27 Julho 2011
O jesuíta Xavier Albó (foto), que passou quase toda a sua vida na Bolívia, explica segredos, belezas e dificuldades do encontro entre a fé cristã e as religiões indígenas da América Latina.
Nascido na Espanha e enviado à Bolívia quando ainda era noviço jesuíta, Albó é hoje cidadão do país andino. Antropólogo e jesuíta, trabalhou principalmente com os povos quíchua e aimara. Em 1971, foi cofundador do Centro de Investigação e Promoção do Campesinado, órgão que hoje se ocupa sobretudo de implementar os direitos que a constituição de 2009 prevê para os povos indígenas. Em maio de 2010, junto com outros sete jesuítas, foi nomeado conselheiro do padre geral dos jesuítas para as relações ecumênicas e inter-religiosas.
A reportagem é de Stefano Femminis, publicada na revista dos jesuítas italianos, Popoli, agosto-setembro-2001. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Em primeiro lugar, conte-nos como foi o primeiro encontro que ocorreu em Roma entre todos os delegados para o diálogo, em setembro de 2010.
Foi uma experiência inesquecível e criativa, que nos fez tomar consciência da grande variedade de tradições religiosas e de fés, do desafios e do enriquecimento que tudo isso pode gerar na Companhia de Jesus e na Igreja. Na sua carta de síntese, o padre geral Adolfo Nicolás – presente durante todo o encontro – chega a dizer que, no mundo de hoje, "ser religioso significa ser inter-religioso" e que "ser cristão significa ser ecumênico". Nesse sentido, mesmo sendo já batizados, os povos indígenas da América Latina, com as suas espiritualidades e cosmovisões, revelam uma dimensão que deve estar ainda mais no coração desse complexo diálogo.
Pode nos explicar o que se entende por "religiões indígenas da América Latina"?
Falamos de mais de 300 povos ou grupos étnicos e de cerca de 20 milhões de pessoas. Na Guatemala e na Bolívia, os indígenas constituem a maioria da população, seja nas zonas rurais, seja em muitos centros urbanos. Ao contrário, no Brasil, representam só poucos grupos minoritários, espalhados em várias partes do país, alguns dos quais até com menos de 100 membros.
Além disso, há talvez uma centena de pequenos grupos que, de fato, praticamente não têm contato com o resto do mundo. A dois séculos da "conquista", a grande maioria dos povos situados no coração das regiões ocupadas por espanhóis e portugueses já havia aceitado o batismo: alguns como parte da já inevitável situação colonial, que tinha, entre os seus componentes ideológicos, a conversão dos indígenas; outros graças à presença de missionários extraordinários que conseguiram frear a presença militar, como o dominicano Bartolomeu de Las Casas entre os maias de Chiapas e da Guatemala. Em seguida, as missões jesuíticas do Paraguai e muitas outras seguiram um modelo semelhante em outras regiões.
A partir do final do século XIX, se acrescentaram as missões evangélicas, com uma variedade de propostas, algumas de notável impacto, por exemplo entre os maias da Guatemala. Enfim, alguns povos, como os mapuches do Chile e muitos guaranis do Chaco boliviano, tentaram resistir militarmente à conquista e à consequente evangelização, até que foram derrotados no final do século XIX. Nos grupos minoritários alcançados tardiamente, a evangelização deixou uma marca menor, levada em alguns casos pelos missionários católicos, mas, em muitos outros, por grupos evangélicos. Aqui prevaleceu, durante muito tempo, um estilo de proselitismo e "civilização", também mediante a criação de colégios: as novas gerações não só deviam ser cristãs, mas também viver de modo "civilizado".
Falar de diálogo com as religiões indígenas significa falar de um caminho que começou, de modo traumático, com a "descoberta" das Américas. Quais as principais luzes e sombras desse caminho?
Nos povos indígenas de primeira cristianização, mas com o trauma de ter adotado a fé em Cristo dentro do sistema colonial e neocolonial, há, de um lado, um processo muito mais intenso de sincretismos, não só na religião, mas também em todos os outros aspectos da vida. A vida comunitária, por exemplo, assim como as próprias celebrações religiosas ou as festas incoporam e combinam elementos próprios ancestrais com outros típicos da Espanha. Um exemplo dentre milhares: na área dos Andes, é frequente identificar a Virgem Maria com a Mãe Terra ou com a Pacha Mama.
Em povos de contato mais recente, o esquema anterior dos colégios foi questionado pelos próprios missionários e desapareceu ou foi objeto de notáveis mudanças, com um maior reconhecimento dos valores próprios dos povos. Por exemplo, nas missões salesianas entre os shuar da Amazônia equatoriana, os alunos que saíram desses novos tipos de colégios tornaram-se os principais líderes shuar das últimas décadas. Ao mesmo tempo, a penetração brutal de latifundiários e de multinacionais para se apossar dos seus territórios e recursos naturais tornou muito presentes em todos eles a boa nova apresentada em chave de solidariedade e de justiça. Por isso, a própria Companhia de Jesus teve ali vários mártires, como o padre Burnier e o irmão Cañas na Amazônia brasileira. Em ambas as situações, a primeira grande sombra continua sendo a condição de subordinação e de falta de aceitação dos povos indígenas por parte da sociedade dominante, como de muitos setores (neo)coloniais da Igreja.
Muitos desses povos continuam sendo expropriados dos seus territórios ancestrais por parte de proprietários de terra e indústrias do agronegócio, ou sofrem graves danos ambientais por causa da exploração dos recursos minerais, petrolíferos etc. Os principais elementos positivos, favorecidos pelo Concílio Vaticano II, são dois: a maior consciência pública da necessidade de promover a justiça para esses povos tão marginalizados e explorados; e a maior abertura ao seu modo diferente de ser e de crer.
Qual é a diferença entre diálogo e inculturação?
Diálogo, no seu sentido pleno, significa compartilhar e enriquecer-se reciprocamente entre aqueles que são diferentes, sem renunciar, cada um, à sua própria identidade, nem tentar impô-la ao outro. Entre as muitas acepções de inculturação, retomo a mais comum entre os missionários que chegam de uma outra cultura. Significa inserir-se e adotar a cultura e a língua das pessoas às quais se foi enviado, com os seus valores, as suas alegrias, os sonhos e as dores. É um renascer, já adulto, nessa nova cultura.
Quanto mais profunda é essa inculturação, mais é provável que se chegue a um profundo diálogo inter-religioso. O simples fato de adotar a língua e os costumes de um determinado povo, porém, não é necessariamente garantia de uma verdadeira atitude de diálogo com o outro. Poderia ser apenas uma estratégia para conquistá-los para a "única" verdade do missionário.
O senhor é conhecido pela sua reflexão sobre a "teologia indígena": do que se trata?
A teologia indígena, ou "teologia índia" como é chamada mais frequentemente, surgiu sobretudo entre os povos indígenas com uma longa tradição cristã na América Central e nos Andes. No início, ela era chamada assim, no singular, porque era imediata a sua associação com a teologia da libertação, já que todos os povos indígenas eram oprimidos não só no plano socioeconômico, mas também no âmbito das experiências e práticas religiosas. Dentro da Igreja, eles também mantinham um papel subordinado, mais de receptores do que de atores.
No entanto, assim que foi sendo adquirida uma maior autoestima sobre as expressões particulares das espiritualidades e das cosmovisões de cada povo, unidas à ampla variedade de sincretismos com os elementos provenientes das culturas europeias, nas quais até aquele momento a fé cristã era expressada e codificada, essa diversidade passou para o primeiro plano. Por isso, agora se fala preferencialmente no plural das várias "teologias índias". E, ao mesmo tempo, se toma consciência de como essas visões do mundo podem trazer contribuições importantes para a Igreja e para a humanidade. Vai-se passando do protesto à proposta, como diz um dos principais teólogos, o sacerdote zapoteco Eleazar López.
Obviamente, a reflexão teológica e missiológica passa também pelo velho debate sobre como articular o uno e o múltiplo: uma mesma fé e as suas múltiplas expressões locais. O diálogo se torna, então, mais importante do que o proselitismo. É mais importante difundir as crenças, as formas de devoção e as práticas religioso-culturais trazidas da Europa nesses continentes tão diversos e religiosamente ricos, ou, ao contrário, saber ouvir e aprender com essas tradições, em um plano de igualdade?
Como é vista hoje essa reflexão teológica pela Igreja oficial e pela Igreja de base?
Há várias posições, que vou ilustrar com aquilo que aconteceu em Chiapas (México). Quando Samuel Ruiz, em 1960, foi designado bispo, ele quase não conhecia esses povos maias, mas foi por eles evangelizado e conquistado, e eles o acolheram como o seu tatic (pai) e foram por ele evangelizados. Comiam juntos e falavam na língua local, compartilhando sonhos e problemas. O bispo lhes deu uma sólida formação religiosa e social, da qual germinou uma ampla rede de diáconos casados.
Alguns setores conservadores lhe imputaram a sua proximidade ao movimento zapatista nascido em 1992 e pressionaram Roma para que ele fosse removido. Mas, no momento da verdade, todos tiveram necessidade do tatic Samuel, que se tornou o principal negociador entre governo e zapatistas.
Em 1995, foi colocado ao seu lado um bispo auxiliar com direito à sucessão, Dom Raúl Vera, que tinha uma linha pastoral mais conservadora. Mas Dom Raúl também começou, bem rapidamente, a sintonizar-se plenamente com as transformações trazidas à diocese, de forma que, em 1999, quando foi aceita a renúncia de Samuel Ruiz, Dom Raúl não foi nomeado o seu sucessor, mas foi convidado a uma outra diocese do outro lado do país.
Ao contrário, chegou Felipe Arizmendi, que começou a viver o mesmo percurso, mas de modo mais veloz. Ele apoia o já citado padre Eleazar, que outros bispos queriam afastar do seu papel de protagonista na teologia índia.
Poderia dar algum exemplo concreto de experiência de diálogo entre catolicismo e religiões indígenas?
Parece-me muito iluminadora a experiência dos "evangelizadores evangelizados". O meu companheiro jesuíta Pepe Henestrosa (que morreu em 2004) viveu-a intensamente, desde que, em 1972, pôde se inserir entre os aimaras. Ele pôde fazer isso só em parte, até porque, apesar dos esforços, jamais chegou a dominar a língua aimara. No final, consolava-o pensar que essa limitação permitiria que eles mesmos encontrassem seu próprio caminho.
No seu diário, ele se perguntava até que ponto eles poderiam viver plenamente a profundidade da eucaristia e se alguém poderia se tornar jesuíta e permanecer ao mesmo tempo verdadeiramente aimara. Depois de vários anos, alguns membros da comunidade de Qurpa o convidaram a um dos seus rituais. O yatiri (o celebrante principal) fez com que ele se sentasse ao seu lado e lhe explicou o significado de cada gesto e símbolo. O padre Henestrosa escreveu no seu diário como isso o impressionou. Desde então, pouco a pouco, aprendeu a "se oferecer" à sua espiritualidade e à sua fé, mesmo sem compreendê-las muito.
Alguns anos depois, quando foram ordenados diversos diáconos casados, na noite anterior, ele predispôs para eles um desses rituais andinos para que, na nova tarefa, sentissem também a proteção da Mãe Terra e dos antepassados achachila. Depois da sua morte, um deles me disse: "Ele, sim, nos entendia".
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Um Deus de rosto indígena. Entrevista com Xavier Albó - Instituto Humanitas Unisinos - IHU