13 Agosto 2011
Do seu escritório até a Sinagoga de Roma, Riccardo Segni, o médico que guia, como rabino-chefe, a oração do Sábado para os judeus romanos, segue com apreensão os sinais do Vaticano, do qual recebeu, em nome de Bento XVI, assim como outros líderes religiosos mundiais, o convite para participar da nova cúpula inter-religiosa em Assis, programada para o dia 27 de outubro.
A análise é de Giancarlo Zizola, publicada no jornal La Repubblica, 11-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um gesto do Papa Ratzinger inesperado para muitos, 25 anos depois da primeira Jornada de Oração das Religiões pela Paz, presidida pelo Papa Wojtyla junto ao túmulo de São Francisco. Os biógrafos já explicaram as razões pelas quais Ratzinger, como cardeal, havia mantido reservas sobre essa iniciativa, considerada profética por alguns, mas hostilizada pelos tradicionalistas de Lefebvre e vista pelo menos com frieza pelos guardiões da ortodoxia católica como fonte de sincretismo e relativismo.
O que não convence Di Segni inteiramente é precisamente o declarado caráter inter-religioso do encontro. Ele não é o único, além disso, que teve a impressão de que a nova cúpula está sendo preparada pela Secretaria de Estado mais como uma cerimônia vaticana comemorativa do evento de 1986, com muitos convidados a participar e a rezar pela paz mundial, mas com baixos níveis de participação dos outros na preparação e na gestão do "Assis Dois".
Em resumo, algo do Vaticano, e menos das religiões: um gesto autorreferencial. A tal ponto que o rabino esteve por muito tempo incerto se aceitaria o convite, embora alimente por Ratzinger e os seus méritos no diálogo judaico-cristão uma estima considerável.
As razões da dúvida surgiram abertamente quando, no L`Osservatore Romano do dia 7 de julho, um artigo do cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, ecoou estereótipos típicos das visões hegemônicas do cristianismo no campo do diálogo com os judeus. "A língua do diálogo deve ser comum", o rabino lhe respondeu em uma nota que o jornal vaticano publicou na edição do dia 29 de julho, depois de 22 dias, um intervalo de tempo que deixa adivinhar a complicação desse caso.
O fato é que o cardeal tocou em um dos pontos mais sensíveis no diálogo entre cristãos e judeus, ou seja, o valor identitário da Cruz de Jesus para os cristãos no campo da reconciliação com os judeus, aquela cruz que, por séculos, havia sido considerada um obstáculo para essa reconciliação. "A Cruz se ergue acima de nós como o permanente e universal Yom Kippur", escrevera Koch, referindo-se ao dia da expiação de instituição bíblica, uma data fundante do calendário litúrgico judaico. Um traço da velha teologia da substituição, que o Concílio Vaticano II parecia ter superado.
Uma passagem à qual Di Segni reage: "Temo que essas palavras, se não forem mais bem explicadas, podem denunciar os limites de um certo modo de dialogar da parte cristã". Nem para o rabino o diálogo inter-religioso poderia incluir a renúncia de um dos parceiros à identidade da sua própria fé, por um sentido mal entendido de respeito para com o outro: "O diálogo pressupõe diferença. Mas o ponto é que é preciso ver o que se faz a diferença".
Na fisiologia da cultura cristã, está uma implícita ideia de integração, senão de superação da fé judaica: "mas a própria diferença não pode ser proposta ao outro como o modelo a ser seguido", conclui Di Segni. "Desse modo, supera-se um limite que, na relação judaico-cristã, pode parecer dissolvido, mas que deve ser insuperável. Pelo menos não é um modo de dialogar que poderia interessar aos judeus. É como passar do et-et ao aut-aut. A língua do diálogo deve ser comum, e o projeto deve ser compartilhado. Se os termos do discurso são os de indicar aos judeus o caminho da Cruz, não se entende o porquê de um diálogo e o porquê de Assis".
A conclusão severa, que o jornal vaticano publica ao lado da réplica do cardeal, segundo o qual o seu artigo "se dirigia aos leitores cristãos". Mas a questão permaneceu suspensa desde então sobre o clima do evento. Como será "Assis Dois"? Uma tentativa de domesticação da "fratura" inter-religiosa de 1986, para facilitar a reintegração dos lefebvrianos à paz católica? Ou uma resposta coletiva do multiverso religioso mundial ao massacre de Oslo de um fundamentalista "cristão" e a qualquer outro uso das religiões para legitimar guerras, terrorismo e violência?
Teme-se que o medo do relativismo, um perigo real, possa gerar posições ideológicas que excluam a variedade dos caminhos que levam à verdade. Ainda mais se as referências à própria identidade cristã, considerada como depositária da total e única verdade, sejam exploradas para reforçar as razões para combater o Outro e para legitimar a intolerância, o desprezo pelas outras fés e pelos seus seguidores.
Ainda permanece em aberto a pergunta sobre o porquê, especialmente no Ocidente, a ética judaico-cristã da alteridade, a concepção trinitária de Deus com o seu impacto histórico-social no cristianismo e as visões proféticas de papas como João XXIII (que ainda em 1963 reconhecia nas grandes civilizações asiáticas os traços "indubitáveis" da antiga Revelação), Paulo VI e João Paulo II se inverteram, não raramente, em desrespeito, ou melhor, na repressão e na integração da alteridade.
As previsões mais confiáveis indicam que a principal marca de "Assis Dois" quer ser "escatológica". Uma religião, se vivida de modo autêntico, só pode pregar e praticar a paz. O tempo de "Gott mit uns" estaria definitivamente nas costas da história. O apelo à realização da paz no fim dos tempos poderia favorecer a convergência de todas as fés e fornecer o horizonte mais apropriado para estimular o seu serviço à paz.
Nessa prefiguração da unidade transcendente, as fés seriam facilitadas a se tornar mais conscientes de que a lei do mundo é que o lugar do Outro é o único ponto de vista para julgar com equidade. Com a condição, como dizia Raimon Panikkar, de que o cristianismo faça cair a máscara do Ocidente do rosto de Cristo para torná-lo mais bem perceptível tanto aos cristãos, quanto aos não cristãos.
Esse é o sentido conclusivo das tranquilizações multiplicadas pelo cardeal Tauran, presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, em vista de "Assis Dois": "No mundo tão precário e cheio de muros de separação físicas e morais", disse, "me parece mais do que nunca oportuno que as religiões, apesar de suas diferenças, promovam juntas a paz. O diálogo entre as religiões é sempre um chamado de Deus a redescobrir suas própria raízes espirituais".
Como introdução à Jornada de Assis, está programado para Munique, dos dias 11 a 13 setembro, o encontro de Santo Egídio e da arquidiocese, Religiões e culturas em diálogo, com um cartaz repleto de encontros entre expoentes cristãos, judeus e muçulmanos, sobre um leque de temas que se impõem pela sua pertinência histórico-política, quase servindo de interface para o lado espiritual da Jornada de Assis: serão abordadas, dentre outras, as questões da primavera árabe, da imigração, da globalização e o seu impacto social, do encontro entre humanistas e crentes, da violência generalizada, da energia nuclear civil pós-Fukushima, do Islã europeu e dos rom [ciganos], do conflito árabe-israelense, da ecologia e da liberdade religiosa, da nova fase do diálogo islamo-cristão. No centro da agenda de Munique, a memória compartilhada entre os expoentes de todas as religiões do 11 de setembro de 2001, em seu 10º aniversário.
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O difícil diálogo entre as religiões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU