24 Agosto 2011
A fonte da fé cristã está precisamente em um diálogo divino que rompe o silêncio do nada e que tem como interlocutor privilegiado a criatura humana.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal e presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 31-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
"Não considera uma vitória usar a violência contra uma forma de culto ou uma opinião. Farás, portanto, assim: deixarás de polemizar uns contra os outros e falarás da verdade de modo que todas as coisas ditas sejam inatacáveis... Estou consciente de que nunca polemizei contra gregos ou outros, porque penso que seja suficiente, para homens honestos, conhecer e expor o verdadeiro em si mesmo... Cada um, de fato, afirma possuir a moeda real, mas, na realidade, talvez tenha apenas a imagem enganosa de uma partícula de verdade".
Mil e duzentos anos antes que Voltaire entoasse o seu hino à tolerância (dentre outras coisas, dirigido em forma de oração ao "Deus de todos os seres, de todos os mundos e dos tempos"), entre os séculos V e VI, um obscuro monge escondido sob o pseudônimo de Dionísio Areopagita teceu esse programa de confronto teórico e pessoal, com o horizonte em que estava imerso, um programa concretizado nos seus escritos, que se revelavam como uma reformulação original da doutrina cristã usando a instrumentação do pensamento neoplatônico.
Começamos de tão longe para propor um tema que está inscrito no DNA do cristianismo, mesmo que, muitas vezes, tenham sido assumidos vigorosos anticorpos para esgotar a sua energia. Na verdade, o apóstolo Pedro já advertia assim os seus interlocutores da Ásia Menor, na primeira das duas cartas que chegaram até nós sob o seu patrocínio: "Estejam sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vos perguntar, mas com doçura, respeito e reta consciência" (3, 15-16).
Os inimigos do diálogo – esse é precisamente o tema ao qual se referiam São Pedro e o Pseudo-Dionísio – são múltiplos e muitas vezes antitéticos entre si. De um lado, o fundamentalismo integrista, que logo põe a mão sobre a sua espada para um duelo; de outro, o sincretismo, que gorjeia em um dueto confuso e incolor. De um lado, eis a rigidez intelectual confundida com rigor; de outro lado, a aproximação vaga, que impede a pesagem das argumentações, porque, sobre os pratos da balança, se deposita apenas névoa ou mucilagem ideológicas.
Certamente, o diálogo é cansativo, às vezes árduo, até porque – como sugere a própria etimologia do vocábulo – é o atravessamento (dia) de um lógos, ou seja, de um discurso, decompondo-se todos os seus segmentos argumentativos, e, se se quiser, também é o entrecruzamento (dia) de dois lógoi de matrizes diferentes, senão opostas.
Em nossos dias, muitas vezes tomamos o caminho rumo ao confronto imediato, sem escuta ou verificação do pensamento alheio, na típica agressividade inconclusiva e pirotécnica do talk-show televisivo. A mais alta força demonstrativa está no insulto ("Cabra, cabra, cabra...!"), ou na afirmação mais pacata mas sempre "exclusiva" do estadista vitoriana Disraeli: "O meu conceito de pessoa agradável é o de uma pessoa que está de acordo comigo".
A dificuldade do diálogo chega a altos picos quando, no meio, estão as religiões com as suas concepções dogmáticas e as suas concretudes seculares: já há livros e livros de documentos que atestam o esforço constante e não raramente infrutífero de um insone diálogo inter-religioso e ecumênico.
Sem falar, depois, do confronto dentro da própria confissão religiosa única, onde os conservadores lançam anátemas contra aqueles que, a seu ver, cavalgam para além das fronteiras da ortodoxia, e estes últimos ridicularizam e escandalizam aqueles postergadores inconclusivos.
É por isso que é preciso manter entre as mãos o livro de um teólogo francês, Jean-Marie Ploux, de 74 anos, que – também com base em uma longa experiência pastoral – elaborou uma espécie de gramática do diálogo como compromisso irreversível para o crente. A própria fonte da fé cristã está precisamente em um diálogo divino que rompe o silêncio do nada e que tem como interlocutor privilegiado a criatura humana.
Sobre tonalidades diferentes desse colóquio, que tem justamente "no princípio o Lógos", para usar as célebres palavras de abertura do Evangelho de João, leem-se nesse livro páginas iluminadoras em torno de sujeitos que agora elencamos apenas: o "hóspede interior", aceitar a diferença, a liberdade e a verdade, o "país do outro", o risco do encontro, a gratuidade e assim por diante.
À abundante sequência de lições, de regras, de exceções que essa gramática ideal propõe, associam-se também os capítulos dos "exercícios" práticos: o cruzamento com o judaísmo, o Deus do Alcorão, o redespertar do budismo, o diálogo com os que não acreditam em nenhum Deus (um "exercício", este último, que me envolve particularmente mediante o projeto de um "Átrio dos Gentios", símbolo judaico destinado a ilustrar o diálogo crentes-ateus).
Mas Ploux também se compromete a desdobrar os "casos" do encontro em torno dos pontos incandescentes da verdade científica, ética e teológica. E o seu olhar se alonga até Assis, que se tornou, por mérito do Beato João Paulo II, o emblema do diálogo inter-religioso, e que Bento XVI, no próximo dia 27 de outubro, quis repropor como sede da convergência em torno da verdade e da paz da multidão dos crentes, segundo as milhares de denominações, mas também dos não crentes que se interrogam sobre o "além" e sobre o "outro" com relação ao "aqui" e ao "si mesmo".
A certeza e a esperança são, no fim, aquelas que o poeta surrealista francês Paul Eluard bem expressava em alguns dos seus versos: "Não chegaremos à meta um a um, mas sim dois a dois. / Conhecendo-nos dois a dois, conhecer-nos-emos todos, / Amar-nos-emos todos, e os nossos filhos rirão / da lenda obscura onde chora um solitário".
Jean-Marie Ploux, "Il dialogo cambia la fede?", Qiqajon, Bose (Biella), 296 páginas.`
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Uma gramática para dialogar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU