não desaprovaria se eu quebrasse o sigilo. De fato, além dos seus jornais católicos, eu também escrevia para Il Messaggero, o principal jornal romano, onde eu sistematicamente violava a censura. Eu publiquei a lista das comissões conciliares preparadas pela Cúria e, assim, fiz saber que os grupos diretivos tinham um plano de controle do Concílio, tanto em termos de nomes quanto de conteúdo. Essa revelação levou à primeira afirmação de autonomia por parte dos padres conciliares.
Alguns bispos vinham ao meu encontro durante as tardes e liam para mim as suas notas sobre as intervenções que supostamente deveriam permanecer em segredo. O La Croix também tinha um informante secreto, que era o arcebispo Jean Villot, subsecretário do Concílio e futuro secretário de Estado. Era divertido jogar esse jogo de informações, mas, sem sabê-lo, ajudamos a Igreja a sair da sua fortaleza e a se deparar com as liberdades modernas, sobretudo o direito à informação e os princípios da democracia.
Embora as informações sobre o Concílio foram liberadas no início da segunda seção, em 1963, pelo novo Papa Paulo VI, as dificuldades não tinham acabado para aqueles que não estavam contentes com as verdades oficiais. Eu tive dificuldades por causa de alguns artigos que revelavam a existência de manobras secretas para limitar a liberdade do Concílio sobre os pontos críticos da liberdade religiosa e o texto sobre os judeus. Nessas circunstâncias, eu não posso me esquecer da solidariedade recebida de muitos colegas, entre eles Michael Novak, que escreveu um tributo fervoroso ao "jovem e altamente informado jornalista italiano".
Escola de teologia para jornalistas
A inovação mais importante na sala de imprensa do Concílio foi a de que os resumos dos debates, preparado pelos empregados em grupos de diversos idiomas, foram acompanhados por explicações de especialistas teológicos sobre os pontos em discussão, para que os briefings se transformassem em uma autêntica escola teológica para os jornalistas da minha geração.
Era uma teologia dinâmica, que seguia em frente. Lembro-me bem da impressão causada em mim pelo bispo de Vittorio Veneto, Albino Luciani (o futuro João Paulo I), um amigo da família, quando eu fui vê-lo em seu quarto em um instituto de irmãs em Roma. Ele passava as tardes estudando – ele me disse – porque "tudo o que aprendi na Gregoriana é inútil agora. Eu tenho que me tornar um estudante de novo. Felizmente, eu tenho um bispo africano como vizinho de banco da sala conciliar, que dá me os textos dos especialistas dos bispos alemães. Dessa forma, eu posso me preparar melhor".
Os bispos estudavam, mas nós, jornalistas, também tínhamos que nos tornar estudantes de teologia. É uma sorte que os correspondentes do Vaticano que vieram depois de nós não tiveram, e parece-me que o Vaticano não faz o suficiente para tentar reduzir essa diferença cultural.
Gostaria de concluir dizendo que o Concílio foi um momento decisivo, mas ele deve ter um desenvolvimento, um futuro. Ele se desenrolou na cultura católica ocidental, mas essa cultura já não domina mais a sociedade. A história mostra que os concílios tiveram o seu efeito, se não lentamente, pelo menos durante um longo período de tempo, com fases difíceis de recepção e também com rejeições.
O caso do Concílio Vaticano II é único: ele foi seguido por uma mutação na sociedade, os eventos de 1968, sem precedentes históricos, ao menos em termos de radicalidade, rapidez e universalidade. Essa mudança antropológica já deslocou a linguagem e as categorias filosóficas em que o Concílio se expressou.
Portanto, temos que perguntar se o Concílio ainda pode "falar" à Igreja, ou se há a necessidade de uma nova escavação em profundidade. Em certas áreas, o processo de renovação lançado pelo Concílio foi além das expectativas: por exemplo, no diálogo com os judeus, na liberdade religiosa, na paz, no diálogo inter-religioso. O desenvolvimento empreendido por João Paulo II de uma consciência autocrítica na Igreja, especialmente o seu "mea culpa" durante o Ano Jubilar, está no melhor espírito do Concílio. Mas isso não foi suficiente para derrotar a velha tentação da Igreja de se tornar poderosa no meio do mundo.
Em outras frentes, também é preciso reconhecer que grupos poderosos conseguiram pôr em xeque a esperança de uma Igreja de comunhão, com um governo colegial, um sínodo deliberativo, um laicato pró-ativo, uma reforma do papado, uma maior fé nas igrejas locais e uma maior descentralização, e um esforço coerente para sair de uma monoinculturação ocidental da fé, a fim de ir ao encontro das culturas asiáticas e africanas.
Essa falta de reformas é o que torna o movimento da Igreja mais uma vez pesado e lento. O papa viaja pelo mundo em um avião, mas a Igreja está mais uma vez viajando com os freios "puxados".
Enquanto isso, os incensos da mídia ameaçam envolver a Igreja em uma nuvem especulativa, em que as realidades da crise da fé são facilmente ignoradas, justamente na hora em que a globalização oferece a melhor oportunidade da história para revitalizar a operação de São Paulo: ou seja, sair da concha do Ocidente para se encontrar com as "novas linguagens", assim como Paulo levou a primeira comunidade de discípulos para fora da concha mosaica.
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Vaticano II e Zizola: uma resposta à convocação papal ao jornalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU