17 Agosto 2011
Publicamos aqui a primeira parte do XI Informe de Conjuntura Latino-Americana produzido pelo Centro Gumilla, por pedido da Conferência de Provinciais da Companhia de Jesus na América Latina (CPAL). O período de análise compreende os meses de abril a junho de 2011. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Os fluxos haitianos para a América Latina: situação atual e propostas
Coordenador interinstitucional: Wilfredo González, SJ
Coordenador de investigação: Jesús E. Machado M.
Investigadores: Wjooldy Edson Louidor, Cristyn Quiroz, David Petit,
Rômulo Rivero e Carlos S. Luna Ramírez
Correção de estilo: Marlene Bisbal
Desenho: Verônica Alonso
Os fluxos haitianos (de migração e refúgio) para a América Latina que andaram crescendo de maneira significativa desde 2009 e ainda mais após o terremoto de 12 de janeiro de 2010 no Haiti, apresentam grandes desafios para a atenção e proteção desta população.
Neste documento, que atualiza e complementa um diagnóstico em curso sobre os fluxos haitianos para a América Latina, apresentarei cinco nós críticos que me parecem pertinentes sobre a situação atual de ditos fluxos na região e algumas propostas do Serviço Jesuíta a Refugiados (SJR) em termos de proteção.
Primeiro nó crítico: ambiguidade dos governos sobre o estatuto dos haitianos
O primeiro nó crítico é sobre os fluxos haitianos para a América Latina que mostra um crescimento da migração haitiana para a região e a falta de mecanismos concretos de proteção desta população migrante.
A razão fundamental desta ausência de mecanismos de proteção regional é a ambiguidade dos governos com respeito ao estatuto que corresponde aos haitianos que chegam a seus territórios depois do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Com efeito, os haitianos que chegam aos países da região logo após o terremoto que devastou grande parte do Haiti, não poder ser qualificados simplesmente como migrantes econômicos, porque tem ido forçados a fugir de seu país de origem na raiz de uma situação humanitária agravada pelo terremoto e outros desastres sucessivos (epidemia de cólera, furacões...). Podem, no entanto, ser considerados como refugiados e, como tais, ter direito a receber assistência e proteção?
Alguns governos julgam com esta ambiguidade ou confusão (migrantes econômicos ou refugiados?) para negar a assistência e proteção aos haitianos, baseando-se na definição restrita de refugiados plasmada na Convenção das Nações Unidas, relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951.
Os governos sustentam que os haitianos não fogem de seu país porque "têm temores bem fundados de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, pertença a um grupo social determinado ou perseguições políticas", segundo a definição clássica de refugiados estabelecida pela Convenção de Genebra, senão pela miséria e pelos impactos dos desastres naturais. Pela mesma razão, tendem mais a conceder aos haitianos vistos humanitários em vez de lhes dar o estatuto de refugiados que lhes daria direito a certo tipo de proteção.
Além disso, ante o crescimento dos fluxos haitianos, um grande número de governos da região endurece cada vez mais suas políticas migratórias e de refúgio para eles, ignorando o agravamento da situação humanitária no Haiti, a qual segue forçando os cidadãos a fugirem de seu país de origem.
Segundo nó crítico: crescimento dos fluxos haitianos para a América Latina.
Este crescimento manifesta-se claramente nos registros de entrada de nacionais haitianos em duas das principais portas de ingresso dos caribenhos à região, a saber: o Equador e o Chile.
Através dos quadros apresentados pode-se observar como a migração haitiana para ambos os países (Chile e Equador) tem crescido de maneira significativa. E continua crescendo cada vez mais depois do terremoto que devastou grande parte do Haiti no passado dia 12 de janeiro de 2010. Somente durante o primeiro trimestre de 2011 o ingresso dos haitianos no Chile (435) e no Equador (1.112) igualou (e o superou no caso chileno) o total de entradas de pessoas da mesma nacionalidade em ambos os países no ano de 2009.
Da mesma forma, os fluxos haitianos para o Brasil tem aumentado depois do dia 12 de janeiro de 2010. O Governo brasileiro estima em mais de mil o número de haitianos que tem chegado de maneira irregular ao seu território através da tríplice fronteira (Colômbia – Peru - Brasil) situada na Amazônia, principalmente por Tabatinga e pelo Acre. Outros haitianos entraram no Brasil por Epitaciolândia, Rondônia e Mato Grosso do Sul, através da fronteira com a Bolívia. Provavelmente, a maioria desses haitianos provêm do Chile.
Ao longo do ano de 2010 o Brasil outorgou a 475 haitianos protocolos de refugiados, documentos emitidos pelo Departamento de Polícia federal, depois de receber a solicitação de refúgio dos estrangeiros. Os protocolos autorizam a estadia legal dos solicitantes até que se emita uma decisão final, após o processo de elegibilidade coordenado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), organismo dependente do Ministério da Justiça.
