15 Agosto 2011
Em um lento dia de verão, poderia ser divertido compor uma lista de duvidosas premiações aos clérigos católicos. O bispo já não-mais-excomungado Richard Williamson, por exemplo, poderia ganhar o prêmio pela entrevista mais famosa de todos os tempos da TV sueca (em 2009, ele causou frisson ao negar que os nazistas usaram câmaras de gás). Dom John Magee, de Cloyne, na Irlanda, agora aposentado em desgraça por sua má gestão das denúncias de abuso sexual, poderia reivindicar as maiores honras por ter criado a maior confusão na menor diocese.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 12-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Neste momento, Dom Giovanni Martinelli, franciscano italiano que atua como vigário apostólico de Trípoli, na Líbia, desde 1985, está flertando com o acréscimo do seu nome a essa lista de realizações desagradáveis, sob o seguinte título: "O favorito de Muammar Kadafi com colarinho romano".
No domingo passado, o New York Times publicou uma reportagem sobre a paróquia anglicana de Trípoli, um dos poucos lugares na capital controlada por Kadafi onde a discordância pode ser ouvida (tanto a comunidade protestante quanto a católica na Líbia são minúsculas, compostas quase inteiramente por estrangeiros expatriados). De passagem, o correspondente David Kirkpatrick observou que o regime basicamente ignora os anglicanos, preferindo, ao contrário, direcionar os visitantes estrangeiros à Igreja Católica de Trípoli.
Kirkpatrick escreveu: "Dom Giovanni Martinelli, há décadas em Trípoli, parece ter feito as pazes com o líder líbio. Dom Martinelli repetiu às vezes como um papagaio reportagens da televisão estatal não corroboradas sobre as vítimas civis e condenou os bombardeios da Otan como imorais e inúteis. Algumas semanas atrás, ele disse a um grupo de jornalistas estrangeiros que ele pensou que o coronel Kadafi poderia encontrar um lugar no céu. `Por que não?`, perguntou ele, de acordo com os jornalistas presentes".
Quando uma vez lhe perguntaram sobre a abordagem de Kadafi perante os cristãos, Martinelli respondeu relatando como Kadafi acolheu freiras italianas na Líbia porque duas irmãs franciscanas cuidaram do seu pai moribundo. A impressão era de que a Líbia era um refúgio seguro, ignorando o fato de que um dos primeiros atos de Kadafi, depois de tomar o poder em 1969, foi fechar as igrejas do país. Ao longo dos anos, Kadafi esteve mais do que disposto a mostrar a carta islâmica quando ela servia aos seus interesses.
É bom ter isso em mente ao refletir sobre uma notícia do dia 9 de agosto sobre a Síria, divulgada pela Asia News, uma agência de mídia católica com sede em Roma, especializada na cobertura do mundo em desenvolvimento. O núcleo da história era o seguinte: "Até agora, todos os chefes das Igrejas cristãs na Síria se uniram em apoio ao presidente [Bashar] Assad".
Entre outras coisas, a Asia News cita que o padre Elias Zehlaoui, católico greco-melquita descrito como "um dos sacerdotes mais respeitados de Damasco", dirigiu recentemente uma carta aberta às autoridades francesas reclamando de suas declarações de que Assad perdera legitimidade (mais dramaticamente, a reportagem afirma que um bispo auxiliar greco-ortodoxo expulsou recentemente o embaixador dos EUA Robert Ford de um serviço religioso ecumênico por causa de sua defesa dos manifestantes anti-Assad. Um porta-voz do Departamento de Estado, no entanto, disse ao NCR que isso não aconteceu).
A Asia News que, assim como Kadafi na Líbia, Assad gosta de exibir os seus amigos católicos. Quando os chefes de Estado visitam a Síria, Assad muitas vezes lhes mostra a catedral greco-melquita de Damasco. Por sua vez, Assad muitas vezes volta as costas para os líderes católicos do país. Em abril, por exemplo, o patriarca greco-melquita Gregorios III enviou uma carta aos líderes ocidentais louvando a Síria como "um modelo de secularismo fiel e aberto" e suplicando-lhes que não incentivem uma revolução anti-Assad.
Em maio, em meio a uma sangrenta repressão por parte das forças de Assad contra os manifestantes – que, segundo os relatos da mídia, estavam desarmados em sua grande maioria –, Gregorios III foi à Rádio do Vaticano para expressar suas condolências pelas perdas "em ambos os lados, os manifestantes e o Exército".
Com toda a franqueza, os especialistas costumam dizer que os cristãos na Síria estão em melhor situação do que em outros pontos do Oriente Médio. Mesmo assim, é surpreendente que, tanto na Líbia quanto na Síria, a resposta cristã oficial à pressão para a reforma é, pelo menos em alguns casos, apresentar desculpas pelo regime.
Claro, essa é uma velha história. No Iraque de Saddam Hussein, os cristãos geralmente preferiam o diabo que eles conheciam do que o que eles não conheciam, e os acontecimentos provaram que eles estavam certos, infelizmente. Antes da primeira Guerra do Golfo, em 1991, o Iraque tinha uma das maiores comunidades cristãs do Oriente Médio, estimada em mais de 2 milhões de pessoas. Hoje, ela está em torno dos 400 mil, o que significa que, em apenas duas décadas, o Iraque perdeu 2/3 de sua população cristã.
