24 Julho 2011
A figura do "Estado-finanças", o desenvolvimento fundado sobre a dívida, a acumulação por expropriação. Um trajeto de pesquisa entre a inovação e a continuidade.
A análise é de Benedetto Vecchi, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 13-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A globalização não é um monstro sem cabeça, como ela é muitas vezes descrita por aqueles que lhe são adversos. Ela apresenta uma lógica férrea, às vezes implacável na destruição dos laços sociais, constituições materiais consolidadas, mas ainda por demais evidente na busca do objetivo de garantir um "fluxo" de mercadorias, de dinheiro, de capital.
Que fique bem claro: estamos a anos-luz de qualquer "plano do capital", definido teoricamente em alguma sala do poder mundial, seja ele encarnado pela OMC, pela Casa Branca, pelo Fundo Monetário Internacional ou pela sempiterna Trilateral, porque, se o objetivo é claro, diversos são os caminhos para alcançá-lo.
O Capital prossegue um pouco às apalpadelas, experimenta, corrige, muda de direção. Ultimamente, ele também tem um extraordinário instrumento em suas mãos para ter sucesso na sua intenção, as finanças, lugar de governo e de inovação nos instrumentos de governo da globalização.
Quem escreve isso não é um apologista seu, mas sim um crítico, que não é economista, nem um filósofo, mas sim um geógrafo, que tem feito muitas coisas para pôr o problema do espaço também importante daquele do tempo na crítica da economia política.
David Harvey é, de fato, um marxista atípico com relação ao panorama anglo-saxão. Ele poderia ser definido como um inovador em férrea continuidade com a tradição marxista. Exemplo dessa tensão para adequar uma caixa de ferramentas, considerada por grande parte dos seus contemporâneos tão corroída pelo tempo que chega a ser imprestável, são os seus livros anteriores. De La crisi della modernità a L`esperienza urbana (ambos publicados pela editora Il Saggiatore), de Neoliberismo e potere di classe (Ed. Allemandi) a Breve storia del neoliberismo (Ed. Il Saggiatore), o seu trajeto de pesquisa sempre se mediu com a tendência "global" do capitalismo. Como prova disso, o conceito de acumulação por espoliação introduzido por Harvey ajuda a compreender por que o capitalismo, ao moldar todo o planeta à sua imagem, deve continuamente valorizar de forma capitalista âmbitos da vida (a saúde, o conhecimento, o desejo) e da natureza (a água, a Terra) para moldar à sua imagem todo o planeta. Tema muito presente em suas aulas sobre O capital de Marx postadas no YouTube e que se tornaram um verdadeiro best-seller da rede.
L`enigma del capitale, por meio do conceito de fluxo, interpreta o regime de acumulação capitalista como um processo que deve manter sempre a alta demanda, por meio do crédito ao consumo e de sofisticados instrumentos financeiros postos em prática quando há contração da demanda.
Essa é a parte mais importante do livro, mas também a mais problemático. Aqui também não nos encontramos diante da reproposição usual da figura das finanças-parasitas, mas do dispositivo que garante o fluxo de capital sem o qual a crise assumiria as vestes de um apocalipse social, cultural e político. Harvey, no entanto, pensa nas finanças enquanto mero instrumento técnico, embora sofisticado, como por exemplo o da "negociação da dívida", que nunca entra em relação com o que acontece na realidade social. Desse ponto de vista, a introdução da noção de "Estado-finanças" não resolve o Enigma do Capital, mas o torna mais obscuro.
De fato, as finanças, justamente enquanto instrumento de governança do regime de acumulação capitalista, encontram alimento precisamente no que acontece na sociedade e nas dinâmicas relacionadas à reprodução do regime de acumulação. O endividamento individual, o investimento de fundos de pensões (isto é, salário diferido) nas finanças se refere a dois aspectos cada vez mais relevantes na economia global: garantir um padrão de vida convencionalmente definido pelas relações sociais que acabaria por causa da falta de aumentos salariais e, ao mesmo tempo, ter acesso a bens e serviços – a casa, a saúde, a educação – negados pelo abandono do welfare state.
Harvey tem flechas preparadas no seu arco quando defende que as finanças também é o modo usado para encontrar saída para os lucros acumulados no processo produtivo (a chamada economia real). Mas o fluxo de capital se interrompe porque entram em campo demandas sociais que querem satisfeitas através da alavanca financeira. Esse é o verdadeiro enigma do capital que o Estado, assim como as finanças, tende a fazer com que permaneça como é e pervertê-lo pelas dinâmicas sociais amadurecidas dentro e contra o regime de acumulação capitalista.
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Globalização: o fluxo interrompido da riqueza à beira de um apocalipse cultural - Instituto Humanitas Unisinos - IHU