Sem embargo, numa decisão tomada na metade de fevereiro deste ano, o governo brasileiro suspendeu a concessão dos protocolos de refugiados aos haitianos, sob o pretexto da definição de refugiado estabelecida na Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951 e do combate ao tráfico de pessoas.
O governo brasileiro declarou que os haitianos não têm direito ao estatuto de refugiados porque não fogem de seu país por nenhuma das razões mencionadas na Convenção de Genebra, senão pela miséria e pelas consequências humanitárias dos desastres (terremoto, epidemia de cólera...). O governo brasileiro também explicou esta decisão de suspender a emissão dos protocolos de refugiados para os haitianos sob o pretexto de lutar contra o tráfico de pessoas que se desenvolve em suas fronteiras, principalmente na Amazônia.
A Polícia Federal brasileira implementou inclusive uma operação denominada Operação Sentinela para controlar a fronteira. Mas, no fundo, parece que dita operação policial tem o objetivo de impedir o ingresso dos haitianos no Brasil. Torna-se cada vez mais difícil aos haitianos ingressar no Brasil, pelo que vários deles tem permanecido parados nas zonas fronteiriças do Peru. Desde que a Guiana Francesa cerrou sua fronteira, que era destino principal dos haitianos na América do Sul pela afinidade linguística, cultural, étnica e pela promessa que lhes fazem os traficantes de levá-los à França e à Europa através deste departamento francês, os haitianos começaram a ingressar no Brasil.
Terceiro nó crítico: existência de complexas redes de tráfico de mulheres e drogas.
O terceiro nó crítico se relaciona com a presença de complexas redes de tráfico de mulheres e de pessoas que operam desde o Haiti e nos países de trânsito e chegada dos migrantes haitianos na América Latina. O Serviço Jesuíta a Refugiados para a América Latina e o Caribe (SJR LAC) descobriu pelo menos duas redes de tráfico que recrutam cidadãos haitianos em diversas regiões do Haiti, principalmente no Oeste e Norte do país, com promessas de estudos e de trabalho na América Latina e inclusive nos Estados Unidos da América e na Europa. Estas redes utilizam Cuba e a República Dominicana como países de trânsito para o Equador e, ao chegar ao Equador, os delinqüentes abandonam as suas vítimas. O SJR Equador, junto com várias organizações e com a representação do Acnur neste país, trabalha mancomunadamente com as autoridades policiais e judiciais para investigar e ajuizar os casos de tráfico de mulheres e de cidadãos haitianos, bem como para brindar com assistência psicológica, jurídica e humanitária essas vítimas.
A maioria dos haitianos não permanece no Equador, porém viaja para o Chile, a Venezuela e, sobretudo para o Brasil, porém a trajetória mais comum que percorrem é a seguinte: passam pela República Dominicana para chegar ao Equador, em seguida ao Equador e logo ao Peru (seja através de Iquitos, a região Madre de Dios ou Puerto Maldonado) e finalmente ao Brasil pela tríplice fronteira. Alguns haitianos também voam diretamente de Haiti ao Peru e dali ao Brasil. Da mesma forma, há um número significativo de haitianos que transitam do Equador ao Chile ou à Venezuela.
A Guiana Francesa é o destino privilegiado dos haitianos na América do Sul, porém ante o fechamento da fronteira deste departamento francês, os haitianos se viram obrigados a dirigir-se ao Brasil, onde esperam encontrar mais oportunidades de trabalho e melhor tratamento, já que a Bolívia impediu sua passagem para o seu território, existindo na Colômbia um conflito armado e no Peru poucas oportunidades de emprego.
Quarto nó crítico: endurecimento das políticas migratórias e de refúgio para os haitianos.
O quarto nó crítico tem a ver com a reação dos diferentes governos da América Latina frente ao crescimento dos fluxos haitianos há mais de um ano do terremoto no Haiti. Imediatamente após o 12 de janeiro de 2010, em sinal de solidariedade com o país devastado pela tragédia, os governos latino-americanos facilitaram a regularização da situação migratória dos haitianos e a reunificação com seus familiares. Outros governos do continente americano deram uma moratória sobre as repatriações dos haitianos.
Mas, alguns meses depois, ante o crescimento dos fluxos haitianos, os países da região endureceram novamente suas políticas migratórias e de asilo, para impedir o ingresso ou a permanência dos haitianos em seus territórios. Por exemplo, a menos de um ano após o terremoto, os Estados Unidos da América, as Bahamas e a República Dominicana reiniciaram o retorno e a deportação das pessoas de origem haitiana para seu país de origem. Na América do Sul, países como a Guiana Francesa, o Brasil e a Bolívia vem cerrando suas fronteiras para evitar o ingresso dos haitianos para seus territórios. Ante o fechamento das fronteiras por estes três países, há cada vez mais haitianos que ficam estacionados em zonas fronteiriças do Peru e em diferentes partes da Amazônia, na tríplice fronteira Colômbia-Brasil-Peru.