Os cristãos em outros lugares estão profundamente preocupados em se tornar outro Iraque, e é difícil chamar esse medo de irracional. Por exemplo, uma pesquisa no Egito logo depois da derrubada de Mubarak revelou que apenas 1/3 dos adultos egípcios acreditam que é importante que os cristãos coptas do país possam praticar sua fé livremente. Nesse ambiente, é realmente possível culpar alguns cristãos por serem relutantes em ver a velha guarda ir embora?
No entanto, a tragédia é que os cristãos podem estar entre os arquitetos mais importantes de uma nova ordem no mundo árabe.
A visão mais positiva do secularismo no pensamento católico hoje, de qualquer lugar do planeta, permeia o Oriente Médio. Para a minoria cristã da região, a democracia, o Estado de direito e a diferenciação da religião da política estão relacionados a uma estratégia de sobrevivência. Como um árabe católico disse recentemente, "no Oriente Médio, nós não precisamos de teologia da libertação. Precisamos de libertação da teologia".
Com efeito, o catolicismo no Oriente Médio é o herdeiro mais apaixonado do século XXI da "Dignitatis humanae", a declaração do Vaticano II sobre a liberdade religiosa, e da visão do secularismo saudável que ela representa. Lembrei-me da famosa frase do sociólogo Peter Berger, que uma vez brincou que, dados os paralelos entre o crescimento do protestantismo na América Latina e a difusão do capitalismo, "Max Weber está vivo e muito bem, e mora na Cidade da Guatemala". Na mesma linha, os católicos podem dizer que "John Courtney Murray está vivo e muito bem, e mora em Beirute".
Em outubro de 2010, poucas semanas antes que os movimentos pró-democracia irrompessem na Tunísia e no Egito, os bispos católicos da região se reuniram em Roma para o Sínodo para o Oriente Médio. Eles apresentaram esta visão convincente: "Juntos, vamos construir as nossas sociedades civis com base na cidadania, na liberdade religiosa e na liberdade de consciência Queremos oferecer ao Oriente e ao Ocidente um modelo de coexistência entre religiões diferentes".
Para libertar a potencial contribuição cristã à Primavera Árabe, é necessário agir em todos os lados.
Primeiro, os governos ocidentais deveriam deixar claro que a proteção das minorias religiosas, incluindo os cristãos, é uma condição sine qua non do reconhecimento diplomático e da ajuda material. A defesa de grupos e de instituições religiosos deve ser a pedra angular das prioridades de segurança.
A esse respeito, o histórico do Iraque não é encorajador. De fato, se os Estados Unidos quisessem encorajar os líderes cristãos na Líbia e na Síria, a melhor coisa que eles poderiam fazer seria melhorar o destino dos cristãos do Iraque – porque, neste momento, o Iraque surge no imaginário cristão coletivo como o cenário de pesadelo daquilo que um futuro para além de um Estado policial pode parecer.
Em segundo lugar, os proponentes muçulmanos da Primavera Árabe devem tornar a defensa das minorias cristãs um elemento muito mais explícito do seu programa.
As forças anti-Mubarak no Egito gostam de se gabar de que, depois que o regime retirou a sua proteção das igrejas cristãs, no auge dos protestos na Praça Tahrir, nenhuma foi atacada. Esse não é mais o caso, já que ataques contra igrejas e outros alvos cristãos têm aumentado no atual vácuo de segurança. Mesmo que isso ainda fosse verdade, porém, a mera ausência da violência dificilmente é suficiente. Os cristãos precisam ter certeza de que terão um lugar na mesa de debate nacional.
Em terceiro lugar, os cristãos no Ocidente precisa, treinar um foco de luz muito mais intenso sobre o destino dos seus correligionários no Oriente Médio. Os líderes eclesiais na Líbia e na Síria poderiam muito bem se pronunciar mais, se sentissem uma ampla rede de solidariedade internacional em suas costas, ao invés de temer que, uma vez que o regime entre em colapso, eles estão, basicamente, por conta própria.
Em particular, é simplesmente irritante que os católicos norte-americanos parecem muito mais interessados em debater os detalhes do novo Missal, ou qualquer outra afronta dos bispos, do que em se mobilizar para ajudar os cristãos do Iraque. Dada a responsabilidade que os Estados Unidos tem pelo Iraque, o bem-estar dos cristãos deveria ser uma alta prioridade, e não uma reflexão tardia.
Conclusão: é fácil zombar de Martinelli ou de Gregorios III por serem suaves com relação aos ditadores cujo tempo parece ter encerrado. Com certeza, não é exatamente um estímulo ao orgulho católico ver o nosso homem em Trípoli retratado como o último apologista remanescente de Kadafi, ou ver os nossos líderes na Síria implorando que o Ocidente pare de incomodar o pobre Bashar al-Assad, enquanto seus tanques esmagam os movimentos de protesto.
Se queremos que essa sintonia mude, no entanto, precisamos deixar claro que a nova música não vai cair em ouvidos surdos.
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Libertando a voz cristã na primavera árabe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU