31 Julho 2011
A polêmica aparição da santa na cracolândia, que ganhou bênção de dom Odilo Scherer e acabou destruída por usuários da droga.
A reportagem é de Ivan Marsiglia e publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, 31-07-2011.
O fotógrafo e artista gráfico José Zarella Neto resolveu fazer uma graça. No dia 21, puxou um gato de seu estúdio na região da Santa Cecília, no centro de São Paulo, e esticou o fio até a esquina, na Rua Apa. Ali fica um dos territórios flutuantes e nômades que nos acostumamos a chamar de "cracolândias". Com dois assistentes, Rodrigo Roseiro e Rafael Berezinski, instalou uma lâmpada na parede, na parte mais escura da rua, onde os usuários da droga se concentram assim que cai a tarde até alta madrugada, e pintou um retângulo azul. Depois, os três fizeram um suporte com espuma de poliuretano. No dia seguinte de manhã, trouxeram uma imagem de Nossa Senhora Aparecida de gesso, comprada de uma artesã do bairro do Jabaquara, cuja coroa e base ele pintou com tinta spray dourada.
Fixaram a santa no suporte, colaram na parede sobre ela uma máscara vazada de estêncil e preencheram as letras com spray da mesma cor: "Nossa Senhora Do...". A última linha, mantiveram coberta com um pano até os últimos retoques. Então, Zarella - conhecido por Alemão entre os vizinhos adictos - verificou se a rua estava vazia antes de retirar o pano. Revelou, então, a última palavra - palavra que não era de Deus. "Nossa Senhora Do Crack."
Aos 33 anos, Alemão mora no bairro da Barra Funda desde que nasceu. Caçula de três irmãos sustentados pela mãe vendedora, perdeu o pai, dentista, aos 6 anos. A aparência que lhe conferiu o apelido herdou do avô, um imigrante russo fugido, segundo lhe consta, da revolução comunista. Antes de se transformar em fotógrafo premiado de publicidade, trabalhou como office-boy, entregador e contínuo de jornal. Lá, após cursar o Senac, fez seus primeiros cliques até tornar-se editor de fotografia de uma sucursal na região do ABC paulista.
Depois, foi assistente de alguns dos grandes nomes da fotografia no País: Thelma Vilas Boas, Luis Crispino, Maurício Nahas, até alçar voo próprio. Hoje, se não deixou o bairro de sua infância simples, pilota um estúdio de três pavimentos e ainda nessa semana preparava a campanha de lançamento do novo carro de uma grande montadora. Na parede, a imagem que ele fez para uma campanha do Exército da Salvação, da agência McCann Erickson, que ganhou o Leão de Bronze em Cannes em 2007. Zarella tem outro desses, que faturou por outra campanha, da agência Loducca, um ano antes.
Não que a convivência entre o luxo e o lixo seja fácil. Uma ocasião teve que interromper uma reunião com clientes por causa da zoeira dos "noias" - como são conhecidos os usuários de crack, por causa de seu estado frequente de inquietação e paranoia - na rua ao lado. Quase apanhou de um deles. Outros, no entanto, felizmente preferiram a política da boa vizinhança: "Deixa o Alemão, que ele é gente boa".
Nada comparado ao que aconteceu no ano passado, quando ele viajou a trabalho com sua equipe e um noia pulou o muro da casa ao lado, cortou a telha de zinco do estúdio e entrou. "O sacana me levou um aparelho de som e outras coisinhas. Mas isso é de menos", contemporiza. Zarella Neto não frequenta igreja, mas tem sempre um terço com contas de madeira pendurado no pescoço e se diz "um Cristão sem religião".
Se é a tal culpa cristã, tampouco ele explica, mas o fato é que o fotógrafo banca do próprio bolso trabalhos autorais com pegada invariavelmente social. Certa vez ele atraiu com sanduíches de mortadela e cachê de R$ 10 oito mendigos da região. Fotografou-se lavando os pés deles com leite - em uma de suas séries mais impressionantes. Outra delas é o work in progress nas cracolândias da cidade, que ele visita uma vez por semana, disparando o obturador da janela do carro. Recentemente, na Praça Júlio Prestes, levou um susto quando um usuário de crack atirou uma pedra e estourou o vidro de seu Renault Mégane.
Nenhum projeto lhe deu tanta dor de cabeça, no entanto, quanto a Nossa Senhora Do Crack, cuja produção e instalação ele registrou em vídeo, que pode ser visto na internet: http://www.youtube.com/watch?v=bQGNpvYYZbA. A repercussão, literalmente, o derrubou: Alemão teve febre e precisou tirar um dia de folga do estúdio. "Eu sabia que aquilo ia causar controvérsia, mas pensava que, por se tratar de uma imagem sacra, a obra seria preservada." Santa ilusão.
De início, tanto o frentista do posto quanto a atendente do bar na esquina, cumprimentaram-no pelo trabalho. Os noias, que costumam estar alheios a quase tudo, também elogiaram. Uma mulher maltrapilha pôs a mão no ombro dele e agradeceu: "É linda. Está aqui para ajudar a gente". Fenômeno diverso, no entanto, se deu após a aparição de uma emissora de televisão.
A repórter colheu opiniões revoltadas nas redondezas. Até os usuários de drogas se puseram a criticar, naturalmente sem mostrar o rosto. No vídeo, uma diz que o crack "não é de Deus"; outro, que aquela era "uma santa do mal". Os ânimos se exaltaram e, diante da câmera, um deles se dependurou no suporte e começou a balançar - até que ele caiu e a santa se espatifou no chão. Uma senhora que passava se apiedou e levou a cabecinha de Nossa Senhora para casa: "Vou cuidar como se fosse uma criança".
O padre Julio Lancellotti, que desenvolve trabalhos sociais com moradores de rua, chegou em seguida e, diante da santa craquelada, abusou da metáfora: "Agora, quebrada, ficou ainda mais parecida com o povo que está aqui. É um povo machucado, destruído, que está com a sua imagem desfigurada".
Mesmo o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, deu sua bênção à instalação. "Os usuários de drogas são humanos, irmãos, filhos de Deus. Nossa Senhora Do Crack, rogai por eles e por nós também." Foram as dezenas de cartas e e-mails diabólicos que chegaram ao estúdio - fazendo até menções nada delicadas à mãe do artista - que o deixaram doente.
A repercussão não foi por acaso. Desde que o crack ganhou vulto nas ruas da cidade e bateu na porta das famílias de classe média, o tema suscita as mais pesadas discussões - numa gama que vai da mais completa intolerância à complacência ingênua. De nada adiantou a secretária nacional de políticas sobre drogas, Paulina Duarte, ir à TV dizer que a ideia de que o País vive uma "epidemia de crack é uma grande bobagem".
O Ministério da Saúde ainda aguarda uma pesquisa, prometida para este ano, que dará contornos corretos ao flagelo que afeta não só as grandes cidades, mas também áreas rurais do País. Estima que sejam 600 mil os viciados na pedra em todo o Brasil. Em São Paulo, onde o crack chegou primeiro - assim como agora o oxi, sua versão mais rústica e barata, destilada "artesanalmente" com querosene ou gasolina - policiais do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) calculam que cerca de 2 mil usuários circulam por regiões como a Rua Helvétia, Barão de Piracicaba, Dino Bueno, Tenda da Bela Vista, Praça do Correio e Largo Coração de Jesus, entre outros, além de bairros como o da Mooca.
É igualmente difícil, dizem as autoridades, isolar o dependente de crack do uso de outras drogas, em especial o álcool. É prática comum, por exemplo, o uso do chamado "pitico" ou "basuco": um cigarro de maconha misturado com a pedra. O tema, complexo, é tratado pela Prefeitura ora como questão de polícia, ora como problema de saúde pública.
Ambiguidade
À noite, viaturas da Guarda Civil e da Polícia Militar enquadram os usuários, apreendem drogas e buscam os traficantes. Durante o dia, Kombis da secretaria de Saúde trazem agentes, vestidas de jaleco azul-celeste, que atuam sempre em dupla na tentativa de convencê-los a se tratarem. Os feridos, desidratados ou convalescentes de doenças infecciosas são encaminhados às AMAs (Atendimento Médico Ambulatorial). Os que se dispuserem a aconselhamento ou mesmo a internação são levados para as unidades do Capes, Centro de Atenção Psicossocial.
A não ser por determinação judicial, ninguém pode ser internado compulsoriamente. Quando se dispõe à internação, o usuário pode passar até três meses no Serviço de Atenção Integral ao Dependente (Said), no bairro de Heliópolis, para se reestruturar. A Prefeitura também dispõe de comunidades terapêuticas conveniadas que podem receber doentes. Depois, assistentes sociais fazem um esforço para reintegrá-los à família e ao convívio na sociedade. Por razões óbvias, é bastante difícil conseguir emprego para um ex-usuário de crack.
Em toda a cidade são apenas 317 leitos especializados nesse tipo de tratamento. Neles há grande rodízio de pacientes, que normalmente passam por mais de uma internação. "Essas idas e vindas são comuns, parte do processo de reabilitação", ensina a coordenadora de saúde mental, álcool e drogas do município, Rosangela Elias. Desde que o programa começou, em 2009, 1.705 dependentes foram internados, só 111 deles compulsoriamente. A maioria volta para a droga. "É um trabalho de formiguinha."
Nessa semana, um parecer da Procuradoria-Geral do Município abriu caminho para a adoção, em vigor desde maio no Rio de Janeiro, da internação compulsiva de menores em São Paulo. Para alguns, como o professor da Unifesp Ronaldo Laranjeira, trata-se de "um ato de coerção com compaixão". Para outros, como seu colega Dartiu Xavier da Silveira, internação à força tende ao fracasso: "A recaída é quase certa". Quem trabalha nas ruas também relata uma dificuldade adicional: vários usuários não têm documentos e não é fácil deduzir sua idade pela fisionomia.
Enquanto o debate prossegue, Zarella Neto desistiu de colocar outra escultura da santa no altar da Rua Apa, como chegou a anunciar no início da semana. A Nossa Senhora Do Crack se quebrou e pronto. Mas o fotógrafo já planeja outras "aparições" pela cidade, sobre as quais faz mistério maior que o de Fátima. "Tenho fé que ainda vou abrir os olhos das pessoas."
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