No caso do México, onde ingressaram 511 haitianos (até junho de 2010), sob as medidas temporais de internação e permanência no país logo após o terremoto, a administração do presidente mexicano Felipe Calderón descumpriu as promessas de assistência humanitária que havia feito aos haitianos.
Pese as facilidades para obter a documentação migratória requerida, a falta de conhecimento do idioma, o desconhecimento geral dos empregadores com respeito às formas migratórias que autorizam os estrangeiros a trabalhar no país, a carência de recursos para assentar-se no México e sustentar seus gastos numa cidade distinta de seu país de origem no que se refere a fatores sociais, econômicos e culturais, porém e principalmente as afetações emocionais conseqüentes às diversas perdas da população caribenha, constituem alguns obstáculos que têm dificultado a reconstrução da vida dos haitianos neste país. (organização mexicana Sin Fronteras, documento de trabalho intitulado Haitianos en México trás el terremoto de 2010: una experiencia de trabajo psicosocial en situaciones de emergencia (México, 2011).
Durante este ano de 2011, os haitianos que conseguiram obter sua documentação migratória no México têm sérias dificuldades para renová-la, já que o Estado mexicano lhes exige vários requisitos, principalmente para as prorrogações dos visas humanitários.
Quinto nó crítico: os haitianos necessitam da proteção internacional
Esta situação difícil que enfrentam os haitianos para reconstruir sua vida no México é muito semelhante à dos haitianos na América do Sul. Daí decorre a quinta e última observação: os haitianos necessitam, na América Latina, de uma proteção internacional para regularizar sua situação migratória, garantir a não deportação e integrar-se de maneira digna nos países de acolhida.
O Serviço Jesuíta a Refugiados (SJR) expressa sua preocupação pelos seguintes itens:
* A situação de emergência humanitária que está vivendo um grande número de haitianos em vários países da América Latina, principalmente os que estão estacionados no Peru e na Amazônia, bem como as vítimas do tráfico de mulheres.
* O endurecimento das políticas migratórias e de refúgio, bem como o fechamento das fronteiras para os haitianos, os quais se vêem obrigados a percorrer rotas cada vez mais perigosas e pagar mais dinheiro aos traficantes para evitar o controle fronteiriço e migratório dos países da região.
* A atitude deplorável de vários governos da região que abordam o tema dos fluxos haitianos sob o enfoque da segurança que criminaliza a migração irregular, e não desde a perspectiva humanitária, da solidariedade e dos direitos humanos, como o requer o caso haitiano.
* A xenofobia e a discriminação contra os migrantes (principalmente contra afro-americanos, indígenas, mulheres...) que estão se desenvolvendo em alguns países da região e se convertem em verdadeiros obstáculos para a integração digna dos haitianos nas sociedades de acolhida.
Propostas do SJR para a proteção dos fluxos haitianos para a América Latina:
Ante esta situação, o SJR crê ser urgente que:
• Os governos, agências internacionais, organismos regionais e diferentes grupos e entidades da sociedade civil criem uma rede de proteção dos fluxos haitianos na região da América Latina. O SJR tem estado estabelecendo contatos com diferentes atores envolvidos, de um modo ou outro, com o tema e o trabalho com os haitianos na América Latina, a fim de sensibilizar os governos e organismos da região (OEA, Unasul...) sobre a situação humanitária difícil dos haitianos na região, os quais necessitam de assistência e proteção, bem como para tornar efetiva esta rede de proteção.
• Os governos da região, bem como os organismos regionais, tais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), a Unasul e o Acnur reconheçam os haitianos como refugiados com base na Declaração de Cartagena que reconhece como tais aquelas pessoas que fujam de seu país de origem para salvaguardar sua segurança, integridade física e vida por causa de violência generalizada, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública. De fato, os haitianos que chegaram à América Latina logo após o 12 de janeiro de 2011 têm sido forçados a fugir do Haiti pela agravação da situação humanitária em seu país logo após o terremoto (e de outros desastres, tais como epidemia de cólera, furacões...), o que provocou uma situação de violação massiva a seus direitos humanos fundamentais, tais como o direito à moradia, à saúde, à alimentação...
• Os países latino-americanos e do mundo não se esqueçam de Haiti e sejam mais solidários com o povo haitiano, já que os impactos do terremoto e de outros desastres continuam forçando muitos haitianos a fugirem para fora de seu país para sobreviverem. Ademais, a reconstrução do Haiti não se iniciou realmente e o país está numa fase delicada de transição política. A situação humanitária é mais do que grave para mais de três milhões de danificados, especialmente para cerca de um milhão de pessoas deslocadas que continuam vivendo nos acampamentos sem acesso aos serviços de base e expostas a todo tipo de violências, inclusive às ameaças dos proprietários dos terrenos onde construíram suas tendas de campanha. Neste momento, o Haiti necessita, mais do que nunca, da solidariedade do mundo inteiro para poder garantir aos seus cidadãos o direito de viver dignamente em seu país.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Análise de Conjuntura América Latina e Caribe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU